"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/10/2014

Jurisprudência (36)


Convenção de arbitragem; apreciação da sua validade pelo tribunal judicial

1. Segundo o respectivo sumário, RG 25/9/2014 (1403/13.0TCGMR.G1) decidiu o seguinte:


"I - Os tribunais arbitrais são competentes para conhecer da sua própria competência, devendo os tribunais estaduais absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral, e isto mesmo que, para o efeito, haja necessidade de apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela está inserida. 

II - Destarte, uma vez instaurada a acção nos tribunais estaduais e invocada a excepção de preterição de tribunal arbitral, apenas em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inaplicabilidade da convenção de arbitragem - ou seja, que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade -, pode o juiz declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção.

III - A quebra do monopólio do Estado na função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) apenas se mostra permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos) os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania tribunais o Estado tende a conseguir.

IV - Por essa razão, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito potestativo a exigir a arbitragem, unicamente a verificação da existência de uma situação de absoluta impossibilidade, e não tão-somente de mera difficultas praestandi (em respeito pela autonomia privada), que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, constitui legitimo fundamento justificativo do seu incumprimento."

2. O sumário do acórdão não levanta nenhuns problemas: todos os seus itens podem ser subscritos sem dificuldade. O acerto da decisão torna-se, no entanto, bastante discutível quando se tem presente a factualidade que a RG teve de decidir.

O que estava em causa era uma cláusula compromissória constante de uma cláusula contratual geral de um contrato de swap celebrado entre uma sociedade e um banco. Segundo a descrição que consta do acórdão (que, aliás, parece conter alguns lapsos de escrita), a sociedade propôs uma acção de resolução daquele contrato num tribunal judicial; o banco defendeu-se alegando a incompetência deste tribunal com base na referida cláusula compromissória; a sociedade autora respondeu que a cláusula contratual geral da qual consta a convenção de arbitragem não era aplicável, porque não tinha sido devidamente informada dessa cláusula pelo banco; o tribunal de 1.ª instância considerou procedente a excepção de incompetência absoluta e absolveu o réu da instância (cf. art. 96.º, al. b), e 99.º, n.º 1, CPC).   


Inconformada com esta decisão, a sociedade autora interpôs recurso de apelação para a RG. Perante a alegação pela sociedade demandante da inaplicabilidade da referida cláusula contratual geral, afirmou a RG, como forte apoio na decisão recorrida, o seguinte:


"No que concerne à alegada invalidade do compromisso arbitral, muito pouco, ou mesmo nada, haverá a acrescentar à pertinente e consistente fundamentação aduzida na decisão recorrida a esse respeito, quando refere que, “de acordo com o n.º 4 daquele mesmo preceito (do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 63/2011), as questões da nulidade, ineficácia e inexequibilidade de uma convenção de arbitragem não podem sequer ser discutidas autónoma e judicialmente em acção de simples apreciação, nem em procedimento cautelar que tenha como finalidade impedir a constituição e funcionamento de um tribunal arbitral. [...]

Os árbitros são, assim, os primeiros juízes da sua competência, estabelecendo-se uma regra de prioridade cronológica quanto à tomada de decisão sobre a competência, vigorando, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral. [...]

A nulidade manifesta é a invalidade que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo assim apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade."


3. É possível que, em certos casos, o carácter manifesto da nulidade, da ineficácia ou da inexequibilidade da convenção arbitral possa ser entendido como aquele que é patente em função da própria convenção. É discutível, no entanto, que esse entendimento pudesse ter sido seguido no caso que foi apreciado pela RG, dado que a solução deste caso deveria ter implicado a consideração da protecção que é devida ao contraente que adere a uma cláusula contratual geral.

Como é sabido, o regime das cláusulas contratuais gerais institui um regime de protecção do contraente que adere a uma cláusula proposta pelo outro contraente. Ora, é contrário a este propósito de protecção do contraente aderente que a validade de uma convenção arbitral que consta de uma cláusula contratual geral não possa ser apreciada, com a prova que for necessária, no tribunal judicial no qual esse contraente propôs a acção, porque isso implica para este contraente -- que é aquele que a lei pretende proteger – uma de duas coisas:

– A necessidade de, primeiro, discutir a validade da cláusula contratual geral que contém a convenção de arbitragem no tribunal arbitral e de, depois de obter o reconhecimento por este tribunal da invalidade da cláusula, instaurar a acção de resolução no tribunal judicial;

– De modo a obstar a esta “dupla via”, a propositura da acção no tribunal arbitral e a renúncia a invocar neste a invalidade da convenção arbitral e a consequente incompetência do tribunal arbitral.

Assim, a solução adoptada pela RG traduz-se ou na imposição de uma dupla litigância ao contraente aderente ou na impossibilidade de este discutir a incompetência do tribunal arbitral. Como facilmente se compreende, nenhuma destas soluções é compatível com a protecção que é dispensada ao contraente que adere a uma cláusula contratual geral.  

Como a RG considerou que os tribunais judiciais são incompetentes para a acção de resolução, no caso em análise não está afastado que o mesmo contraente tenha de vir a propor três acções: aquela que já propôs num tribunal judicial, aquela que terá de propor num tribunal arbitral e ainda aquela que terá de instaurar novamente nos tribunais judiciais no caso de aquele tribunal arbitral vir a considerar inválida a convenção de arbitragem que consta da cláusula contratual geral em função da prova que a RG entende que nele deve ser produzida quanto à observância do dever de informação pelo banco proponente.

Em conclusão: o acórdão em análise elimina pela via processual a protecção que a lei substantiva pretende assegurar ao contraente que adere a uma cláusula contratual geral que contém uma convenção de arbitragem.

MTS