14/06/2016

Jurisprudência (373)


Confissão; indivisibilidade;
função da prova


1. O sumário de STJ 17/3/2016 (294/12.9TBPTB.G1.S1) é o seguinte: 

I - A indivisibilidade da confissão (art. 360.º do CC) é afastada quando se prova a inexatidão dos factos confessados desfavoráveis ao depoente; ora isso sucede quando essa inexatidão resulta evidenciada pela análise do próprio contexto da escritura em conjugação com a alegação dos compradores (art. 393.º, n.º 3, do CC), relevando a não impugnação dos compradores de que o preço de venda pelos autores da metade do imóvel não foi no caso vertente pago, não se alegando nem evidenciando a escritura que o preço acordado foi objecto de remissão.

II - Assim sendo, pode considerar-se provado por confissão judicial que o preço estipulado na escritura de compra e venda não foi pago, considerando-se, por tal motivo, anulada a declaração confessória anterior contrária que consta da escritura.

III - Nestas circunstâncias, está prejudicada a discussão em torno da questão de saber se o facto, provado apenas com base na prova testemunhal de que o preço do imóvel não foi pago pelos compradores, deve ser dado como não provado caso se aceite que a declaração constante da escritura de que o preço já foi recebido assume natureza confessória; é que, assim sendo, não é admissível prova testemunhal em contrário por força do disposto nos arts. 358.º, n.os 1 e 2, e 393.º, n.º 2, do CC.

IV - No caso de se considerar que a declaração constante da escritura de que o preço já foi recebido constitui uma declaração confessória, mesmo nesse caso nada obsta à produção de prova testemunhal tendo em vista provar que a vontade dos vendedores, quando declararam, na escritura, já recebido o preço, resultou de erro induzido pelos compradores de que iriam pagar ulteriormente a dívida, confiando os vendedores que assim sucederia.

V - A considerar-se que essa declaração constitui declaração confessória, o que já não é aceitável é dar-se como provado com base apenas em prova testemunhal que o preço não foi recebido a partir do momento em que claudicou a prova dos demais factos alegados tendentes a provar o erro em que o incorreu o declarante vendedor, visto que a prova testemunhal apenas é admissível para a prova do erro ou de outro invocado vício de vontade ou da sua falta que haja sido alegado.
 

2. Para melhor compreensão do decidido no acórdão, convém conhecer esta parte da sua fundamentação:

"25. A questão que agora se suscita é a de saber se a prova testemunhal devia ser ou não admitida; tal questão não está precludida e está no âmbito dos poderes de cognição do STJ que deve analisar "se houve ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto […]" (artigo 674.º/3 do CPC).

26. Está em causa o artigo 393.º/2 do Código Civil, segundo o qual "não é admitida a prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena".

27. Tem-se entendido que a força probatória plena pode ser afastada por via de prova testemunhal quando se vise demonstrar "a falta ou vícios de vontade com base nos quais se impugna a declaração documentada" (Código Civil Anotado, Antunes Varela e Pires de Lima, Vol I, 4ª edição, pág. 342). [...]

29. Os AA alegaram que emitiram na escritura de 15-7-1997 uma declaração contrária à verdade - a declaração de "que pela presente escritura vendem pelo preço de sete milhões e quinhentos mil escudos, já recebido, aos segundos outorgantes […]"; os AA alegaram que acordaram vender a sua parte num imóvel considerando as relações familiares entre todos os intervenientes e a vontade de suas sobrinhas e dos pais destas em adquirir a totalidade do imóvel onde exploravam estabelecimento comercial; mais alegaram que, não dispondo as rés (sobrinhas dos AA) de fundos suficientes, elas garantiram que no ano seguinte, em 1998, pagariam o acordado e os juros respetivos, o que não fizeram, nem tão pouco nos anos subsequentes, não pagando juros, protelando-se tal situação durante vários anos.

30. Sucede, produzida a prova, que não se provou que os réus afinal se tinham comprometido a pagar aos AA o preço acordado de venda do imóvel, nem tão pouco se provou que o pagamento dessa quantia foi remitida por terem as rés assumido a dívida dos AA perante o credor hipotecário (dívida de 4.300.000$00) que consta da escritura assim como a dívida dos mesmos AA perante os vendedores do imóvel no alegado montante de 4.500.000$00.

31. Sublinhe-se que o facto de as rés assumirem o pagamento das dívidas dos AA só as eximiria do pagamento do preço estipulado se tivesse sido acordado que o preço da venda seria objeto de remissão face ao montante das dívidas assumidas pelas rés por transmissão singular da dívida. Tal remissão não foi alegada.

32. E, para além de não ter sido alegada, a escritura revela exatamente o contrário porque nela se menciona o preço de venda (7.500.000$00) simultaneamente assumindo as rés o pagamento da dívida dos AA para com a instituição de crédito mutuante, ou seja, de acordo com a escritura de 15-7-1997, titulada "compra e venda e transmissão singular de dívida", os AA ficaram credores do preço e as rés assumiram o pagamento da dívida de 4.300.000$00, portanto, um encargo total de 11.800.000$00. Isto aponta-nos imediatamente para a inexatidão (ver artigo 360.º do Código Civil) da declaração confessória das rés na parte em que sustentam que a eventual assunção de dívida por elas próprias correspondia ao preço de venda que seria de 8.800.000$00, somatório dos 4.300.000$00 com os 4.500.000$00 que os AA teriam em dívida para com as vendedora do imóvel.

33. Ou seja, o Tribunal pode, assim sendo, considerar admitido por acordo o facto de o preço de 7.500.000$00 não ter sido pago pelas rés.

34. Não ficou provado que os AA, quando proferiram a aludida declaração, incorreram em erro induzidos pela confiança criada pelos RR de que depois da escritura pagariam o preço de venda do imóvel.

35. Não se provou também que os AA emitiram essa declaração porque consideravam que nada tinham a receber dos RR por terem estes assumido o pagamento de dívida dos AA no montante de 4.500.000$00, para além da declarada de 4.300.000$00 que ficou mencionada na escritura, num total de 8.800.000$00, sendo esse afinal o preço verdadeiro da compra e venda.

36. Ficou apenas provado que a declaração constante da escritura não era verdadeira, uma vez provado que o preço não foi pago no ato da escritura, ponto este de facto sobre o qual não há divergência entre as partes, visto que os próprios réus aceitaram que nenhuma quantia foi paga, porque o preço da venda correspondia ao somatório das dívidas contraídas pelos AA com a aquisição do imóvel, entendimento que, como vimos, pressupunha a menção correta do preço estipulado para venda - que não podia ser o de 7.500.000$00 - e a alegação, não efetuada, de que a obrigação de pagamento do preço foi remitida pelos AA (artigo 863.º do Código Civil) considerada a assunção de dívida pelas sobrinhas.

37. Tudo isto significa que o Tribunal, a partir dos elementos documentais contantes dos autos e à luz daquilo que foi alegado pelas partes, não pode deixar de concluir que a ulterior confissão judicial dos RR de que o preço não foi pago anula a anterior confissão que consta da escritura - a aceitar-se que estamos face a uma declaração confessória quando, perante o notário e a parte vendedora outorgante, o outorgante comprador declara que recebeu o respetivo preço - podendo, por tal motivo, relevar a prova produzida de que o preço não foi pago: ver facto provado 1 (ver parte final da matéria de facto).

38. Perde, assim sendo, interesse a questão de saber se este facto - o não pagamento do preço -, a admitir-se, por comodidade de raciocínio que ele não se deve considerar adquirido por acordo nos termos expostos, pode relevar, só por si, enquanto facto adquirido por prova testemunhal. "

39. Não se duvida de que, face aos termos alegados pelas partes, a prova testemunhal era admissível e ela foi admitida sem qualquer objeção.

40. A questão que se suscita é a de saber se, após produção de prova testemunhal, o facto em causa - que não houve pagamento de preço - provado por testemunhas pode subsistir quando não subsistiu a prova que explicava a razão de ser da emissão dessa declaração de quitação.

41. A resposta é positiva se considerarmos que, alegando os AA que não é verdadeira a declaração constante da escritura de compra e venda de que receberam o preço de venda, viabilizada lhes fica a prova testemunhal tendo em vista a prova do incumprimento do pagamento por se entender, primeiro, que essa declaração não é unívoca (artigo 357.º do Código Civil), impondo-se determinar o seu sentido e, segundo, que ela, tal como foi emitida, não se assume como confissão, porque não se deve considerar dirigida à parte contrária, o que sucederia se o declarante mencionasse que dela havia recebido o preço constante da escritura respeitante ao imóvel vendido.

42. No caso vertente exarado na escritura ficou apenas isto: que os AA declararam que "pela presente escritura vendem pelo preço de sete milhões e quinhentos mil escudos, já recebidos, aos segundos outorgantes, o seguinte […]". Já recebidos, mas como? Por cheque? Em dinheiro? Por encontro de contas? Por via de mera declaração a valer como declaração antecipada de quitação?

43. Veja-se, no entanto, no que respeita à assunção da dívida de 4.300.000$00, os termos claros e inequívocos assumidos na escritura na cláusula primeira: "Pelo presente contrato os primeiros outorgantes transmitem aos segundos outorgantes a dívida especificada na parte que lhes respeita, no montante de quatro milhões e trezentos mil escudos, declarando os primeiros outorgantes que conhecem precisamente todos os termos e valores de tal dívida e os segundos que a mesma não lhes suscita qualquer dúvida, reconhecendo todos a regularidade do empréstimo em causa".

44. Em breve síntese dir-se-á que a prova testemunhal é admitida tratando-se de provar que não é verdadeira a declaração exarada em escritura pública de que o preço não foi pago por não estar coberta pela força probatória plena visto que não estamos perante facto praticado pela autoridade ou atestado com base nas perceções da entidade documentadora (artigo 371.º do Código Civil).

45. No entanto, tratando-se de declaração prestada em escritura perante e na presença do outorgante comprador, tem-se considerado que esta declaração assume a natureza de confissão e, assim sendo, não é admissível prova testemunhal porque o facto - a declaração de que o preço foi recebido - está plenamente provada por meio com força probatória plena (artigos 358.º/1 e 393.º/2 do Código Civil).

46. A prova testemunhal, em qualquer destes casos, tem sido admitida, como se disse anteriormente, quando se vise demonstrar " a falta ou vícios de vontade com base nos quais se impugna a declaração documentada".

47. Por isso [...] o facto de se admitir a prova testemunhal tendo em vista provar que a declaração constante da escritura estava afetada pela falta ou vício de vontade, como sucedeu nestes autos considerando o que foi alegado pelas partes, isso não significa que, produzida a prova e falhando ela na demonstração de que ocorreu o alegado vício de vontade, possa agora, com base exclusivamente na prova testemunhal, considerar-se provado que o preço não foi pago. Foi esta a posição dos recorrentes que vieram sustentar não ser admissível a prova do aludido quesito porque, assim sendo, estava a desrespeitar-se o artigo 393.º/2 do Código Civil.

48. Salienta-se, no entanto, uma vez mais que, no caso vertente, a prova de que não houve pagamento resulta da própria confissão dos réus que é inexata na parte que lhes seria favorável face à sua falta de veracidade comprovada pelos próprios termos que resultam da escritura.

49. Na verdade, nunca os AA nem os RR lavrariam uma escritura nos termos em que o fizeram se o propósito dos AA fosse o de remitirem a dívida. O preço a figurar na escritura nunca poderia ser diverso do montante de 8.800.000$00.

50. Se o preço de venda indicado na escritura fosse de 8.800.000$00, podia considerar-se que a declaração de recebimento desse preço resultara de um acordo de remissão em que se tinha considerado o somatório da assunção de dívida de 4.300.000$00 constante da escritura com a assunção de dívida de 4.500.000$00 não constante da escritura. Mas, no caso, a conclusão contrária é evidente face ao próprio teor da escritura conjugada com a declaração dos RR autodestrutiva nos seus precisos termos, pois da escritura, repete-se, resulta um inequívoco encargo de 11.800.000$00.

51. Daí que, no contexto em causa no presente litígio, com a prova da falta de veracidade da declaração confessória dos réus compradores na parte em que lhes foi desfavorável, situamo-nos na demonstração de que o vendedor, quando declarou recebido o preço, expressou uma vontade de quitação que correspondia, o que era do conhecimento dos outorgantes compradores, a uma declaração de quitação antecipada." 


3. O apreciado no acórdão talvez possa ser visto por uma óptica algo diferente (e talvez também mais simples).

A confissão é um meio de prova (típico: cf. art. 352.º CC), o que significa -- como é bem conhecido -- que é um meio de provar um facto controvertido (isto é, um facto alegado por uma parte e impugnado pela outra). Ora, na petição inicial os Autores alegam que não receberam o preço pelo qual venderam o bem e na contestação as Rés reconhecem que não pagaram esse mesmo preço. Isto significa que o recebimento/pagamento do preço não é, nem para as partes, nem para o tribunal, um facto controvertido.

Neste contexto, parece inútil discutir o valor probatório da declaração confessória relativa ao recebimento do preço que consta da escritura pública e a forma como esse mesmo valor probatório pode ser ilidido (nomeadamente, através da prova de um erro na declaração por parte dos vendedores). Afinal, não há nenhum facto controvertido que deva ser provado por aquela confissão dos vendedores. Pela mesma razão, também não há nenhuma necessidade de ilidir o valor probatório dessa confissão: perante a natureza não controvertida do não recebimento/não pagamento do preço, não há que recorrer a esse valor probatório, pelo que também não interessa ilidi-lo. 

O acórdão preocupa-se com a confissão do recebimento do preço e em saber como a mesma pode ser ilidida. Parece que, atendendo à função da prova (que é a demonstração da verdade ou da plausibilidade de um facto controvertido) deveria antes ter-se preocupado em saber se, em função do carácter não controvertido do facto relativo ao não recebimento e ao não pagamento do preço, a confissão desse recebimento realizada pelos vendedores na escritura de compra e venda ainda tinha alguma relevância. A resposta só poderia ser negativa: perante a desnecessidade de provar o recebimento do preço, não interessa considerar nenhuma confissão sobre esse recebimento.

MTS