22/06/2016

Jurisprudência (379)



Acção de reivindicação; ineptidão da petição inicial;
proibição de decisões-surpresa


1. O sumário de RL 7/4/2016 (1004/09.3TBAGH.L1-8) é o seguinte:

- Desenhando o autor na petição inicial uma autêntica acção de reivindicação, com a causa de pedir e os pedidos que a caracterizam, não haverá lugar à ineptidão inicial com qualquer dos fundamentos previstos no artigo 186º do actual Código de Processo Civil.

- Como assinala Lebre de Freitas, no plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

- Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem seja qual for a fase do processo em que tal ocorra.

- No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.

2. Na fundamentação do acórdão consta o seguinte:
 
[...] No despacho saneador foi julgada inepta a petição inicial, determinando a extinção e a absolvição da instância dos réus habilitados J... e J...

O fundamento substancial da julgada ineptidão da petição inicial consiste no facto de não terem sido alegados factos essenciais que permitam a compreensão cabal sobre a causa eficiente dos pedidos dos autores.

Segundo o disposto no artigo 186º nº 2 do NCPC, diz-se inepta a petição:
 
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
 
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm distinguido claramente a situação da petição inepta da daquela simplesmente irregular ou deficiente, no sentido de que só a falta ou a ininteligibilidade absolutas do pedido ou da causa de pedir acarretam a ineptidão. [...]

Ora, procedendo à análise da factualidade exposta pelos autores, verifica-se que os mesmos desenharam com suficiente clareza uma acção de reivindicação contra o falecido réu, prevista no artigo 1311° do Código Civil, segundo o qual:

“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence". 
 
“2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

A acção de reivindicação deverá ser exercida pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor que não é proprietário, incumbindo ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem.

Entre os casos em que é lícito negar-se ao proprietário a restituição da coisa podem apontar-se o direito de retenção, o penhor, o usufruto, a locação, o comodato e qualquer outra relação obrigacional que confira a posse ou a detenção da coisa por parte do não proprietário.

Assim, provada a propriedade da coisa, a entrega desta só será recusada, se o demandado (o possuidor ou detentor) invocar (e provar) que lhe assiste a posse ou a detenção da coisa em virtude de uma relação obrigacional ou real que impeça o exercício pleno da propriedade, facto que, a ser alegado, constituirá excepção peremptória ao direito invocado pelo autor [Cfr Ac. STJ de 02.12.1986, in BMJ 362º-537].
 
A alegação e a prova do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada incumbem ao autor (artº 342º nº 1 do Código Civil), que terá de socorrer-se dos factos que demonstrem a aquisição originária do domínio, como a usucapião, ou a acessão ou a aquisição derivada (artº 1316º do Código Civil).

No caso dos autos mostra-se já provado que os autores são donos e legítimos proprietários do bem reivindicado, conforme consta da certidão da Conservatória do Registo Predial de Angra do Heroísmo – doc. fls 14, referido no artigo 7º da petição inicial.

Por outro lado, o réu alegou que ocupa o prédio reivindicado como arrendatário rural do mesmo e que é susceptível de ser oposto ao pedido de reivindicação feito pelos proprietários, ora apelantes, desde que demonstre, por contrato escrito, a existência de tal qualidade.

Ou seja, na acção de reivindicação, provada a propriedade dos autores sobre a coisa reivindicada, cabe aos réus, ora habilitados, o ónus da prova da existência de qualquer título ou causa legítima que fundamente a recusa de entrega do imóvel rústico.

Finalmente, uma breve referência ao pedido de indemnização formulado pelos autores nos artigos 15º, 16º, 17º e 18º da petição inicial.

Com os pedidos próprios da acção de reivindicação (reconhecimento do direito de propriedade e restituição da coisa) podem cumular-se outros pedidos acessórios, v.g. o pedido de indemnização.

A ocupação pelo réu, sem título, de um prédio que pertence aos autores é fundamento para a sua condenação no pagamento de uma quantia, a título de privação do uso; na verdade, a privação do uso de um bem decorrente de ocupação ilícita importa, em regra, na existência de um dano de que o lesado deve ser compensado.

Ainda que não se tenha provado que durante o período de privação o proprietário teria arrendado o imóvel por uma determinada quantia, não está afastado o seu direito de indemnização que considere o valor locativo do imóvel e, se necessário, pondere as regras da equidade.

A privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui um perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à detecção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.

A prova da ocorrência de danos, concreta e directamente imputáveis à privação, é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos benefícios que deixou de obter, nos termos do artigo 564º nº 1 do CC.

A ocupação ilícita de um prédio rústico, a ser provada, é causadora de dano para o proprietário, que consiste em ter sido temporariamente privado do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição, origina a obrigação de indemnizar.

Chegados aqui, podemos concluir que, demonstrada que se mostra desenhada na petição inicial (com excesso de articulados, é certo) uma acção de reivindicação com o correspondente pedido de indemnização, não haverá lugar à apontada ineptidão da petição inicial, como aconteceu no despacho recorrido.

Como facilmente se constata, o pedido e a causa de pedir encontram-se perfeitamente delineados, de tal modo que o réu não arguiu a ineptidão, o que significa que o réu interpretou convenientemente a petição inicial – NCPC artigo 186º nº 3, a contrario.

Finalmente, uma breve a actual referência ao actual espírito e filosofia do novo Código de Processo Civil.

Além do mais, importa ainda mencionar que o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária.

De facto, a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no CPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo” [Nosso acórdão de 16-04-2015, processo nº 4933-13.6TCLRS.L1-8, in www.dgsi.pt/jtrl].
 
Nesta conformidade, procedem as conclusões 1ª a 11ª das alegações de recurso, não havendo ineptidão da petição inicial, restando ao tribunal de primeira instância proceder com o andamento dos autos com vista ao apuramento dos factos conducentes à procedência ou improcedência da acção [...]."
 
MTS