24/06/2016

Jurisprudência (382)



Cláusulas contratuais gerais; dever de comunicação; 
contrato de fornecimento de energia eléctrica; prazo de prescrição; 
interrupção da prescrição; caducidade da acção



1. O sumário de RL 5/4/2016 (
93017/13.2YIPRT.L2-7) é o seguinte:

I– O dever de comunicação do teor das cláusulas contratuais gerais, que se encontra adstrito ao proponente, não se basta com a mera inclusão das referidas cláusulas no contrato singular antes do aderente subscrever o contrato. Tal dever apenas se realiza quando a comunicação seja levada a cabo, de forma adequada e com a antecedência necessária em função da importância do contrato e da extensão e complexidade das cláusulas a fim tornar possível o conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

II– É sobre o prestador dos serviços que impendia o ónus de demonstração do cumprimento dos deveres de comunicação e informação das ccg. 

III– Encontrando-se provado no processo que a prestadora do serviço não explicou ao utente as normas constantes do contrato, há que concluir que aquela não observou o comportamento que lhe era legalmente exigível (propiciar à contraparte a possibilidade de se assegurar do conteúdo das cláusulas do contrato, particularmente no que se reporta às que se prendiam com a facturação e condições de pagamento, entre as quais se previa um acréscimo de 1,5% nos juros de mora devidos). Consequentemente, por força do disposto no artigo 8.º, do DL 446/85, de 25-10, é de as considerar excluídas do contrato.

IV– O prazo de seis meses previsto no n.º 1 do artigo 10º da Lei 23/96, de 26 de Julho, é de prescrição; como tal, interrompe-se através da citação efectuada no âmbito de acção executiva instaurada pelo credor visando obter do devedor o pagamento do respectivo crédito, ainda que nessa acção este seja absolvido da instância por ilegitimidade.

V– No n.º 2 do artigo 10.º da Lei 23/96, de 26 de Julho, quis-se dar relevância ao pagamento levado a cabo pelo consumidor por forma a constituir o marco determinante do início do prazo (seis meses) de caducidade para o prestador do serviço instaurar a acção, afastando-os do regime (geral) contido no n.º 4 do mesmo preceito.

VI– O pagamento parcial de um crédito por prestação de serviços de energia eléctrica não assume, por isso, o alcance de afastar o regime ínsito no n.º 1 do citado artigo 10.º da Lei 23/96. Estão em causa prazos de diferente natureza (prescrição e caducidade) e, nessa medida, o pagamento parcial de uma factura terá de ser encarado, na perspectiva da prescrição, enquanto reconhecimento do direito do credor, ou seja, para efeitos de interrupção da prescrição, nos termos do artigo 325.º do Código Civil.
 

2. Da fundamentação do acórdão extrai-se o seguinte trecho: 

"Como decorre da factualidade provada [...], o montante referente à factura n.º (de € 19.613,20) foi parcialmente paga pelo Réu, encontrando-se em dívida a quantia de € 8.733,20.

Perante tal pagamento parcial e face ao disposto nos artigos 10.º, n.º 2, da Lei 23/96, e 298.º, n.º 2, do Código Civil, defende a Recorrente que se impõe afastar o regime de prescrição, por se tratar de um regime de caducidade. Nesse sentido defende a revogação da sentença dado que o Réu não invocou a caducidade, não sendo a mesma de conhecimento oficioso.

Segundo o entendimento preconizado pela Recorrente, o pagamento parcial do montante da factura, por força do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei 23/96, afasta o regime da prescrição, submetendo tal situação, unicamente, ao regime de caducidade o qual, por estarem em causa direitos não indisponíveis, teria de ser invocada pelo Réu.

Ainda que seja de entender que o n.º 2 do artigo 10.º citado respeite a um prazo de caducidade, não podemos subscrever o posicionamento da Autora quando parece concluir que o pagamento parcial faz afastar o regime da prescrição contido no n.º1 do mes mo preceito.

Vejamos.

Dispondo o n.º 2 do artigo 10.º da Lei 23/96, que "se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento" e o n.º4 do mesmo artigo, que “o prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos", o sentido da lei, no que toca ao prazo de caducidade do direito de accionar por parte do prestador de serviços, parece apontar para a especificidade das situações em que ocorra pagamento parcial. Nessas situações, a lei quis dar relevância ao pagamento levado a cabo pelo consumidor por forma a constituir o marco determinante do início do prazo (seis meses) de caducidade para o prestador do serviço instaurar a acção, afastando-os do regime (geral) contido no n.º 4 do mesmo preceito.

Entendemos, todavia, que a particularidade na contagem do prazo de caducidade relativamente às situações em que ocorra pagamento parcial não assume o alcance de afastar o regime ínsito no n.º 1 do preceito, que se reporta à prescrição do direito. Está-se perante prazos de diferente natureza e, nessa medida, o pagamento parcial de uma factura terá de ser encarado, na perspectiva da prescrição, enquanto reconhecimento do direito do credor, ou seja, para efeitos de interrupção da prescrição, nos termos do artigo 325.º do Código Civil.

Assim sendo e tendo presente que na situação sob apreciação, conforme resulta provado, o Réu procedeu ao pagamento parcial do montante da referida factura [...], há que considerar tais pagamentos enquanto efectivos reconhecimentos do direito (de crédito) da Autora que, como tal, fizeram interromper a prescrição.

Na sequência do já referenciado e de acordo com o disposto no artigo 326.º, do Código Civil, a interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, isto é, no caso, o mesmo prazo de seis meses.

Evidenciam os autos que o último pagamento levado a cabo pelo Réu, por conta da referida factura, ocorreu a 7-12-2012. Consequentemente e tendo-se iniciado novo prazo de seis meses após tal data, verifica-se que, quando da instauração da presente acção (com a entrada do requerimento de injunção ocorrida a 20-06-2013) e notificação do Réu no seu âmbito, já havia decorrido o prazo prescricional em causa.

Cabe por isso e quanto a esta parte confirmar a decisão recorrida ao julgar prescrito o direito da Autora." 


3. O art. 10.º L 23/1996, de 26/7, dispõe o seguinte:

"1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. 

2 - Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento. 

3 - A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data-limite fixada para efectuar o pagamento. 

4 - O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos. 

5 - O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão".

O problema que o acórdão teve de resolver resulta de uma discutível técnica legislativa na elaboração deste preceito. Não é claro por que razão o legislador sentiu a necessidade de operar com a prescrição e a caducidade, não se limitando a utilizar apenas um desses institutos. Se tivesse recorrido apenas à prescrição (de seis meses), o resultado seria exactamente o mesmo: após um pagamento parcial, iniciar-se-ia um novo prazo prescricional de seis meses, totalmente coincidente com o prazo de caducidade estabelecido no n.º 2 do art. 10.º L 23/1996.

Acresce ainda que a caducidade deve ser preferencialmente reservada para os casos em que o direito só pode ser exercido em juízo, ou seja, para os casos em que a lei atribui um direito, mas impõe a sua realização em juízo. Não é esse certamente o caso de um direito à cobrança de uma prestação de serviços.

MTS