28/06/2016

Jurisprudência (384)



Conflito negativo de jurisdição;
uso de água; servidão de passagem


1. TConf 10/3/2016 (050/15) decidiu o seguinte:

A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais.



2. Tem interesse conhecer este trecho da fundamentação do acórdão.

"II O único problema a resolver no âmbito deste recurso é o de saber a quem pertence a competência para o julgamento da presente acção.

Mostra-se assente para a economia do presente recurso a seguinte factualidade:

- Os Autores demandaram no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira C…………, SA, pedindo a sua condenação a reconhecer o ao uso da água proveniente da nascente existente no ………., artigo 12º rústico de ….., pertença de D………. e a servidão de passagem da água através da mina, desde a nascente até ao prédio dos Autores, atravessando o actual leito da Auto-Estrada, bem como a sua condenação a proceder à desobstrução da mina, com as características supra referidas, por forma a garantir o abastecimento de água ao seu prédio, nas aludidas circunstâncias, alegando para o efeito e em síntese que pela construção da obra designada por A32/IC2, por via da concessão do Estado à Ré C………, e aquando da realização das obras de construção da A32, esta ter destruído a mina, ou parte dela, soterrando-a, bem como os óculos, o que originou que os Autores perdessem a água da aludida mina, o que lhes causa prejuízo e desgosto.

- Nessa mesma acção foram chamadas a intervir como Rés as sociedades C…….. ACE e E……….., SA, respectivamente empreiteira e subempreiteira da aludida obra.

Quid inde?

A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.

Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.

Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.

In casu, a questão suscitada, prende-se com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o normativo inserto no artigo 66° do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.»,acrescentando o artigo 67º «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».

Neste conspectu, convém fazer apelo ao artigo 1º n° 1 do ETAF no qual se predispõe que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.», estando elencadas no artigo 4º, n° 1 de tal diploma, as questões que, nomeadamente, são da competência de tais Tribunais.

Quererá isto dizer que a intervenção dos Tribunais Administrativos se justificará se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, isto é, o que importará para declarar a competência daqueles Tribunais é saber se o conflito entre as partes nestes autos, é um conflito de interesses públicos e privados e se este mesmo conflito nasceu de uma relação jurídica administrativa.

Não obstante as questões enunciadas no supra mencionado normativo sejam meramente exemplificativas, das mesmas poder-se-á retirar a ratio para o enquadramento de outras que ali não vêm expressamente consignadas, mas cuja ambiência seja suficiente para «atrair» a competência dos Tribunais do foro administrativo o que significa que a mera presença da Administração, como contraente num contrato, não é suficiente para qualificar o mesmo de «administrativo», uma vez que, apesar deste se destinar à «(...) realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria colectividade, isto é de interesses que só têm protecção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos - ou por aqueles que actuam por “devolução” ou “concessão” pública (...)» procura-se trazer ainda «(...) para o direito administrativo todos os contratos que tragam marcas - importantes e juspublicisticamente protegidas (específica ou exclusivamente) - de administratividade (...)», cfr E. de Oliveira, CPAdministrativo Anotado, 2ª edição, 811.

O art. 4º do ETAF discrimina, nas diversas alíneas, qual o objecto dos litígios que compete apreciar pela jurisdição administrativa (e fiscal), especificando na sua alínea i) que são da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

Daqui decorre, além do mais, que se terá de apurar quais as circunstâncias em que um sujeito de direito privado assume o regime específico da responsabilidade civil extra contratual do ente público.

Na tese do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, apelando à circunstância de estarmos «(...) perante um litígio que radica na violação do direito de propriedade e, como tal, tem de ser solucionado apelando ao regime jurídico da responsabilidade extracontratual. Os AA. pretendem que a Ré proceda à desobstrução da mina, que impede os AA. de usar a água da mina no seu prédio, como têm direito a fazer, o que lhes causa prejuízo, em razão da realização pelas RR. de trabalhos de construção de uma auto-estrada, no âmbito da sub-concessão de obra pública que lhes foi atribuída.(. . .)» e chamando à colação o DL 329-A/2007, de 27 de Dezembro, que aprovou as bases da concessão da concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, atribuiu tal concessão à C……………. SA, concluiu que «(...) A actuação da Ré C……….., como concessionária, da interveniente C……….., ACE, como empreiteira, e da Ré E………., S.A., como subempreiteira, encontra-se, assim, inserida numa actividade de cariz ou natureza administrativa, porquanto as zonas das auto-estradas e os conjuntos viários a elas associados que constituem o estabelecimento físico da concessão em causa integram o domínio público do concedente (Capítulo II do DL 329-A/2007) Por outras palavras, a sua actuação insere-se numa actividade que visa a prestação de um serviço público pelo Estado e o consequente aumento do património deste mediante a construção ou reforço de rede viária nacional particularmente, no que tange às auto-estradas do norte do País.(...) Perspectivando a questão no plano civilístico, quando está em causa uma empreitada de obras públicas, como no caso decidendo, podemos confrontar-nos com três situações:

a) o Autor demanda somente o dono da obra, pessoa colectiva de direito público ou pessoa colectiva de direito privado, mas investida de poderes e autoridade públicos o tal “falso privado”;

b) o Autor demanda apenas o empreiteiro, pessoa colectiva de direito privado;

c) o Autor demanda o dono da obra e o empreiteiro, com as qualidades referidas nas anteriores alíneas.

Na primeira situação não existe qualquer dúvida em atribuir a competência aos Tribunais Administrativos. O mesmo sucede na terceira hipótese. Neste caso, podemos citar Vieira de Andrade (op. cit., pg. 59) que defende ser legítima a atracção da resolução global do litígio para essa jurisdição, alargada aos aspectos do direito privado, seja para prevenir dúvidas, seja para evitar a duplicidade de processos independentemente da manutenção de uma diferença de regimes jurídicos aplicáveis. No mesmo sentido vide STJ de 12.02.2007 in http://www.dgsi.pt/ processo nº 07B238.

Defender que na segunda situação a competência deve ser atribuída aos Tribunais Judiciais parece ser solução pouco coerente na medida em que tal equivaleria a deixar na disponibilidade do demandante a escolha do Tribunal competente para a resolução do litígio e abrir caminho para defraudar a Lei. Com efeito, bastaria propor a acção apenas contra o empreiteiro para desaforar dos Tribunais Administrativos o respectivo julgamento.

Nesta hipótese e, na decidenda, devemos socorrer-nos da alínea i) do n.° 1 do artigo 4.° do ETAF

No domínio das obras públicas importa trazer à colação o regime consagrado pelo DL n.° 59/99, de 2 de Março que no seu artigo 1.º, n.º 2, estatui que aquelas podem ser executadas por empreitada, concessão ou administração directa.

Neste diploma existem normas que apontam para a aplicação de um regime de direito público.(…)
».

De seu lado, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, declinou a sua competência material, brevitatis causa, «(...) A questão da competência do tribunal afere-se pelo pedido, pela pretensão do autor e seus fundamentos, ou seja pela causa de pedir, enquanto facto jurídico concreto devidamente explicitado, segundo a teoria da substanciação, que rejeita afirmações vagas, não factualmente concretizadas, ou seja pelo que é «disputatum”, em antítese com o que, mais tarde, será decidido.

Vejamos, então.

No caso sub judicie os Autores pretendem que a Ré e o Interveniente sejam condenados a reconhecer o seu alegado direito ao uso da água proveniente da nascente existente no ………, artigo 12 rústico de ……..e à servidão de passagem de água através da mina desde a nascente até ao seu prédio, atravessando o actual leito da AE e a procederem à desobstrução da mina, por forma a garantir o abastecimento de água ao seu prédio.

Os Autores fundam, no essencial, estes pedidos no alegado direito de propriedade do prédio dos Autores e no alegado direito de servidão de aproveitamento de águas integrado naquele prédio.

Estamos assim perante uma acção de reivindicação onde apenas existe uma pretensão imediata: a entrega da coisa, neste caso, das águas que provêm da referida nascente e assim o reconhecimento do direito de servidão do seu aproveitamento, prevalecendo aqui única e exclusivamente a questão real da reivindicação e não qualquer questão indemnizatória (a qual, traduzida na desobstrução da mina e assim restituição aos Autores daquela passagem de águas, é apenas o objecto mediato da presente acção e não o seu objecto imediato).

Assim, e perscrutadas as diversas alíneas do artigo 4.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais facilmente se conclui pela absoluta impossibilidade de subsumir o litígio a que os presentes autos respeitam a qualquer uma das situações aí vertidas, não cabendo por isso na competência dos tribunais administrativos. (…)
»

Se bem que podemos constatar que ambas as jurisdições puseram os termos da equação de forma correcta, na medida em que enunciaram que a medida da competência se afere pela análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do Tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo Autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos - pedido e causa de pedir - as conclusões a que chegaram, mostram-se dissonantes, sendo certo que a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, nesta mesma sede, tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais, cfr inter alia os Ac de 5 de Junho de 2014 (Relator Paulo Sá); 19 de Junho de 2014 (Relator Alberto Augusto Oliveira); 10 de Setembro de 2014 (Relator Melo Lima); 25 de Setembro de 2014 (Relator Fernandes do Vale); 30 de Outubro de 2014 (Relatora Fernanda Maçãs), in www.dgsi.pt.

No caso sujeito, a acção, na configuração resultante dos pedidos e causa de pedir não cabe na competência dos tribunais administrativos, mas nos tribunais da jurisdição comum.

Se não.

Os Autores peticionam aqui o reconhecimento do seu direito ao uso da água proveniente da nascente existente no …………, artigo 12° rústico de …….., pertença de D………… por usucapião e a servidão de passagem da água através da mina, desde a nascente até ao prédio dos Autores, atravessando o actual leito da Auto-Estrada, bem como a sua condenação a proceder à desobstrução da mina, com as características supra referidas, por forma a garantir o abastecimento de água ao seu prédio, nas aludidas circunstâncias, alegando para o efeito e em síntese que pela construção da obra designada por A32/IC2, por via da concessão do Estado à Ré C…………, e aquando da realização das obras de construção da A32, esta ter destruído a mina, ou parte dela, soterrando-a mina e os orifícios de acesso (óculos), o que originou que os Autores perdessem a água da aludida mina, o que lhes causa prejuízo e desgosto

O que temos aqui em tela, é uma acção tipicamente real, já que os Autores invocam a aquisição do direito a usar a água proveniente da nascente, que teriam adquirido por usucapião e a servidão de passagem da água através da aludida mina, com a consequente condenação à sua desobstrução: estamos no âmbito da defesa de direitos reais, nos termos do artigo 1315º do CCivil, o que transcende manifestamente a competência dos tribunais administrativos, pois não estamos perante o exercício de quaisquer direitos e/ou deveres públicos, cfr Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2ª edição, 167; Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, 148; Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa - Lições, 3ª Edição, 2000, 79.

Esta asserção conduz-nos inexoravelmente à competência dos tribunais comuns para a apreciação da temática posta na presente acção."


MTS