29/06/2016

Jurisprudência (385)



Título executivo; letra de câmbio; prescrição;
desconto; legitimidade processual


1. O sumário de RC 16/3/2016 (684/14.2T8CBR-A.C1) é o seguinte:

I. A letra de câmbio privada da sua eficácia cambiária por força da prescrição é válida como título executivo, caso os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam pelo exequente alegados no requerimento executivo, consoante dispõe o art.º 703º, n.º 1, al. c) do nCPC.

II. Tal título pode ainda valer como reconhecimento unilateral da dívida ou promessa de prestação, caso em que, por aplicação do regime do nº 1 do art.º 458º do CPC, é presumida a existência da relação fundamental, com a consequente dispensa por banda do credor do ónus da respectiva prova.

III. Tal isenção, contudo, não abrange o ónus da alegação dos factos constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, da qual emerge o direito de crédito que o exequente pretende satisfazer, impondo-se que proceda à sua cabal identificação, de modo a permitir ao executado que se desincumba do ónus probatório que sobre ele recai.

IV. Sendo o Banco exequente portador de uma letra de câmbio que lhe foi endossada pelo sacador no âmbito de um contrato de desconto bancário, encontrando-se extintas as obrigações cartulares por ter operado a prescrição, não dispõe de título executivo contra o sacado/aceitante, que naquele contrato não interveio e por ele não se vinculou.

2. Retira-se da fundamentação do acórdão a seguinte parte:

"O desconto é um contrato nominado - vem previsto como operação bancária no art.º 362.º do CComercial - embora o legislador não lhe tenha atribuído uma disciplina específica.

Comummente descrito como contrato atípico, próximo do mútuo - será um mútuo com “datio pro solvendo” [
Prof. Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 3.ª edição, pág. 548. Na jurisprudência, acórdão do STJ de 14/10/2003, revista n.º 2662/03, acessível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=16266&codarea=1] -, pode definir-se como “o contrato pelo qual o banqueiro entrega ao seu cliente uma determinada quantia, em troca de um crédito, ainda não vencido, sobre um terceiro [Ob. e autor cit. na nota anterior, pág. 546.]. Normalmente, porém, e é essa a modalidade que aqui importa, o desconto funciona sobre títulos de crédito, cedendo o cliente ao banqueiro pela via do endosso um título que incorpora o débito do terceiro e sendo abonado pelo banco de uma importância calculada sobre o valor nominal da letra, deduzido dos juros, comissões e despesas devidos pela realização da operação [Para uma descrição detalhada desta operação, Carolina Cunha, [“Letras e Livranças: Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime” (2012)], págs. 183-184].

De realçar que “a prévia entrega das letras endossadas constitui um dos traços característicos do desconto” [Fernando Olavo “Desconto Bancário”, págs. 48-49, citado por Carolina Cunha, ob. cit., pág. 187], daí que a proposta feita ao banco pelo cliente descontário seja entregue acompanhada pelo título ou títulos a descontar já endossados, endosso que é geralmente em branco, tal como de resto ocorreu no caso em apreço.

Perfectibilizado o contrato com a entrega ao banco dos títulos endossados e pela antecipação, por este ao cliente descontário, da importância correspondente ao desconto efectuado, tratando-se, como é o caso, de uma letra, fica aquele vinculado a apresentá-la a pagamento ao aceitante na data do vencimento, dada a sua qualidade de obrigado principal (cf. art.º 28.º/I LULL). Recebendo deste o valor constante do título dá-se a extinção, pelo cumprimento, do contrato de desconto; recusando o aceitante o pagamento, fica o banco autorizado a demandar todos os obrigados cambiários caso opte -e possa- accionar o título cambial, podendo ainda recorrer a acção baseada na relação fundamental do desconto, “na qual o sacador e/ou endossante ocupa a posição jurídica de contra parte” [Carolina Cunha, obra citada, pág. 203.].

Vistos os elementos essenciais do tipo contratual em referência, fácil é concluir que o banco exequente não alegou no requerimento executivo todos os elementos individualizadores do mesmo, não suprindo tal alegação a mera identificação, por apelo ao número que internamente lhe atribuiu, de uma “operação de desconto”. E tanto isto é exacto que a defesa do embargante resultou prejudicada, tendo tido como preocupação dominante impugnar a também genericamente invocada existência de “transacções comerciais” entre os executados, as quais constituiriam a relação fundamental subjacente à emissão do título.

De outro lado, a letra junta aos autos, e único elemento de prova a considerar, contraria a alegação do banco exequente de que o descontário foi o aqui embargante, que ocupa no título em causa a posição de sacado e aceitante, tendo o título sido endossado ao banco, como teria que ser, pela sociedade sacadora (endosso em branco como se referiu). Aliás, conforme o próprio banco apelado alegou, a executada sociedade encontrava-se com dificuldades de tesouraria, daí ter sacado a letra em causa, não fazendo pois sentido que fosse o aceitante (devedor) a financiar-se junto do banco endossado, o que estava impedido de fazer pela razão fundamental de não ser titular do crédito cartular a ceder. É que o aceite, recorda-se, “é o negócio jurídico unilateral não receptício dirigido à constituição da obrigação cambiária principal”, declaração cujo conteúdo se esgota na assunção da respectiva obrigação, sem qualquer incidência sobre o lado activo da relação jurídica (cambiária). O aceitante é o obrigado principal e não o titular do direito cambiário [Idem, págs. 95-96].

Em razão do que vem de se dizer, e porque a prescrição do direito de acção contra os obrigados cambiários obstava a que o banco exequente e ora apelado demandasse o sacador e o sacado/aceitante (o sacado, conforme é sabido, não é obrigado cambiário, assumindo tal posição por via do aceite - cf. art.º 28.º/I LULL) com fundamento na relação cartular, restava-lhe invocar a relação fundamental, no caso, o contrato de desconto, dada a sua qualidade de “credor originário do descontário” [Ac. do STJ de 21/6/1983, n.º 0708341, disponível em www.dgsi.pt. citado por Carolina Cunha na obra que vimos citando – cf. nota 258 na pág. 203]. No entanto, tal relação subjacente só ao descontário - no caso, conforme se extrai da análise do documento junto, a sociedade sacadora/endossante - podia ser oposta, não dispondo o banco exequente de título executivo contra o aqui apelante, que não interveio no contrato e, consequentemente, não assumiu, no âmbito da daquela relação fundamental - única, repete-se, que o banco exequente se encontra em condições de invocar- qualquer obrigação.

Em conclusão, a invocada “operação de desconto (e respectivo endosso) não pode, pois, relativamente ao embargante, ser juridicamente qualificada como relação subjacente à emissão do título de crédito em questão” [Neste preciso sentido, contemplando situação semelhante, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, acórdão da Relação de Lisboa de 30/4/2013, processo n.º 9138/11.8TBOER-A.L1, ainda em www.dgsi.pt]. Com o que procedem os argumentos recursivos impondo-se, nesta parte, a revogação da decisão proferida."

MTS