07/07/2016

Jurisprudência (393)


PER; ónus da prova; medida da prova
igualdade dos credores


1. O sumário de RP 7/4/2016 (1709/15.0T8AVR.P1) é o seguinte:

I - Considerando o carácter “predominantemente extrajudicial” do PER, e a imperatividade do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, que expressamente impõe ao credor reclamante o ónus da prova “em termos plausíveis, em alternativa” de que a sua situação ao abrigo do plano era previsivelmente menos favorável do que a que ocorreria na ausência de qualquer plano, ou que o plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, face à não alegação por parte do reclamante, dos pressupostos enunciados, legitimadores da não homologação, não pode o julgador apreciá-los oficiosamente na decisão prevista no n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE.
 
II - O princípio da igualdade também se concretiza no tratamento de forma diferente, de realidades diversas, traduzindo-se na ideia geral de proibição do arbítrio.
 
III - Entre as “razões objetivas” que justificam a diferenciação dos credores, nos termos do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE, destaca-se a diferenciação entre créditos garantidos e privilegiados, créditos comuns e créditos subordinados, prevista no artigo 47.º do mesmo diploma legal.
 
IV - Decorrendo da lei que em primeiro lugar é dado pagamento aos créditos com garantias ou privilégios creditórios e o remanescente, se o houver, será distribuído pelos créditos comuns (artigos 174.º, 175.º e 176.º do CIRE), o Plano de Recuperação que distingue e privilegia um crédito hipotecário e um crédito da Segurança Social, relativamente a um segundo patamar onde integra todos os créditos comuns, não viola o princípio da igualdade enunciado no n.º 1 do artigo 194.º do CIRE.
 
2. Tem interesse conhecer esta parta da fundamentação do acórdão:

"Nas suas conclusões de recurso, os recorrentes tecem longas considerações sobre “um juízo de prognose” com base no qual concluem que “os credores sempre ficariam beneficiados com o presente plano, através do qual recebem 30% dos seus créditos, o que não sucederia se aqueles fossem declarados insolventes, em que receberiam uma ínfima parte do que lhes é devido”
.
No entanto, salvo o devido respeito, o credor E…, SA. (recorrido), que deduziu oposição à homologação, no seu requerimento (de 27.11.2015), não cumpre o disposto no n.º 1 do artigo 216.º do CIRE.
 
Com efeito, sob a epígrafe “Não homologação a solicitação dos interessados”, dispõe o citado normativo:
 
«1 - O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
 
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
 
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
[…».]».
 
O credor oponente não demonstrou (não alegou, sequer) que a sua situação ao abrigo do Plano era previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer Plano, ou que o Plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência.
 
Alegou sim, e apenas (tendo sido esse o argumento acolhido na sentença recorrida), que o Plano trata de forma “manifestamente desproporcional” os credores com privilégio creditório (D… e Segurança Social), violando o princípio da igualdade relativamente aos credores comuns [...].
 
É, essencialmente, com base nesse fundamento, que a sentença recorrida recusa a homologação do Plano de Recuperação, como se depreende do segmento que se transcreve [...]:
 
«Apreciando e decidindo:
 
Salvo o devido respeito por outra opinião, pensamos que o pagamento de apenas 30% do valor do capital dos créditos comuns implica violação relevante do princípio da igualdade, traduzindo uma diferenciação exagerada, abusiva e injustificada para esses credores, em benefício do credor hipotecário e da Segurança Social.
 
Ora, dispõe o art. 194.º do CIRE que o plano de insolvência deve obedecer ao princípio da igualdade, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas (nº1), sendo que o tratamento menos favorável a credores em idêntica situação apenas é admitido com o consentimento do credor afectado (nº2).
 
Como resulta do disposto no art. 17.º-F/5 do CIRE, da remissão para os arts. 215.º e 216.º do mesmo diploma, e tem sido salientado pela jurisprudência (cfr., por todos, o Ac. do TRP de 28/4/2015, processo nº506/14.4TYVNG, disponível em texto integral na base de dados do IGFIJ na internet), o princípio da igualdade é igualmente aplicável em processo especial de revitalização.
 
Para além disso, atenta a natureza essencial desse princípio, e embora ele não seja absoluto (admitindo diferenciações com fundamento material bastante), a sua violação, caso se tenha por verificada, implica sempre um violação não negligenciável das normas materiais aplicáveis, nos termos do art. 215.º do CIRE, constituindo causa de recusa da homologação do plano.
 
É o que também se reconhece na jurisprudência dos Tribunais superiores (cfr. Ac. do TRP de 8/7/2015, processo nº261/14.8TYVNG, disponível em texto integral na mesma base de dados).
 
Por outro lado, na ausência de qualquer plano, o credor recusante teria direito a receber, no imediato, € 12.066,32, ao passo que, com a aceitação do plano, apenas recebe € 3.892,01 e faseadamente, por um período de dez anos, daqui resultando recebimentos simbólicos de € 30,17 por mês.
 
Já em comparação com a situação de insolvência, com o mesmo resultado (extinção das dívidas), através do instituto da exoneração do passivo restante, é previsível que os credores comuns recebessem cerca de € 200,00 por mês, durante cinco anos (710 + 500 – 2 SMN), o que representa quase o dobro do que está previsto, no mesmo período, no plano de recuperação em análise (871 – 750 para o credor hipotecário).
 
É certo que, no âmbito do plano, o pagamento se prolonga por mais cinco anos, mas crê-se que, face aos valores muito baixos previstos para o início e ao protelar desse pagamento, isso não representa compensação suficiente para os credores comuns.
 
Termos em que, a nosso ver, se consideram preenchidos os obstáculos à homologação do plano previstos nos arts. 215.º e 216.º/1, al. a), do CIRE.
 
Pelo exposto, decido recusar a homologação do plano de recuperação.»
 
Como se referiu em nota anterior, a prova da eventualidade referida na al. a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE incumbe ao reclamante, pressupondo um complexo exercício intelectual de prognose, que se traduz em comparar o que é previsto resultar do plano para o reclamante com aquilo que aconteceria na ausência de qualquer plano, no caso de se concretizar a liquidação universal do património do devedor. Quanto aos credores, reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele. 
 
Ora, in casu, o reclamante nem sequer alegou tal eventualidade, centrando a sua oposição na violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 194.º do CIRE, para o qual remete genericamente o n.º 5 do artigo 17.º-F do mesmo diploma legal [...].
 
Decorre do exposto que se deverá ter em conta, no que concerne aos pressupostos legais da homologação do Plano de Recuperação, a averiguação sobre se o mesmo viola o princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do CIRE.
 
Em suma, não tendo o credor reclamante alegado, sequer, a eventualidade enunciada no n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, perante a assertividade da redação do corpo do artigo [“contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que”], não incumbia ao Tribunal fazer tal indagação.
 
Tal conclusão decorre da natureza sui generis deste procedimento (Processo Especial de Revitalização), que não deixa ao juiz grande margem de ponderação sobre a situação económica do requerente do PER, nomeadamente no momento do despacho liminar, como se conclui do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, onde se determina que o requerente deverá comunicar a sua pretensão de início das negociações conducentes sua recuperação ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência, “devendo este nomear, de imediato, por despacho, administrador judicial provisório, aplicando-se o disposto nos artigos 32.º a 34.º, com as necessárias adaptações, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 3 da mesma norma”.
 
Infere-se da norma em apreço que não compete ao juiz no momento do despacho liminar fazer uma análise preliminar sobre se o devedor se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas ainda suscetível de recuperação, apesar de a lei lhe conferir o poder de, nessa fase processual, rejeitar o PER em caso de manifesta inviabilidade, ou no caso de se verificar a situação prevista no n.º 6 do artigo 17.º-G.
 
Como se refere no acórdão desta Relação (e Secção), de 30.06.2014 [Proferido no Processo n.º 1251/12.0TYVNG.P1, acessível no site da DGSI]: «[a] intervenção do juiz neste processo urgente é muito restrita, porquanto o interesse público radica na primazia da vontade dos credores, confiando-se, quase plenamente, nos mesmos, no administrador judicial bem como, de certa forma, no devedor, no sentido de salvaguardarem os abusos prejudiciais para aqueles e para a saúde da economia.».
 
Num outro acórdão desta Relação, de 1.06.2015, proferido no Processo n.º 216/14.2T8AMT.P2 [...], conclui-se que antes da alteração ao processo de insolvência, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que aditou as normas reguladoras do PER, o regime da insolvência privilegiava a “garantia patrimonial dos credores”, desígnio expressamente assumido pelo legislador no preâmbulo do CIRE: “[o] objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”, constituindo a referida alteração legal uma inflexão do legislador, no que respeita ao ‘objectivo primordial’ do processo de insolvência, que passou a ser a recuperação do devedor, em detrimento da liquidação imediata do seu património para satisfação dos credores [...].
 
Com a introdução das normas que corporizam o PER, o legislador consagrou “um mecanismo predominantemente extrajudicial” [Salazar Casanova/Sequeira Dinis], PER O Processo Especial de Revitalização, Coimbra Editora, 2014, pág. 8.], que permite alguma ambiguidade no que respeita à definição dos poderes do julgador e do momento em que devem ser exercidos.
 
Quando muito, o controlo sobre a verificação dos pressupostos da revitalização ocorrerá a final do procedimento, no momento em que o tribunal é chamado a homologar o acordo de recuperação, dado que tal acordo, para que seja eficaz, exige a homologação judicial (art.º 17-F nº 5 do CIRE). Todavia, mesmo nesse caso, se os credores – ou a maioria exigível deles – tiverem aprovado o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, não parece que ao juiz – descontada a verificação de qualquer outro fundamento de recusa de homologação do plano – reste outra alternativa que não a homologação desse acordo…».
 
Considerando o carácter “predominantemente extrajudicial” do PER, e a imperatividade do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, que expressamente impõe ao credor reclamante o ónus da prova “em termos plausíveis, em alternativa” de que a sua situação ao abrigo do plano era previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer Plano, ou que o Plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, face à não alegação por parte do reclamante, dos pressupostos enunciados, legitimadores da não homologação, não vemos, salvo todo o respeito devido, como possa o julgador apreciá-los.
 
Subjacente à formulação legal e à interpretação que a nosso ver a mesma comporta, há um sério risco de benefício do devedor em detrimento dos legítimos interesses do credor. Temos, no entanto, que presumir que o legislador o terá acautelado, face ao princípio proclamado no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»."
 
[MTS]