20/07/2016

Jurisprudência (403)


Acórdão; reclamação; omissão de pronúncia; 
causa de pedir; factos complementares


1. O sumário de STJ 7/4/2016 (6500/07.4TBBRG.G2.S3) é o seguinte:

I - Como deriva do art. 666.º do NCPC (2013), a competência para apreciar uma reclamação dirigida a um acórdão – mecanismo que é impassível de ser confundido com o recurso – pertence exclusivamente ao colectivo que o proferiu, sendo que os magistrados judiciais que o integrarão não se podem qualificar como “juízes de outro tribunal” para efeitos de suscitação do impedimento a que alude a al. e) do n.º 1 do art. 115.º desse diploma. Tal solução normativa não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.  

II - O cometimento do vício de omissão de pronúncia supõe que a questão cujo conhecimento se omitiu seja relevante para composição da lide, o que exclui a relevância de argumentos e de matérias despiciendas para aquele propósito ou cujo conhecimento se tenha por prejudicado pela solução dada ao litígio. 

III - Os princípios estruturantes do processo civil, em vigor desde 1995/96, apontam no sentido de que, tendo o autor alegado, na petição inicial, o núcleo essencial dos factos que integram a causa de pedir, é possível que sejam processualmente adquiridos factos que complementem ou concretizem esse núcleo e que estes suportem a decisão de procedência da causa. O juízo sobre o desfecho da causa não tem que assentar exclusivamente nos factos descritos na petição inicial, como derivaria de uma visão desproporcionadamente formalística e preclusiva do ónus de alegação.

IV - Tendo o autor logrado caracterizar, em termos minimamente adequados o núcleo da causa de pedir que invoca – a usucapião – e tendo-se concluído que era possível ter como processualmente adquiridos os factos que traduzem o efectivo exercício de actos possessórios sobre a parcela de terreno cuja titularidade é controvertida, não se verifica a nulidade a que se reporta a al. c) do n.º 1 do art. 618.º do NCPC. 

V - Às considerações expostas em III e IV não subjaz uma interpretação do disposto no art. 5.º e no n.º 4 do art. 607.º (ambos do NCPC) segundo a qual a falta de alegação de factos essenciais pode ser suprida judicialmente, antes se assumindo que as imprecisões e deficiências que afectam a descrição da matéria de facto não se traduzem numa omissão de alegação do núcleo fundamental desta. 

VI - O raciocínio referido em V é compatível com os normativos aí mencionados e em nada afecta o direito de defesa – pois este é plenamente garantido pela estrutura contraditória da audiência final –, não contendendo, outrossim, com quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.

2. Retira-se da fundamentação do acórdão o seguinte trecho:

"Tratam ainda os reclamantes de arguir a ininteligibilidade da decisão, por contradição entre os fundamentos e a decisão, já que – partindo-se do princípio de que o A. teria o ónus de alegar a prática de actos possessórios que abrangessem ou incluíssem a parcela cuja titularidade era controvertida – teria o acórdão contemporizado com a procedência da acção de reivindicação, apesar de reconhecer algum nível de imprecisão ou deficiência – de ambiguidade ou equivocidade – no modo como a matéria factual havia sido alegada na petição e transposta para os pontos da base instrutória.

Saliente-se que a argumentação dos reclamantes assenta numa visão desproporcionadamente formalista e rigidamente preclusiva do processo civil, manifestamente incompatível, não apenas com o Código de 2013, mas com princípios estruturantes em vigor desde 1995/96 – segundo a qual qualquer insuficiência, deficiência ou imprecisão na exposição e descrição dos factos substantivamente relevantes na petição inicial deveria ditar a irremediável improcedência da acção.

Sucede, porém, que há muito deixou de ser assim no nosso ordenamento processual: desde que o A. tenha alegado na petição o núcleo essencial, caracterizador da causa de pedir, é perfeitamente possível que sejam ainda processualmente adquiridos, durante o processo,factos complementares ou concretizadores daquele núcleo essencial – e que poderão servir legitimamente de suporte a uma decisão de procedência da acção; ou seja: o que é decisivo para o juízo de procedência ou improcedência não é apenas – como o era na referida e há muito ultrapassada visão desproporcionadamente formalística e preclusiva do ónus de alegação da parte – o elenco de factos descritos inicialmente na petição, mas o conjunto de factos processualmente adquiridos até ao termo do processo, após realização das diligências de produção de prova.
 
Daí que – tendo-se entendido que, apesar das reconhecidas insuficiências ou imprecisões da petição, o A. logrou caracterizar na petição, em termos minimamente adequados, o núcleo essencial caracterizador da causa de pedir invocada (a usucapião abrangendo a totalidade física do imóvel) – a solução do litígio dependia de saber se podia considerar-se processualmente adquirido o facto traduzido no efectivo exercício de actos possessórios sobre – também- a parcela de terreno cuja titularidade era concretamente controvertida: e foi naturalmente a resposta positiva a esta questão, aprofundadamente explicitada no acórdão, a fls. 1956/1958, que permitiu manter o decidido pela Relação no acórdão recorrido.

Improcede também, deste modo, a segunda nulidade imputada ao acórdão reclamado.

Por outro lado, é manifesto que o acórdão recorrido não interpretou as normas dos art. 5º e 607º, nº4, do CPC no sentido de que a falta de alegação de factos essenciais integradores da causa de pedir pode ser suprida pelo Tribunal com recurso a regras de experiência e presunções naturais: como decorre claramente das anteriores considerações, todo o acórdão está construído no pressuposto de que as imprecisões, insuficiências e ambiguidades que afectavam a descrição da matéria de facto na petição não implicavam a omissão de alegação do núcleo essencial desta : o que ocorreu, de forma paradigmática, foi a aquisição processual de factos concretizadoresdaquele núcleo factual essencial, referentes ao exercício pelo A. de actos possessórios sobre toda a realidade física do prédio, solução que, não só é perfeitamente compatível, como é imposta pela disciplina constante daqueles preceitos legais, em nada colidindo com o direito de defesa (plenamente garantido pela estrutura contraditória da audiência final) ou com quaisquer preceitos ou princípios constitucionais."
 
[MTS]