21/07/2016

Jurisprudência (404)



Matéria de facto; matéria de direito; 
poderes do STJ


1. O sumário de STJ 7/4/2016 (7895/05.0TBSTB.E1.S1) é o seguinte:

I - A actividade de transporte de uma grua, através de engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, ficando esta apenas com as rodas traseiras a rodar no asfalto, constitui uma actividade perigosa para efeitos de aplicação da presunção de culpa consagrada no art. 493.º, n.º 2, do CC.

II - Para se exonerar da sua responsabilidade, terá o exercente da actividade perigosa de demonstrar que foram adoptadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir os danos, não sendo suficiente a prova de terem sido cumpridos os comuns deveres de cuidado que o vinculavam.

III - Não sendo possível provar directamente a observância de todas as cautelas necessárias, só por via indirecta se conseguirá satisfazer o ónus liberatório, demonstrando-se que a causa real do evento lesivo é alheia à esfera de risco do exercício da actividade perigosa.

IV - A inserção na matéria de facto da conclusão de que “O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução” constitui um juízo valorativo que é de censurar, já que, apesar de o STJ conhecer apenas, em regra, de matéria de direito, é-lhe lícito verificar se determinada proposição, retida como facto provado, reflecte uma questão de direito ou um juízo de feição conclusiva.

V - Não tendo sido feita prova da causa real e efectiva do acidente e da danificação da grua, não pode concluir-se, por esta via, pela exoneração da responsabilidade da exercente da actividade perigosa.

VI - A prova do cumprimento de “todas as providências” implica a demonstração de que foram empregues todos os meios para evitar que a circulação de um reboque, com uma grua atrelada, com as rodas suspensas, numa situação de elevada instabilidade, venha a originar um acidente; pelo que, na falta dessa demonstração, não pode, também por esta via, a exercente da actividade perigosa ver excluída a sua responsabilidade.
 
2. Da fundamentação do acórdão retira-se a seguinte passagem:

"[...] Ainda que o Supremo Tribunal de Justiça conheça apenas de matéria de direito – com as excepções, não verificáveis no caso dos autos, da segunda parte do nº 3, do art. 674º, do CPC –, entende-se que lhe cabe ainda avaliar do respeito pelo princípio da substanciação (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, II, 3ª ed., págs. 353 e segs,) do qual decorre também a necessidade de especificação factual nas sentenças. Deste modo, “Não podendo o Supremo Tribunal de Justiça apreciar a bondade da decisão de facto, proprio sensu, é-lhe lícito contudo – por se tratar já de matéria jurídica – verificar se determinada proposição, retida como facto provado, reflecte (…indevidamente e em que medida) uma questão de direito ou um juízo de feição conclusiva ou valorativa.” (acórdão de 29/04/2015 (proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt). No mesmo sentido, ver os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/06/2012 (proc. nº 265/03.6TBRMR.L1.S1), de 10/09/2015 (proc. nº 819/11.7TBPRD.P1.S1) in sumarios.stj.pt, e de 18/02/2016 (proc. nº 1320/05.3TBCRB.C1), ainda não publicado.

Ora, a inserção na matéria de facto da conclusão de que “O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução”, sem fundamentação que permita sustentá-la, constitui um juízo valorativo que deve ser censurado por este Supremo Tribunal."
 
3. Do trecho transcrito resulta que o problema não está tanto na conclusão valorativa do tribunal, mas mais na falta da sua fundamentação. Importa ter presente que, tendo o nCPC removido a separação entre o julgamento da matéria de facto e de direito e, portanto, permitido uma (inevitável) combinação entre a matéria de facto e de direito, não pode ser retirada ao tribunal a possibilidade de fazer juízos valorativos e conclusivos sobre a matéria de facto. A única condição é que esses juízos tenham suficiente apoio na matéria de facto dada como provada ou não provada.
 
Seria desejável que se encontrasse definitivamente ultrapassada uma certa "escolástica" que se instalou na prática dos tribunais, nomeadamente na proibição da utilização de conceitos jurídicos para enquadrar a matéria de facto e do recurso a juízos conclusivos ou de valor para referir a matéria de facto (nomeadamente, aquela que deve ser provada). As únicas coisas que podem ser relevantes é que a apreciação da matéria de facto esteja devidamente fundamentada e que o julgamento de direito esteja de acordo com a matéria de facto provada e não provada.
 
MTS