13/07/2018

Jurisprudência (842)


Competência internacional; Reg. 1215/2012
lugar do cumprimento

1. O sumário de STJ 14/12/2017 (143378/15.0YIPRT.G1.S1) é o seguinte: 

I - O prazo de interposição de recurso do acórdão da Relação que, julgando totalmente o recurso de apelação, aprecia a questão da competência internacional dos tribunais portugueses é de 30 dias (art. 638.º, n.º 1, do CPC), não sendo aplicável o art. 673.º do CPC pois este apenas se aplica a recursos de revista interpostos de “acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação”, isto é, a recursos interpostos de decisões interlocutórias proferidas pela Relação no âmbito da apreciação do recurso de apelação¸ caso em que o prazo para a interposição de recurso é de 15 dias (art. 677.º do CPC).

II - Já desde a Convenção de Bruxelas de 1968 que a jurisprudência europeia tem entendido que o art. 18.º da Convenção, ao qual correspondem os arts. 24.º do Regulamento n.º 44/2001 e 26.º do Regulamento n.º 1215/2012, “tem de ser entendido no sentido de que permite ao réu não contestar apenas a jurisdição mas também, em alternativa, apresentar defesa relativa à substância da causa, sem perder o direito de suscitar a excepção de incompetência”.

III - O fundamento desta interpretação é o de que há leis nacionais que atribuem consequências desfavoráveis à omissão de outra defesa, quando o réu invoca apenas a incompetência internacional no tribunal em que foi demandado e essa defesa improcede; com outra interpretação, lesar-se-ia o direito de defesa, forçando o réu – que, apesar das preocupações de segurança jurídica do Regulamento, não pode antecipar o sentido da decisão do tribunal – ou a optar por defender-se de fundo, perdendo o direito de invocar a incompetência, ou a escolher suscitar a incompetência, com os riscos inerentes.

IV - O Regulamento n.º 1215/2012, tal como o Regulamento n.º 44/2001, adoptou um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço) e relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, por um lado, seja suficientemente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado (cfr. considerando 16 do Regulamento n.º 1215/2012) e, por outro lado e por isso mesmo, suficientemente segura para permitir determinar com certeza qual é o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão resultante do mesmo contrato.

V - A interpretação autónoma da al. b) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento n.º 1215/2012, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do art. 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento n.º 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve fazer-se “à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do regulamento”.

VI - Ambos os Regulamentos se afastaram do regime definido pela Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na acção, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual”.

VII - O TJUE já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, como sucede no caso dos autos.

VIII - Estando em causa nos autos contratos que têm como objecto a venda de bens a produzir ou fabricar pelo vendedor, segundo modelos ou protótipos, definidos pela ré, que os encomendou à autora para vender a terceiros, a entregar em Espanha, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente acção pois, quer o domicílio (sede) da ré, quer o local de cumprimento relevante – lugar da entrega dos bens – se situam em Espanha, (n.º 1 do art. 4.º, no n.º 1 do art. 5.º e na al. b), segundo travessão, do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento n.º 1215/2012).
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"6. Cumpre [...] determinar se os contratos em causa nesta acção devem ser qualificados como compra e venda ou como prestação de serviços, à luz do Regulamento nº 1215/2002 e não do direito interno, passo necessário para se determinar se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes, posto que a ré tem o seu domicílio (sede) em Espanha.

Considerando os elementos fornecidos pelas partes sem divergência, verificamos que estamos perante contratos que têm como objecto a venda de bens a produzir ou fabricar pelo vendedor, segundo modelos ou, como se exprime a Relação, protótipos, definidos pela ré, que os encomendou à autora para vender a terceiros, a entregar em Espanha. A ré explicou na oposição que “manteve, na verdade, com” a autora uma “colaboração que consistiu no fabrico de artigos de vestuário no âmbito de encomendas previamente negociadas e acordadas”, sendo uma “empresa que agencia clientes em Espanha e no estrangeiro e coloca o fabrico dos produtos que vende em várias empresas, entre as quais, em tempos”, a autora. A autora alegara no requerimento de injunção que forneceu artigos à requerida, por sua incumbência, artigos esses que se conseguem identificar nas facturas juntas por determinação do tribunal, e esclareceu, na resposta à oposição, artigo 24º, que, “no que concerne à encomenda Pull”, que “não está em discussão nestes autos”, foi “mera executante a feitio, estando a ré incumbida de lhe entregar as malhas e os tecidos necessários para a produção das peças de vestuário”; mas não quanto às encomendas em causa neste processo (cfr. em especial, os artigos 24º e 29º da resposta).

O Tribunal de Justiça da União Europeia já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, como sucede no caso dos autos (cfr., a título de exemplo, os citados acórdãos Car Trim e Falcom Privatstiftung e, quanto à interpretação do primeiro, o acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Setembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. nº 2561/14.8T8BG.1,S1, no qual se tratava da interpretação da disposição correspondente da Convenção de Lugano de 2007, relativa à competência judiciária e ao reconhecimento de decisões estrangeiras).

No já citado acórdão Car Trim, no qual estava em causa um contrato mediante o qual “a Key Safety, estabelecida em Itália, fornece sistemas de airbags a fabricantes italianos e automóveis e comprou, à Car Trim, componentes que entram no fabrico desses sistemas, de acordo com cinco contratos de fornecimento” – entendeu-se que, “para determinar a obrigação característica desses contratos como critério de conexão ao tribunal competente” (ponto 32), “O artigo 5º, nº 1, do Regulamento nº 44/2001 (…) deve ser interpretado no sentido de que os contratos cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por ele fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e pela conformidade do bem com o contrato, devem se qualificados de «venda de bens», na acepção do artigo 5º, nº 1, alínea a), primeiro travessão, do regulamento”.

Considerou-se, portanto, que “para determinar a obrigação característica de um contrato cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, quando o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, o facto de o bem a entregar ter de ser fabricado ou produzido previamente não altera a qualificação do contrato em causa como contrato de compra e venda. Além disso, outros elementos como, por um lado, o não fornecimento de materiais pelo comprador, e, por outro, a responsabilidade do fornecedor pela qualidade e pela conformidade do bem constituem indícios a favor de uma qualificação desse contrato como «contrato de venda de bens», não sendo, todavia, elementos essenciais para o efeito (cfr. acórdão Falco Privatstiftung, quanto à prestação de serviços).

Esta jurisprudência mantém plena actualidade para o Regulamento nº 1215/2002 e, aplicada ao caso, impõe a qualificação dos contratos em discussão como contratos de compra e venda."

[MTS]