26/09/2019

Jurisprudência 2019 (84)


Direito à prova;
impossibilidade culposa; inversão do ónus da prova*


I. O sumário de STJ 9/4/2019 (4759/07.6TBGMR-A.G1.S1) é o seguinte:

1. A apreciação do modo como as instâncias qualificaram a actuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil insere-se no âmbito do recurso de revista.

2. Porém, não se inclui nesse âmbito a apreciação da alteração baseada na livre apreciação da prova.

3. A inversão do ónus da prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, como sanção civil que é à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, exige uma actuação culposa da parte que tenha tornado impossível ou particularmente difícil a produção de prova pela contraparte dos factos que lhe competiam.

4. Opera a inversão do ónus da prova a conduta do oponente que, por meio de alteração voluntária da escrita, tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo, quanto à autoria das assinaturas apostas nos títulos executivos, quando a perita que subscreveu o relatório acabou por assegurar, em julgamento, essa autoria.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 674.º, n.º 1, do CPC [...] prevê como fundamento da revista, na al. a) “a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável”, acrescentando no n.º 2 que, para estes efeitos, “consideram-se como lei substantiva, as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum e as disposições genéricas, de carácter substantivo, emanadas dos órgãos de soberania, nacionais ou estrangeiros, ou constantes de convenções ou tratados internacionais”; e, na al. b), “[a] violação ou errada aplicação da lei de processo”.

Estipula, ainda, no n.º 3, que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

O executado/oponente invocou que o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação das provas ao alterar o facto não provado para provado, tal como consta do n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, e no que foi afirmado pela Ex.ma Perita, quando a recorrente apresentou versão diversa da que havia apresentado na contestação da oposição.

Parece, assim, querer fundamentar a revista na violação do citado art.º 344.º, n.º 2.

A questão da inversão do ónus da prova prevista nesta norma inscreve-se nos limites da revista, pois, não obstante não estar em causa qualquer “erro de apreciação das provas”, «… tal como é viável a interferência do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto cuja fixação esteja associada a alguma ofensa a disposição expressa de lei que exija determinado meio de prova ou que fixe a força probatória de algum meio, também deve admitir-se que, no âmbito do recurso de revista, possa ser sindicado pelo Supremo o modo como as instâncias interpretaram e aplicaram uma norma de direito probatório material, como a do art. 344º, n.º 2, do CC, na medida em que (…) tal se possa traduzir na modificação do juízo probatório subjacente à decisão da matéria de facto provada e não provada» [
Cfr. Acórdão do STJ, de 12.05.2016, processo n.º  85/14.2T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt]. 

Mas vejamos se, apesar desta admissibilidade, em abstracto, da questão, o seu mérito deve ser reconhecido.

O art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil dispõe:

“Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”

Daqui resulta que a inversão do ónus da prova prevista nesta norma está dependente da verificação dos seguintes pressupostos:

- a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer;


- que tal comportamento lhe seja imputável a título de culpa.

Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [
In Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 222], verifica-se o condicionalismo do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, quando a conduta do recusante “impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs: art. 313-1 CC; art. 364 do CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos…”.

A inversão do ónus da prova surge, assim, como uma sanção civil à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, consagrado no art.º 417.º, n.º 1, do CPC, que constitui, enquanto radicado nas próprias partes, uma emanação do princípio geral da cooperação consagrado no art.º 7.º, n.º 1 do mesmo Código, “quando essa falta de cooperação vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo” [Cfr. Acórdão do STJ de 12/4/2018, processo n.º 744/12.4TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.] (art.ºs 344.º, n.º 2 do C. Civil e 417.º, n.º 2 do CPC).

Bem se compreende a razão de ser desta sanção de ordem probatória, pois que, como refere Vaz Serra [
In “Provas (direito probatório material), BMJ, n.º 110, pág. 160], «não é justo que fique exposto às consequências da falta de prova o onerado que não pode produzi-la devido a culpa da outra parte».

Isto não significa, porém, que tal circunstancialismo importe, só por si, que o facto controvertido se tenha por verdadeiro ou por provado, pois, como adverte o acórdão deste Supremo, proferido no processo n.º 994/06.2TBVFR.P1.S1 [...], se assim fosse, estaríamos perante um meio de prova com força probatória plena, o que não é o caso.

Tal recusa significa, somente, que passou a caber à parte recusante a prova da falta da realidade desse facto, não estando, por isso, as instâncias dispensadas de valorar essa recusa para efeitos da formação da sua convicção com vista a dar, como provado, ou não provado, o facto em causa.

É neste contexto que cabe analisar a questão supra enunciada, tendo em conta que está em causa a resposta dada ao art.º 1.º da base instrutória que o Tribunal da Relação deu como provada, tal como consta no n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova, com os fundamentos que aqui se transcrevem:

«
A questão central reconduz-se a saber se os dizeres “dou o meu aval a favor da firma FF” e se a assinatura manuscrita ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso de cada um dos cheques dados à execução, foram apostos pelo punho do opoente AA.

Para o efeito foi ordenada a realização de prova pericial.

O Laboratório incumbido do exame apresentou o relatório pericial no qual afirma que não é possível formular conclusão.

Assim, numa primeira fase, o resultado da prova pericial revelou-se inconclusivo.

A questão, todavia, não ficou resolvida na medida em que se consignou expressamente naquele relatório pericial que “a escrita produzida na colheita de texto, quando comparada com a escrita de assinaturas, não configura a hipótese de uma escrita natural”.

E esta afirmação vem estribada na circunstância de a escrita contestada ser maioritariamente em maiúsculas, fluente e evoluída enquanto a escrita produzida na colheita de autógrafos ser em maiúsculas, muito pouco fluente e de traçado lento.


Acrescenta-se naquele relatório que a escrita das assinaturas genuínas de AA é também fluente e envolve letras minúsculas. No entanto, quando solicitado a escrever texto em minúsculas, declarou não saber escrever de outra forma que não em letras maiúsculas.

Daí que, no caso presente, em termos de juízo pericial, considerou-se existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto, pouco fluente, em maiúsculas, sendo cada letra constituída por vários traços.

Nestas condições, não foi possível o exame comparativo e, consequentemente, formular qualquer conclusão.

Daqui, podíamos já inferir que a impossibilidade de realização do exame em termos conclusivos se ficou a dever ao facto de o opoente AA não ter produzido ou oferecido, como termo de comparação, quando da colheita de texto perante o Laboratório, uma escrita natural.

Mas esta hipótese de escrita não natural, significará o mesmo que escrita artificial, isto é, intencionalmente modificada?

No caso
sub judice, cremos que sim, em face das diligências instrutórias realizadas.

A simples observação visual, mesmo sem possuir conhecimentos especiais, causa a impressão forte de artificialidade (cada letra é constituída por vários traços).

Mas é o próprio perito que, não obstante as justificações apresentadas pelo opoente, afirma existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto a maiúsculas, muito pouco fluente e constituída por traços.

Admitindo, até aqui, alguma dúvida, cremos ter sido sanada com as diligências instrutórias posteriormente realizadas, e assentes num juízo pericial.

Foram juntos novos elementos documentais e realizou-se um novo exame pericial.

Neste novo exame, o Laboratório, tendo procedido à comparação entre os cheques incontestavelmente preenchidos pelo punho do opoente e os originais dos cheques dados à execução, já concluiu que a escrita contestada atribuída a AA, pode ter sido produzida pelo seu punho.

Mas de importância capital revelou-se a prestação de esclarecimentos da Srª Perita que subscreveu o relatório e que após ressaltar as diferenças entre a escrita dos documentos obtidos de forma espontânea e os obtidos por colheita de autógrafos afirma que este tipo de inconsistência interna na produção da escrita nas colheitas de autógrafos, com falta de fluência, hesitações e correcções configura a hipótese de “alteração voluntária de escrita”.

Conclusão que manteve e explicou quando foi ouvida em julgamento, afastando com argumentação técnica as diversas hipóteses que lhe eram colocadas como justificativas daquele tipo de letra.

A Srª Perita não emitiu uma opinião, uma probabilidade, ou sequer manifestou um estado de dúvida. Emitiu um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão em análise.

Daí a valoração da prova pericial, por assentar em critérios científicos e objetiváveis, tendo sido descrito e explicado pela perita o procedimento de análise que conduziu às suas conclusões. É este conjunto de critérios objetivos que permite ao juiz, na ausência de conhecimentos científicos equiparáveis ao do perito, formular um juízo sobre o mérito intrínseco e grau de convencimento a atribuir ao laudo pericial (neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, “A valoração da prova pericial”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 11-24).

Do que se deixa exposto, forçosa se impõe a conclusão de que o opoente por meio da alteração voluntária de escrita tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo e, assim, a impossibilidade de a parte onerada, o exequente, demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa.

Sendo certo que, no caso, não se trata de uma mera culpa ou culpa negligente, mas sim de uma atuação dolosa, pois é manifesto que o opoente usou propositadamente uma escrita aos tracinhos visando com isso impedir o Laboratório de comparar a escrita contestada com a sua escrita genuína, obtida esta em quantidade e qualidade suficientes que o habilitassem a um juízo científico rigoroso e conclusivo.

Quando assim é, verificado um comportamento culposo, opera a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do C. Civil.

A propósito da impossibilitação culposa da prova, defende Ferreira de Almeida que, “inverte-se o ónus da prova com base na regra de experiência de quem coloca entraves excessivos, ou mesmo insuperáveis, à descoberta da verdade material é o que mais descrê da consciência do seu direito, além de violar o princípio da cooperação entre as partes no domínio do processo” (Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 239).

Invertido o ónus probatório, passa a competir ao opoente demonstrar não ter sido ele o autor das escritas e das assinaturas em discussão nos presentes autos.

Coligida a prova produzida, não logrou o opoente fazer a demonstração de tal facto.
»

Desta fundamentação da decisão de facto resulta que se encontram preenchidos os pressupostos, acima aludidos, de que depende o mecanismo probatório da inversão do ónus da prova, como bem se explica no trecho acabado de transcrever, com o que se concorda.

Aliás, em bom rigor, o recorrente nem sequer os põe em causa em termos de este Supremo Tribunal poder aferir da sua (in)admissibilidade, única questão de que pode conhecer.

Limita-se a fundamentar a sua discordância no facto de não existir outra prova que justifique a inversão do ónus da prova e de a contraparte ter apresentado no recurso de apelação versão diferente da que havia sustentado na contestação à oposição.

O primeiro argumento não tem fundamento, porquanto, a provarem-se os restantes factos alegados, nem sequer seria necessário lançar mão do mecanismo probatório da inversão do ónus da prova.

E o segundo também não ocorre, pois que, logo no art.º 1.º da contestação, a exequente/recorrida imputou ao executado/oponente as assinaturas apostas no verso dos cheques dados à execução, já então invocou a inversão do ónus da prova em face da sua desconformidade gráfica, deliberada e enganosa (cfr. art.ºs 18.º a 23.º) e era-lhe imprevisível, à data da apresentação daquele articulado, a conduta que acabou por este adoptar aquando da sua sujeição à prova pericial.

De resto, o que o recorrente pretende é insurgir-se contra a alteração da resposta ao art.º 1. º da base instrutória, feita pela Relação no exercício da sua competência privativa, ao abrigo do disposto no art.º 662.º do CPC, na sequência da impugnação da decisão de facto que havia sido proferida pela 1.ª instância, pondo em causa a sua livre apreciação a que está sujeita a prova produzida, nomeadamente a pericial (cfr. art.º 489.º do CPC).

Todavia, isso sai do âmbito da revista, por não constituir fundamento previsto no art.º 674.º, n.º 3, do CPC, o qual, recorde-se, visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a exigência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Não sendo este o caso, por não estarem em causa erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, o Supremo não pode cassar a decisão sustentada em determinado facto cuja prova tenha sido feita através de um meio que respeite a exigência de prova legal que ao caso respeita."


*III. [Comentário] 1. O sumário do acórdão não é muito feliz. 

A conjunção "porém" que inicia o n.º 2 dá a entender que trata da mesma matéria sumariada no n.º 1. Se bem se interpretou o acórdão, não é assim. Realmente, o STJ não afirmou que pode conhecer da aplicação do disposto no art. 344.º, n.º 2, CC, mas que não pode conhecer do facto que as instâncias consideraram provado com base na inversão do ónus da prova estabelecida neste preceito. Como é claro, estas afirmações não seriam compatíveis entre si.

 2. Resumindo, o que se passou foi o seguinte:

-- Numa execução, o executado deduziu embargos de executado alegando não ser o subscritor do aval aposto nuns cheques;

-- A 1.ª instância julgou os embargos procedentes;

-- O exequente interpôs recurso de apelação para a Relação; esta revogou a decisão do tribunal a quo e considerou os embargos improcedentes;

-- O executado interpôs recurso de revista desta decisão de improcedência.

Perante isto, o STJ afirmou o seguinte:

"O executado/oponente invocou que o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação das provas ao alterar o facto não provado para provado, tal como consta do n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, e no que foi afirmado pela Ex.ma Perita, quando a recorrente apresentou versão diversa da que havia apresentado na contestação da oposição.

Parece, assim, querer fundamentar a revista na violação do citado art.º 344.º, n.º 2."


Isto é, o executado alega que o Relação utilizou mal o critério da inversão do ónus da prova, imaginando-se que pretendia afirmar que não lhe incumbia a prova de que as assinaturas constantes do aval não eram próprias.

Aderindo à decisão da Relação recorrida, o STJ concluiu que  da "fundamentação da decisão de facto [da Relação] resulta que se encontram preenchidos os pressupostos, acima aludidos, de que depende o mecanismo probatório da inversão do ónus da prova [...]."

MTS