09/01/2020

Jurisprudência 2019 (149)

 
Escritura pública;
força probatória; prova plena
 
 
1. O sumário de STJ 4/7/2019 (113/17.0T8CNF.C1.S1) é o seguinte:

I - Em sede de apreciação da alteração da matéria de facto, os poderes de sindicância do STJ cingem-se às decisões das instâncias que ofendem disposições da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, à necessidade de ampliação da matéria de facto e à existência de contradições na fixação da matéria de facto que inviabilizem a solução de direito.

II - Os documentos autênticos (e não está em causa que a escritura de divisão de coisa comum em questão não o seja) só fazem prova plena relativamente aos factos neles referidos como tendo sido praticados ou atestados/percecionados pelo respetivo oficial público.

III - A referência, na escritura de divisão de coisa comum, de que a casa de habitação que foi adjudicada à autora era composta, para além do mais de um logradouro (nada se referindo em relação aos outros prédios que, em resultado da divisão, foram adjudicados aos outros outorgantes, no sentido de também conterem logradouros), apenas resultou daquilo que foi declarado pelos respetivos outorgantes, nada tendo a ver com algo que haja sido praticado ou vivenciado pelo notário.

IV - Assim, relativamente a tais declarações, a dita escritura não faz prova plena, razão pela qual nada obstava a que a Relação, tendo por base a reapreciação daquela e de outras provas, procedesse à alteração da matéria de facto que havia sido como provada na 1.ª instância, nos termos em que o fez, ou seja, no sentido de dar como não provado que o logradouro em questão faz parte integrante do prédio que foi adjudicado à autora.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Quanto à prova de que o logradouro em questão faz parte do prédio da autora:

Muito embora sem se referir expressamente a qualquer dos factos que, na sequência das alterações efetuadas pela Relação em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto, foram concretamente dados como provados (e/ou não provados), é manifesto que a autora recorrente se insurge contra a alteração à matéria de facto efetuada pela Relação, particularmente no que se refere ao supra mencionado nº 9 dos factos provados - no qual a 1ª instância havia dado como provado que o logradouro em disputa nos autos fazia parte do prédio da autora – precisamente no sentido de dar tal facto como não provado.

E, no juízo de censura que faz à motivação da Relação subjacente a tal alteração, para além de questionar a valoração dada ao seu depoimento de parte, a recorrente invoca a força probatória da escritura de divisão de coisa comum.

E isto, segundo a recorrente, porque tal escritura é o único documento autêntico onde consta de forma expressa e inequívoca que o prédio que lhe foi adjudicado é o único que contém um logradouro – ainda que sem o situar.

Conforme é sabido, o STJ, em regra, apenas conhece de matéria de direito, sendo de todo limitados os seus poderes de sindicância relativamente à fixação da matéria de facto feita pelas instâncias. Para além de no nº 4 do artigo 662º do CPC se estabelecer que não cabe recurso das decisões da Relação relativas à alteração da matéria de facto, o nº 3 do artigo 674º do mesmos diploma estabelece que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Assim, conforme tem sido entendido pacificamente na jurisprudência, em sede de apreciação da matéria de facto, os poderes de sindicância do STJ cingem-se às decisões das instâncias que ofendem disposições da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, à necessidade de ampliação da matéria de facto e à existência de contradições na fixação da matéria de facto que inviabilizem a solução de direito (vide acórdãos do STJ de 26.05.2015 - proc. nº 2689/08.3TBLRA.C1.S1 e de 03.03.2016 – pro. nº 4479/05.6TVLSB.L1.S1, ambos in www.dgsi.pt),

Embora sem o afirmar explicitamente, é manifesto que a recorrente considera que a escritura de divisão de coisa comum em questão faz prova plena no sentido de se ter que dar como provado que o logradouro em questão faz parte do seu prédio, à luz do disposto no artigo 371º do C. Civil – e que, por isso, ao alterar a matéria de facto, nos termos supra indicados, a Relação foi contra lei expressa.

Todavia sem razão, na medida em que, nos termos desta disposição, os documentos autênticos (e não está em causa que a escritura de divisão de coisa comum em questão não o seja) só fazem prova plena relativamente aos factos neles referidos que tenham sido praticados ou atestados/percecionados pelo respetivo oficial público (vide acórdão do STJ de 15.09.2016 – proc. nº 165/12.9TBSJP.C1.S1, in www.dgsi.pt).

Ora, a referência, na escritura de divisão de coisa comum (vide nº 4 dos factos provados) de que a casa de habitação que foi adjudicada à autora era composta, para além do mais (rés de chão e andar com a superfície coberta de cento e cinco metros quadrados) de um logradouro com trinta e sete metros quadrados (nada se referindo em relação aos outros prédios que, em resultado da divisão, foram adjudicados aos outros outorgantes, no sentido de também conterem logradouros), apenas resultou daquilo que foi declarado pelos respetivos outorgantes, nada tendo a ver com algo que haja sido praticado ou vivenciado pelo notário.

Assim, relativamente a tais declarações, é manifesto que a dita escritura não faz prova plena quanto às mesmas – razão pela qual nada obstava a que a Relação, tendo por base a reapreciação daquela e de outras provas, procedesse à alteração da matéria de facto que havia sido como provada na 1ª instância nos termos em que o fez, ou seja, no sentido de dar como não provado que o logradouro em questão faz parte integrante do prédio que foi adjudicado à autora.

Conforme bem se considerou no acórdão deste Tribunal de 04.06.2015 (proc. nº 177/04.6TBRMZ,E1.S1, in www.dgsi.pt), podendo o conteúdo dos documentos autênticos integrar em parte prova plena e em parte prova de livre apreciação pelo tribunal (não plena), esta última parte não pode ser sindicada em sede de revista.

De resto, conforme resulta da escritura, e a própria recorrente reconhece, ali nem sequer é indicada a localização do logradouro do prédio que foi adjudicado a esta, pelo que nunca se poderia considerar sem mais (apenas com base na escritura) que o espaço em disputa nos autos correspondesse àquele logradouro, sendo certo que até se mostra provado (vide nº 18 dos factos provados) que a casa da autora “dispõe de um terreno descoberto que se desenvolve a Sul e a Nascente da superfície coberta da mesma, que a Autora utiliza e possui”.

Em face do exposto, podendo a Relação, relativamente à alteração da matéria factual em questão, proceder à livre apreciação das diversas provas em que se alicerçou (como seja, para além do mais, a escritura de divisão de coisa comum e bem assim o depoimento de parte da autora), nos termos em que o fez, não pode o STJ censurar tal apreciação/decisão e, como tal, vir a dar como provado que o logradouro em questão nos autos faz parte integrante do prédio da autora recorrente – conforme esta pretende."
 
[MTS]