17/01/2020

Jurisprudência 2019 (155)

 
Divórcio por mútuo consentimento;
atribuição da casa de morada de família*
 
 
1. O sumário de RE 11/7/2019 (8214/16.5T8STB-B.E1) é o seguinte:
 
O incidente de atribuição da casa de morada de família previsto no artigo 990.º do CPC constitui procedimento distinto daquele que visa regular a utilização da casa de morada de família durante a pendência do processo de divórcio, nos termos previstos no artigo 931.º, n.º 2, do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O incidente de atribuição da casa de morada de família, de que lançou mão (…) (Requerida no processo de divórcio que, por convolação, consiste em divórcio por mútuo consentimento), encontra-se previsto e regulado no art. 990.º do CPC. Tal normativo legal dispõe o seguinte, sob a epígrafe «Atribuição da casa de morada de família»:
 
«1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
 
2 - O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º.
 
3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.
 
4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso.»

Bem andou a aqui Requerente ao esgrimir a pretensão de atribuição da casa de morada de família por apenso ao processo de divórcio.
 
Não se verifica erro na forma do processo, encontrando a atuação da Requerente guarida no citado incidente, a que aludiu desde logo no intróito da petição inicial.
 
Inexiste fundamento para classificar de extemporânea (fora de tempo) tal conduta processual na medida em que a lei não estabelece o momento em que tal pretensão deve ser deduzida.
 
Por conseguinte, não tem cabimento o indeferimento (liminar ou não) da petição inicial por extemporaneidade. [...]
 
Termos em que é de concluir alcançar procedência o presente recurso. O que implicará na revogação da decisão recorrida.
 
Acresce que a tanto não obsta o trânsito em julgado da decisão de atribuição a Elisário da Silva Claudino do direito de utilização da casa de morada da família. [...]
 
Na verdade, conforme documentam os autos principais [...], o que ali se decidiu foi a utilização da casa de morada de família nos moldes previstos no art. 931.º do CPC. Consta da ata lavrada da diligência de tentativa de conciliação que as partes declararam não estarem de acordo quanto à atribuição da casa de morada de família. Em face do que foi proferido o seguinte despacho:
 
«Relativamente às questões elencadas no artigo 931.º, n.º 2 e não havendo acordo quanto à atribuição de casa de morada de família, bem como quanto aos alimentos entre cônjuge, uma vez que ambos pretendem habitar na referida casa e a ré pretende que o autor lhe pague uma pensão de alimentos, o que este não aceita, notifique ambas as partes para em 10 dias alegarem o que tiverem por conveniente e juntarem a prova pertinente relativamente ao incidente de atribuição de casa de morada de família e a ré para também no prazo de 10 dias alegar o que tiver por conveniente relativamente ao incidente de alimentos cumprindo-se após, em ambos os casos, o contraditório.»
 
Como se alcança do art. 931.º n.º 2 do CPC, o juiz deve atuar no sentido de obter o acordo dos cônjuges quanto aos alimentos e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos; o acordo quanto à utilização da casa de morada de família reporta-se ao período de pendência do processo, se for caso disso, ou seja, se, no caso concreto, se mostrar premente a definição dessa utilização nesse período. Em conjugação com este regime legal, estabelece o n.º 7, por sua vez, que em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório designadamente quanto à utilização da casa de morada da família.
 
Certo é que foi a coberto desta disposição legal que as partes foram notificadas para alegarem o que tivessem por conveniente quanto a tal matéria.
 
O Requerente apresentou requerimento invocando não se compreenderem os motivos pelos quais a R. pretende residir na casa de morada de família quando, por vontade própria, a deixou, invocando que lhe deve ser atribuída, até à partilha, o direito à casa de morada de família; a ali Requerida nada disse.
 
Ora, manifestamente, o processado aqui relatado não se subsume ao incidente previsto no art. 990.º do CPC, incidente este que nem sequer pode ser oficiosamente despoletado (como legalmente foi aquele).
 
Como reiteradamente o Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado e decidido [Acs. STJ de 26/04/2012, de 13/10/2016, de 23/11/2017, entre outros], «a fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último.» [Cfr. Ac. STJ de 23/11/2017 (António Piçarra)] [...].

Ora, «a tutela que é assegurada pela via cautelar é, em regra [...], inerentemente temporânea, pelo que as decisões aí proferidas não são, em geral, suscetíveis de constituir caso julgado. Tal conclusão assenta na diversidade dos objetos, de trâmites e de critérios de formação da convicção e de decisão que existe entre a tutela cautelar e a tutela que é garantida por via de uma ação e, bem assim, na consideração da natureza iminentemente provisória da regulação estabelecida (que justifica, por exemplo, que a decisão possa ser modificada ou mesmo revogada na sequência da dedução da oposição (n.º 3 do art.º 373.º do Cód. Proc. Civil), a qual é incompatível com a solidez e estabilidade que comumente são identificadas como traços característicos do caso julgado.» [Cfr. Ac. STJ de 23/11/2017 já citado.]

Se bem que seja ponto assente que, com a atual legislação, as consequências do divórcio devam ser apreciadas de forma global e integrada [Nas palavras de Rita Lobo Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, palavras essas secundadas e acolhidas na mais recente doutrina e jurisprudência], certo é que o regime decorrente do art. 931.º do CPC (aplicável no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento – cfr. art. 1778.º-A, n.º 3, do CPC [sic] – ainda que este emane, por convolação, do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges), não repele nem contende com o processo de jurisdição voluntária a que alude o art. 990.º do CPC, que está ao dispor dos interessados ou ex-cônjuges e cujos efeitos operam dissolvida que esteja a união conjugal ou de facto.

Decorre do exposto que o procedimento em curso por via do disposto no n.º 2 do art. 931.º do CPC, e o não exercício do direito de nele apresentar alegação ou oposição à alegação da contra-parte, não impede o exercício do direito estabelecido no art. 990.º do CPC. Nem ao processamento deste obsta a decisão final proferida no âmbito daquele.

*3. [Comentário] Não está em causa que o regime estabelecido no art. 931.º, n.º 2, CPC seja distinto daquele que se encontra no art. 990.º CPC. O que pode estar em causa é a possibilidade de num divórcio por mútuo consentimento se lançar mão do disposto no art. 990.º CPC.
 
No entanto, esta dúvida é resolvida pelo disposto no art. 990.º, n.º 4, CPC: "se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou de separação, o pedido é deduzido por apenso". Sendo assim, a RE decidiu bem.
 
MTS