27/01/2020

Jurisprudência 2019 (161)


Revisão de sentença estrangeira;
regime interno; ordem pública internacional

1. O sumário de RC 11/6/2019 (274/18.0YRCBR) é o seguinte:

I – Quando na alínea e) do artigo 980.º do CPC se prescreve, como requisito necessário para a confirmação sentença, que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, tem-se em vista a concreta acção do juiz no processo onde foi proferida a sentença a rever e a concreta intervenção da parte que se opõe à confirmação da sentença nesse mesmo processo.

II - Assim sendo, só em relação a questões concretas é que se pode dizer que foram decididas sem observância do princípio do contraditório e só em relação ao exercício, em concreto, de certas faculdades, ao uso, em concreto, de meios de defesa e à aplicação em concreto de cominações ou de sanções processuais é que se pode falar em inobservância do princípio da igualdade das partes.

III – Os princípios da ordem pública internacional de um Estado compreendem em especial os princípios fundamentais desse Estado, os direitos e liberdades individuais garantidos pela respectiva Constituição.

IV- Apesar de as decisões a rever não se terem pronunciado sobre a relação contratual da requerente com a requerida nem sobre a acção proposta por esta contra aquela num tribunal português, na avaliação dos efeitos do reconhecimento das decisões, para efeitos da alínea f) do artigo 980.º do CPC, não podem ignorar-se nem a relação contratual nem a acção[,] visto que a requerente só pediu o reconhecimento das decisões em Portugal e a requerida só foi demandada, nesta qualidade, na presente acção especial de revisão de sentença estrangeira em virtude da relação contratual que estabeleceu com a requerente e em virtude do litígio que está pendente no tribunal português.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Ofensa aos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa 

A requerida opôs-se [...] ao pedido de confirmação das sentenças com a alegação de que o reconhecimento das sentenças resulta em ofensa aos seguintes princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa: a) Princípio da protecção jurídica da posição contratual – negócios em curso; b) abuso da finalidade da garantia prestada pela requerida através de crédito documentário; c) expropriação (privada) sem indemnização/Liberdade de iniciativa; d) Subtracção do acesso a uma tutela jurisdicional efectiva/vinculação do direito de acção. [...]

Apreciação do tribunal:


O fundamento de oposição ora em análise remete-nos para a alínea f) do artigo 980.º, do CPC, segundo o qual para que a sentença seja confirmada é necessário que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional.

Como se vê o requisito de confirmação ora em apreciação tem no seu âmago o conceito de ordem pública internacional.

Socorrendo-nos das palavras de Rui Manuel Moura Ramos sobre o conceito e a noção de ordem pública internacional, trata-se de um “conceito indeterminado” e de “uma noção funcional”. “De um conceito indeterminado ou cláusula geral porque permite tomar em conta as circunstâncias particulares do caso concreto, transferindo para o juiz a tarefa de concretizar a disposição legal no momento da sua aplicação, o que é característica dos sectores abertos do direito. De uma noção funcional porque ela é indefinível a não ser pela função que lhe cabe desenvolver na ordem jurídica: impedir que a aplicação de certas regras ou o reconhecimento de determinadas sentenças (judiciais ou arbitrais) possam, num caso particular, pôr em causa aspectos essenciais da ideia de direito do sistema jurídico do foro” [Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 14 de Março de 2017, no processo n.º 103/13.1YRLSB, publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146, n.º 4003, Março-Abril de 2017, páginas 284 a 306].

Apesar do seu carácter indeterminado pode afirmar-se, seguindo-se o que afirma o artigo 33.º do Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, que os princípios da ordem pública internacional de um Estado compreendem em especial os princípios fundamentais desse Estado, os direitos e liberdades individuais garantidos pela respectiva Constituição. Assim também tem sido entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça como o comprovam, entre outras, as seguintes decisões: o acórdão do STJ proferido em 23 de Fevereiro de 2012, no processo n.º 15/11.3YRCBR, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XX Tomo I/2012, páginas 93 a 97; o acórdão do STJ proferido em 26 de Maio de 2009, no processo n.º 43/09, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XVII, Tomo II/2009, páginas 73 a 77 e acórdão do STJ, proferido em 24 de Abril de 2018, no processo n.º 137/17.7YRPRT, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXVI Tomo I/2018 páginas 138 a 144.

Sobre a alínea f) do artigo 980.º do CPC e sobre o n.º 2 do artigo 288.º do CIRE importa dizer ainda o seguinte.

Em primeiro lugar – e socorrendo-nos das palavras de Luís de Lima Pinheiro na obra supra citada, página 520, “para saber se o resultado do reconhecimento viola a ordem púbica internacional deverá fazer-se um exame global, o qual poderá ter em conta os fundamentos da decisão e o processo”.

Em segundo lugar, e continuando a socorrer-nos das palavras do autor citado, “a cláusula de ordem pública internacional … caracteriza-se pela sua excepcionalidade: só intervém quando o reconhecimento for manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da ordem jurídica do foro”.

Em terceiro lugar – socorrendo-nos agora das palavras de Afonso Patrão – “… a mobilização da ordem pública internacional depende da existência de uma conexão relevante com o ordenamento jurídico do foro, não podendo ser invocada, em regra em situações incidentalmente julgadas em Portugal, apesar de totalmente constituídas e executadas à luz de um ordenamento jurídico estrangeiro (…). Nestes casos, entende-se não poder a ordem jurídica portuguesa impor, numa situação com que não apresenta contactos relevantes, os seus próprios referentes” [anotação ao acórdão do STJ proferido em 26-09-2017, no processo n.º 1008/14.4YRLSB, publicada em Cadernos de Direito Privado, n.º 62, Abril/Junho 2018, páginas 51 a 67].

Tendo presentes estas considerações, podemos afirmar que não valem contra o reconhecimento das sentenças os argumentos da requerida. Vejamos.

Como se vê pela exposição acima efectuada, os efeitos do reconhecimento que a requerida considera contrários aos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa, por ela indicados, são os que se projectam sobre a relação contratual dela com a requerente e sobre a acção declarativa que está pendente no tribunal judicial da comarca de Leiria sob o n.º 4252/17.9T8LRA. Relação contratual que compreende o contrato através da qual a requerida comprou à requerente 1000 toneladas de chapa de aço galvanizado pelo preço de € 725 000,00 e a garantia do pagamento do material fornecido através da emissão de uma carta de crédito documentário irrevogável (carta de crédito n.º 951-01-0064957, datada de 18/01/2017 e com vencimento em 01/07/2017) que teve como ordenadora a requerida e como beneficiária a requerente

Quanto à acção trata-se de uma acção declarativa proposta pela requerida contra a ora requerente e o B (…), e através da qual pediu:

a) Se decretasse a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a ora requerente, por incumprimento definitivo por parte desta;

b) Se decretasse a resolução do contrato de abertura de crédito documentário celebrado entre a autora e a segunda ré (carta de crédito n.º (…), datada de 18/01/2017) e que tinha como beneficiária a ora requerente;

c) A condenação da ora requerente a retirar das instalações da autora, por sua conta, a mercadoria que lhe forneceu;

d) A condenação da ora requerente a pagar à ora requerida uma indemnização pelos prejuízos causados, computados no montante de € 333 703,10 (trezentos e trinta e três mil setecentos e três euros e dez cêntimos).

Com efeito, quando a requerida alega que o reconhecimento ofende o princípio da protecção jurídica da posição contratual, em relação aos negócios em curso à data da declaração de insolvência, tem em vista a posição contratual nascida do fornecimento do aço galvanizado.

Quando a requerida alega que o reconhecimento ofende o princípio da boa-fé e o da proibição do abuso de direito tem em vista a garantia do pagamento do material fornecido através da emissão de uma carta de crédito documentário irrevogável.

Quando a requerida alega que o reconhecimento resulta numa expropriação (privada) sem indemnização e põe em causa a liberdade de iniciativa económica tem em vista a hipótese de ser obrigada a pagar, na íntegra, o preço da mercadoria, não obstante o defeito da mesma, e a hipótese de, com o pagamento, mergulhar numa situação de insolvência.

Quando a requerida alega que o alega que o reconhecimento ofende o direito à tutela jurisdicional efectiva e o direito de acção tem em vista a acção que corre termos no tribunal judicial da comarca de Leiria sob o n.º 4252/17.9T8LRA, proposta pela requerida contra a ora requerente e o B (...) .

Apesar de as decisões a rever não se terem pronunciado sobre a relação contratual da requerente com a requerida nem sobre a acção que corre termos no tribunal judicial da comarca de Leiria, a verdade é que, na avaliação dos efeitos do reconhecimento das decisões, para efeitos da alínea f) do artigo 980.º do CPC, não podem ignorar-se nem a relação contratual da requerente com a requerida nem a acção que se encontra pendente.

E não podem ignorar-se estas realidades porque a requerente só pediu o reconhecimento das decisões em Portugal e a requerida só foi demandada, nesta qualidade, na presente acção especial de revisão de sentença estrangeira em virtude da relação contratual que estabeleceu com a requerente e em virtude do litígio que está pendente no tribunal judicial da comarca de Leiria. Se a única conexão das decisões estrangeiras com a ordem jurídica portuguesa tem a sua origem exclusivamente na relação contratual da requerente com a requerida e no litígio judicial entre ambas, então a questão de saber se o reconhecimento em Portugal da eficácia das sentenças conduz a um resultado manifestamente contrário aos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa é, na realidade, a questão de saber se esses efeitos sobre a relação contratual e sobre o litígio conduzem a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Logo trata-se de saber se o reconhecimento da sentença pela qual foi aceite o pedido para iniciar o processo de insolvência, se o reconhecimento da sentença que homologou o plano de insolvência e se o reconhecimento do acórdão que julgou improcedentes os recursos contra a sentença que homologou o plano de resolução conduz aos resultados alegados pela requerida e, em caso afirmativo, se esses resultados ofendem manifestamente os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa.

Observe-se, no entanto, que para a resposta a esta questão são irrelevantes os factos alegados na oposição ao pedido de revisão relativos ao incumprimento da relação contratual por parte da requerida. Por outras palavras, o tribunal não irá dar resposta à questão laborando no pressuposto de que a requerente não cumpriu o contrato. Com efeito, como resulta do já acima exposto, a avaliação do resultado do reconhecimento da sentença estrangeira, para efeitos da alínea f) do artigo 980.º do CPC, é feita tendo em conta a decisão, os fundamentos da decisão e o processo onde foi proferida a decisão.

Tendo presente as considerações expostas, pode afirmar-se que o reconhecimento das duas sentenças proferidas pelo Tribunal Nacional de Comércio de Nova Deli e o reconhecimento do acórdão proferido pelo Tribunal de Recurso Nacional de Comércio de Nova Deli não conduzem aos resultados que, segundo a requerida, representam violação princípio da protecção da posição contratual dos negócios em curso, violação do princípio da boa-fé e violação do princípio da expropriação privada sem indemnização e violação do princípio da liberdade da iniciativa económica privada, previsto no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, do reconhecimento da sentença pela qual foi aceite o pedido para iniciar o processo de insolvência, do reconhecimento da sentença que homologou o plano de resolução e do reconhecimento acórdão que julgou improcedentes os recursos interpostos contra a decisão que aceitou o plano de resolução não têm os seguintes resultados:

a) A imediata exigibilidade do pagamento do preço, sem cumprimento pontual da prestação por parte da requerente;

b) A activação da carta de crédito e o recebimento do preço sem estarem verificados os pressupostos de tal activação;

c) O desembolso pela requerida da quantia de € 725 000,00, em prejuízo da requerida e em benefício ilegítimo da requerente;

d) O desembolso da referida quantia sem o material que se destinava a adquirir, nem resulta o colapso financeiro da própria requerida.

Visto que foram estes os resultados que sustentaram a alegação de que o reconhecimento das decisões era contrário a princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa e que o reconhecimento não conduz a nenhum eles, a conclusão a retirar é a de que improcede a alegação da requerida.

Quanto à incompatibilidade entre o reconhecimento das sentenças e o direito à acção e à tutela jurisdicional efectiva, também não se verifica. Vejamos.

Em causa está o reconhecimento da sentença que homologou o plano de resolução na parte em que neste foi aprovado que todos os processos judiciais deverão imediata, irrevogável e incondicionalmente ser retirados, afastados, encerrados e/ou extintos. Segundo a requerida, o reconhecimento da decisão nesta parte implicaria que a requerida ficasse impedida de propor qualquer acção judicial contra a requerente, por incumprimento do contrato.

É exacto que o plano de resolução contém no ponto n.º 8.6.10. II sob a epígrafe “Efeitos nos credores operacionais e outros credores” a seguinte medida: “Todos os processos judiciais (incluindo qualquer aviso, apresentação dos factos, processo de adjudicação, processo de avaliação, ordens regulamentares, etc.) iniciados em qualquer foro por ou em nome de qualquer credor operacional (seja de acordo com os anexos 8, 9, 10, 11, 12 ou de outra forma, e incluindo as autoridades governamentais) ou quaisquer outros credores para exercer quaisquer direitos ou créditos contra a empresa, deverão imediata, irrevogável e incondicionalmente ser retirados, afastados, encerrados e/ou extintos, e os credores operacionais e outros credores tomarão todas as medidas necessárias para o garantir”.

Como é exacto que o direito à acção e o direito à tutela jurisdicional efectiva cabem dentro do conceito de ordem pública internacional do Estado Português, pois tanto um como o outro são direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição da República Portuguesa [artigo 20.º, n.º 1].

No entender deste tribunal, a extinção dos processos judiciais que um credor haja instaurado contra a insolvente para exercer quaisquer direitos ou créditos não viola o direito à acção e à tutela jurisdicional efectivo, uma vez que a própria lei portuguesa sobre insolvência recuperação de empresas prevê tal extinção.

Assim, por força do princípio de que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código durante a pendência, durante o processo de insolvência [artigo 90.º do CIRE], todas as acções declarativas propostas por um credor contra o devedor destinadas a obter o reconhecimento de um crédito extinguem-se por inutilidade superveniente da lide. Com efeito, o acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, publicado no DR I Série de 25-02-2014, uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”

Observe-se que a questão de saber se esta interpretação normativa violava o princípio do acesso ao direito e o da tutela jurisdicional efectiva reconhecidos no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, foi apreciado pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 46/2014, de 9 de Janeiro de 2014, e a resposta foi negativa como o atesta a decisão de “não julgar inconstitucional a interpretação normativa de acordo com a qual, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do CPC”.

Por sua vez, a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 17-E do CIRE sobre os efeitos da aprovação e homologação de um plano de recuperação em processo especial de revitalização, estabelece que, em tais hipóteses, as acções instauradas para cobrança de dívidas contra a empresa extinguem-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.

Segue-se do exposto que a solução constante do plano de resolução ora em apreciação não é estranho à ordem jurídica interna do Estado Português. E assim sendo não se pode dizer que a sua aplicação em Portugal seria manifestamente contrária á ordem jurídica internacional do Estado Português.

Pelo exposto, julga-se improcedente a alegação de que o reconhecimento das decisões proferidas pelos tribunais indianos seria manifestamente incompatível com os princípios da ordem jurídica internacional do Estado Português."

[MTS]