28/01/2020

Jurisprudência europeia (TJ) (211)


Reenvio prejudicial — Art. 267.º TFUE — Conceito de “órgão jurisdicional nacional” — Critérios — Independência do organismo nacional em causa — Inamovibilidade dos membros — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial



TJ 21/1/2020 (C‑274/14, Banco de Santander) decidiu o seguinte:


"Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

51 Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para apreciar se o organismo de reenvio em causa tem a natureza de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.° TFUE, questão que deve ser decidida unicamente no âmbito do direito da União, o Tribunal de Justiça toma em consideração um conjunto de elementos, como a origem legal do organismo, a sua permanência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, pelo órgão, das regras de direito, bem como a sua independência (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de junho de 1966, Vaassen‑Göbbels, 61/65, EU:C:1966:39, p. 395; de 31 de maio de 2005, Syfait e o., C‑53/03, EU:C:2005:333, n.º 29; e de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello, C‑503/15, EU:C:2017:126, n.º 27 e jurisprudência aí referida).

52 Os elementos que figuram nos autos submetidos ao Tribunal de Justiça não permitem pôr em causa que o TEAC, organismo de reenvio no presente processo, satisfaz os critérios relativos à sua origem legal, à sua permanência, ao caráter vinculativo da sua jurisdição, à natureza contraditória do seu processo e à aplicação, por esse organismo, de regras de direito.

53 Em contrapartida, coloca‑se a questão de saber se o TEAC preenche o critério de independência.

54 A este respeito, no n.º 39 do Acórdão de 21 de março de 2000, Gabalfrisa e o. (C‑110/98 a C‑147/98, EU:C:2000:145), o Tribunal de Justiça declarou que a legislação espanhola relativa aos TEA, como aplicável ao processo que deu origem a esse acórdão, garantia uma separação funcional entre, por um lado, os serviços da Administração Fiscal encarregados da gestão, da cobrança e da liquidação do imposto e, por outro, os TEA, os quais decidem das reclamações apresentadas contra as decisões tomadas pelos referidos serviços sem receberem qualquer instrução da Administração Fiscal. No n.º 40 do referido acórdão, o Tribunal de Justiça precisou que essas garantias conferiam aos TEA a qualidade de terceiro em relação aos serviços que adotaram a decisão que era objeto da reclamação e a independência necessária para poderem ser considerados órgãos jurisdicionais, na aceção do artigo 267.º TFUE.

55 Ora, como também sustentou a Comissão nas suas observações escritas, estas considerações devem ser reapreciadas tendo em conta, nomeadamente, a jurisprudência mais recente do Tribunal de Justiça relativa, em particular, ao critério de independência que qualquer organismo nacional deve respeitar para ser qualificado de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.º TFUE.

56 Neste contexto, cumpre sublinhar que a independência dos órgãos jurisdicionais nacionais é essencial para o bom funcionamento do sistema de cooperação judiciária que representa o mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º TFUE, na medida em que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, recordada no n.º 51 do presente acórdão, esse mecanismo só pode ser acionado por uma instância, encarregada de aplicar o direito da União, que satisfaça, designadamente, esse critério de independência (Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 43).

57 De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o conceito de «independência» comporta duas vertentes. A primeira, de ordem externa, pressupõe que o organismo em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetido a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegido contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões (Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.° 44 e jurisprudência referida).

58 Ainda no que diz respeito à vertente externa do conceito de «independência», importa recordar que a inamovibilidade dos membros da instância em causa constitui uma garantia inerente à independência dos juízes, na medida em que visa proteger a pessoa daqueles cuja função é julgar (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de setembro de 2006, Wilson, C‑506/04, EU:C:2006:587, n.º 51, e de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 45).

59 O princípio da inamovibilidade, cuja importância decisiva importa sublinhar, exige, designadamente, que os juízes possam permanecer em funções enquanto não atingirem a idade obrigatória de aposentação ou até ao termo do seu mandato, quando este tiver uma duração determinada. Embora não tenha caráter absoluto, o referido princípio só pode sofrer exceções quando motivos legítimos e imperiosos o justifiquem, no respeito do princípio da proporcionalidade. Assim, é comummente aceite que os juízes possam ser destituídos se não estiverem aptos a continuar a exercer as suas funções em razão de uma incapacidade ou de falta grave, desde que sejam respeitados os procedimentos adequados [Acórdão de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), C‑619/18, EU:C:2019:531, n.º 76].

60 A garantia de inamovibilidade dos membros de um órgão jurisdicional exige, assim, que os casos de destituição dos membros desse organismo sejam previstos por uma regulamentação especial, através de disposições legais expressas que ofereçam garantias que ultrapassem as previstas pelas regras gerais do direito administrativo e do direito do trabalho aplicáveis em caso de destituição abusiva (v., neste sentido, Acórdão de 9 de outubro de 2014, TDC, C‑222/13, EU:C:2014:2265, n.os 32 e 35).

61 Por seu turno, a segunda vertente do conceito de «independência», que é de ordem interna, está ligada ao conceito de «imparcialidade» e visa o igual distanciamento em relação às partes no litígio e aos seus interesses respetivos, tendo em conta o objeto deste. Este aspeto exige o respeito pela objetividade e a inexistência de qualquer interesse na resolução do litígio que não seja a estrita aplicação da regra de direito [Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello, C‑503/15, EU:C:2017:126, n.º 38 e jurisprudência referida].

62 Assim, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «independência», que é inerente à missão de julgar, implica, acima de tudo, que a instância em questão tenha a qualidade de terceiro em relação à autoridade que adotou a decisão que é objeto de recurso (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de março de 1993, Corbiau, C‑24/92, EU:C:1993:118, n.º 15, e de 9 de outubro de 2014, TDC, C‑222/13, EU:C:2014:2265, n.º 29 e jurisprudência referida).

63 Estas garantias de independência e de imparcialidade postulam a existência de regras, designadamente no que respeita à composição da instância, à nomeação, à duração das funções, bem como às causas de abstenção, de impugnação da nomeação e de destituição dos seus membros, que permitem afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos particulares, quanto à impermeabilidade da referida instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdão de 9 de outubro de 2014, TDC, C‑222/13, EU:C:2014:2265, n.º 32).

64 No caso em apreço, há que declarar, em primeiro lugar, que, segundo a regulamentação nacional aplicável, nomeadamente o artigo 29.º, n.º 2, do Real Decreto 520/2005, o presidente e os membros do TEAC são nomeados por real decreto adotado em Conselho de Ministros, sob proposta do ministro da Economia e das Finanças, por tempo indeterminado. Segundo esta mesma disposição, tanto o presidente como os membros do TEAC podem ser destituídos de acordo com o mesmo procedimento, a saber, por real decreto adotado em Conselho de Ministros, sob proposta do ministro da Economia e das Finanças.

65 Quanto aos membros dos TEA regionais, há que salientar que, segundo o artigo 30.º, n.º 2, do Real Decreto 520/2005, os mesmos são nomeados pelo ministro da Economia e das Finanças, entre os funcionários que figuram numa lista, e podem ser destituídos por esse mesmo ministro.

66 Ora, sendo embora certo que a legislação nacional aplicável prevê regras que regulam, nomeadamente, a abstenção e a impugnação da nomeação do presidente, bem como dos outros membros do TEAC, ou ainda, no que respeita ao presidente do TEAC, regras em matéria de conflitos de interesses, de incompatibilidades e de deveres de transparência, em contrapartida é pacífico que o regime de destituição do presidente e dos outros membros do TEAC não é determinado por uma regulamentação especial que conste de disposições legislativas expressas, como as que são aplicáveis aos membros do poder judicial. Os membros do TEAC, quanto a este último aspeto, apenas são abrangidos pelas regras gerais de direito administrativo e, em particular, pelo estatuto de base dos agentes da função pública, como confirmou o Governo espanhol na audiência no Tribunal de Justiça. Esta mesma conclusão impõe‑se relativamente aos membros dos TEA regionais e locais.

67 Por conseguinte, a destituição do presidente e dos outros membros do TEAC, bem como dos membros dos outros TEA, não está limitada, como exige o princípio da inamovibilidade recordado no n.º 59 do presente acórdão, a determinadas hipóteses excecionais que traduzem motivos legítimos e imperiosos que justificam a adoção de tal medida, no respeito do princípio da proporcionalidade e dos procedimentos adequados, como a hipótese de uma incapacidade ou de um incumprimento grave que torne as pessoas em causa inaptas para prosseguirem as suas funções.

68 Daqui resulta que a legislação nacional aplicável não garante que o presidente e os outros membros do TEAC estejam protegidos de pressões externas, diretas ou indiretas, suscetíveis de pôr em causa a sua independência.

69 Embora seja verdade que, nos termos do artigo 228.º, n.º 1, da LGT, os membros dos TEA exercem as suas competências «de forma funcionalmente independente» e que, em conformidade com o artigo 29.º, n.º 9, e com o artigo 30.º, n.º 12, do Real Decreto 520/2005, exercem «com total independência e sob a sua responsabilidade» as funções que lhes são legalmente atribuídas, não é menos verdade que a revogação ou anulação da sua nomeação não é acompanhada de garantias especiais. Ora, tal sistema não é suscetível de impedir eficazmente as pressões indevidas do poder executivo sobre os membros dos TEA (v., por analogia, Acórdão de 31 de maio de 2005, Syfait e o., C‑53/03, EU:C:2005:333, n.° 31).

70 Neste ponto, a situação dos membros dos TEA e, designadamente, do TEAC distingue‑se, por exemplo, da do organismo de reenvio no processo que deu origem ao Acórdão de 6 de outubro de 2015, Consorci Sanitari del Maresme (C‑203/14, EU:C:2015:664), no sentido de que, como resulta dos n.os 11 e 20 desse acórdão, os membros deste organismo gozam, ao contrário dos membros dos TEA, de uma garantia de inamovibilidade, durante o período do seu mandato, que só pode ser derrogada por causas expressamente enumeradas na lei.

71 De igual modo, os TEA e, nomeadamente, o TEAC distinguem‑se do organismo de reenvio no processo que deu origem ao Acórdão de 24 de maio de 2016, MT Højgaard e Züblin (C‑396/14, EU:C:2016:347). Com efeito, como resulta dos n.os 29 a 31 desse acórdão, embora este organismo inclua membros peritos que não beneficiam da proteção especial reservada aos magistrados por uma disposição constitucional, é igualmente composto por magistrados que beneficiam, por sua vez, dessa proteção e que dispõem, em qualquer circunstância, da maioria dos votos e, por conseguinte, de um peso preponderante na tomada de decisão do referido organismo, o que é suscetível de garantir a sua independência.

72 No que respeita, em segundo lugar, à exigência de independência, na perspetiva da sua segunda vertente, que é de ordem interna, referida no n.º 61 do presente acórdão, importa salientar que, na verdade, no Ministério da Economia e das Finanças existe uma separação funcional entre, por um lado, os serviços da Administração Fiscal encarregados da gestão, da cobrança e da liquidação do imposto e, por outro, os TEA, que decidem das reclamações apresentadas contra as decisões tomadas pelos referidos serviços.

73 No entanto, como também observou o advogado‑geral nos n.os 31 e 40 das suas conclusões, algumas características do processo de recurso extraordinário perante a Sala Especial para la Unificación de Doctrina (Secção Especial para Uniformização de Jurisprudência, Espanha), processo que se rege pelo artigo 243.º da LGT, contribuem para lançar a dúvida sobre o facto de o TEAC ter a qualidade de «terceiro» relativamente aos interesses em conflito.

74 Com efeito, cabe exclusivamente ao diretor‑geral dos Impostos do Ministério da Economia e das Finanças interpor um recurso extraordinário das decisões do TEAC com as quais não concorda. Ora, esse diretor‑geral faz, ele próprio, oficiosamente parte da formação composta por oito pessoas que é competente para conhecer desse recurso, tal como o diretor‑geral ou o diretor do departamento da Agência Estatal da Administração Fiscal a que pertence o órgão autor do ato visado pela decisão que é objeto do recurso extraordinário em causa. Assim, quer o diretor‑geral dos Impostos do Ministério da Economia e das Finanças, que interpôs o recurso extraordinário de uma decisão do TEAC, quer o diretor‑geral ou o diretor da Agência Estatal da Administração Fiscal do qual emana o ato visado por esta decisão têm assento na Secção Especial do TEAC que conhece desse recurso. Daí resulta uma confusão entre a qualidade de parte no processo de recurso extraordinário e a de membro do órgão competente para conhecer desse recurso.

75 De resto, a perspetiva da interposição desse recurso extraordinário pelo diretor‑geral dos Impostos do Ministério da Economia e das Finanças contra uma decisão do TEAC é suscetível de exercer pressão sobre este e de, assim, lançar dúvidas sobre a sua independência e a sua imparcialidade, não obstante o facto, invocado pelo Governo espanhol na audiência no Tribunal de Justiça, de resultar do artigo 243.º, n.º 4, da LGT que esse recurso extraordinário só produz efeitos para o futuro e não tem incidência nas decisões já adotadas pelo TEAC, incluindo a que é objeto do referido recurso.

76 Assim, estas características do recurso extraordinário para uniformização da jurisprudência que pode ser interposto contra as decisões do TEAC realçam as relações orgânicas e funcionais existentes entre este organismo e o Ministério da Economia e das Finanças, em particular o diretor‑geral dos Impostos desse ministério, bem como o diretor‑geral da direção de onde emanam as decisões impugnadas perante si. A existência dessas ligações opõe‑se a que seja reconhecida ao TEAC a qualidade de terceiro em relação a essa Administração (v., por analogia, Acórdão de 30 de maio de 2002, Schmid, C‑516/99, EU:C:2002:313, n.os 38 a 40).

77 Por conseguinte, o TEAC não cumpre a exigência de independência própria de um órgão jurisdicional, considerada na sua vertente interna.

78 Importa acrescentar, por um lado, que o facto de os TEA não constituírem «órgãos jurisdicionais», na aceção do artigo 267.º TFUE, não os dispensa da obrigação de garantir a aplicação do direito da União aquando da adoção das suas decisões e de não aplicar, se necessário, as disposições nacionais que se revelem contrárias a disposições do direito da União dotadas de um efeito direto, uma vez que tais obrigações vinculam, efetivamente, todas as autoridades nacionais competentes e não apenas as autoridades jurisdicionais (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.os 30 a 33; de 14 de outubro de 2010, Fuß, C‑243/09, EU:C:2010:609, n.os 61 e 63; e de 4 de dezembro de 2018, Minister for Justice and Equality e Commissioner of An Garda Síochána, C‑378/17, EU:C:2018:979, n.os 36 e 38).

79 Por outro lado, o facto de existirem vias de recurso jurisdicionais perante a Audiencia Nacional (Audiência Nacional, Espanha) e perante o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) contra as decisões dos TEA tomadas na sequência do procedimento económico‑administrativo de reclamação permite garantir a efetividade do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º TFUE e a unidade de interpretação do direito da União, uma vez que tais órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da faculdade ou, se for caso disso, são obrigados a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça se for necessária uma decisão sobre a interpretação ou validade do direito da União (v., por analogia, Acórdão de 31 de janeiro de 2013, Belov, C‑394/11, EU:C:2013:48, n.º 52).

80 Tendo em conta as considerações precedentes, há que declarar que o pedido de decisão prejudicial apresentado pelo TEAC é inadmissível, uma vez que este organismo não pode ser qualificado de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.º TFUE."

[MTS]