03/02/2020

Jurisprudência 2019 (166)


Venda executiva;
arrendamento; caducidade; abuso de direito


1. O sumário de RL 10/9/2019 (1452/17.5T8CSC.L1-7) é o seguinte: 

I– O arrendamento, registado ou não, constituído após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, é inoponível ao comprador do imóvel em venda judicial na ação executiva, caducando automaticamente com a concretização dessa venda, nos termos do nº 2 do art. 824 do C.C.;

II– A tal não obsta a circunstância da hipoteca ter sido constituída sobre imóvel destinado ao arrendamento e do adquirente do imóvel ser o credor hipotecário, não podendo considerar-se que este age em abuso de direito ao invocar, nessas condições, a referida inoponibilidade.
 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I–Relatório:

S. Empreendimentos Turísticos, S.A., veio propor, em 4.5.2017, contra o Banco C., ação declarativa comum pedindo que seja declarado que os dois arrendamentos das frações “A” e “L” do prédio urbano sito na Estrada da R..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de C... sob o nº ..., freguesia de A..., são válidos e eficazes nos precisos termos em que foram celebrados, e obrigam a A. e o R., este a partir da aquisição dos dois andares. [...]


III–Fundamentos de Direito: [...]

B)–Do abuso de direito do Banco R.:

Tendo o Banco R. sustentado na contestação a caducidade do contrato de arrendamento com a venda judicial, nos termos do art. 824, nº 2, do C.C., em virtude das hipotecas terem sido constituídas e registadas antes do arrendamento, respondeu a A. que o R. atua em abuso de direito, uma vez que impôs e autorizou o arrendamento dos imóveis.

Na sentença, discorreu-se a este propósito nos seguintes termos: “(…) cumpre salientar que o contrato de mútuo em questão se destina ao fomento de aquisição de habitação para arrendamento, é um instrumento financeiro, ou na gíria bancária, um produto que visa estimular a colocação de fogos no mercado imobiliário, com vista à sua rentabilização e não com vista à sua habitação própria e permanente.

Logo, o escopo lucrativo do produto financeiro em questão, impõe que o mutuário procure efectivamente disponibilizar o imóvel no mercado, sob pena de incumprimento contratual.

Contudo, tal incumprimento contratual não se sobrepõe ao incumprimento derivado da falta de pagamento das prestações de amortização contratadas, pelo que falhado este, ocorre a resolução total do programa contratual acordado (art. 405.º do Cód.Civil).

A resolução por incumprimento e os subsequentes passos tomados pela Ré Banco, não são contrárias ao fim social do contrato de mútuo, qualquer que seja o fim a que o mesmo se destine, sendo antes uma característica típica dos contratos (art. 817.º do Cód.Civil).

Deste modo, não podemos afirmar que a resolução do contrato de mútuo para aquisição de fracção destinada ao arrendamento, com a subsequente venda da fracção em processo executivo, seja contrário à finalidade jurídica e social do contrato de mútuo e do contrato de arrendamento, sendo a compatibilização entre ambos, efectuada nos termos acima explanados.
Por conseguinte, não ocorre abuso de direito (art. 334.º do Cód.Civil) da Ré em qualquer das suas modalidades, não podendo o contrato de arrendamento dos autos, ser considerado como subsistente após a realização da venda executiva. (…).

No recurso, a A./apelante insiste que o arrendamento foi imposto pelo Banco R., pelo que este não pode invocar que desconhecia que tais frações se destinavam ao arrendamento, constituindo tal alegação abuso de direito.

Já o recorrido assinala, em contra-alegações, que não impôs o arrendamento das frações à mutuária, que nunca negou nos autos a obrigação de arrendamento das mesmas, nem afirmou desconhecer que estas se destinavam ao arrendamento.

Vejamos.

Efetivamente, o Banco R. afirma expressamente na contestação que as frações se destinavam ao arrendamento e não à habitação, própria e permanente, da mutuária, e que, estando esta obrigada a fornecer cópia do contrato de arrendamento ao Banco mutuante, tal como a receber as rendas respetivas por crédito em conta aberta no mesmo Banco, não cumpriu tais estipulações.

Sendo esta a posição do R. – e não a referida pela apelante – ou seja, sabendo o Banco que as frações adquiridas pela mutuária se destinavam ao arrendamento, estaria o mesmo impedido de invocar, de acordo com as regras da boa-fé, a caducidade do arrendamento celebrado pela A. nos moldes acima analisados?

Cremos que não.

Dispõe o art. 334 do C.C. que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

A ilegitimidade em que se traduz o abuso de direito não resulta da violação formal de qualquer preceito legal em concreto mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito, independentemente do animus ou da consciência que o seu titular tenha do carácter abusivo da sua conduta([...]).

“(…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.

É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, «em termos clamorosamente ofensivos da justiça» (…)”([Ainda Antunes Varela, [Das Obrigações em Geral, voç I], págs. 498/499.]).
O abuso de direito surge, assim, como a exceção oposta ao direito, cuja existência em si não é questionada, mas cujo exercício, por circunstâncias concretas, se torna inadmissível. Daí que a verificação em concreto do abuso legitime a oposição ao seu exercício e paralise a respetiva execução.

Uma das modalidades desse abuso é a chamada conduta contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio da tutela da confiança.

Revertendo para o caso em análise, afigura-se que o fim do arrendamento, conhecido pelo Banco R., a que se destinavam as frações adquiridas pela mutuária, não afeta a lógica acima expendida sobre a prioridade da hipoteca.

O que se retira da cláusula 6ª do documento complementar anexo a cada uma das escrituras públicas de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” não será exatamente uma obrigatoriedade da mutuária em manter as frações arrendadas – esse era o fim a que, à partida, se destinava a aquisição – mas sim de estas o serem “por renda compatível com as praticadas no mercado de novos arrendamentos” e da adquirente/mutuária “afectar as rendas provenientes dos arrendamentos que venham a efectuar ao pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e outros montantes devidos em virtude do presente empréstimo, obrigando-se a fornecer ao Banco cópia dos contratos de arrendamento” (cfr. pontos 3 e 6 supra). Ou seja, o que se pretendia era que, destinando-se as frações ao arrendamento, conforme expressamente declarado pela compradora nas respetivas escrituras públicas, os proventos assim obtidos por esta, enquanto senhoria, fossem o mais elevado possível e garantissem, ao Banco mutuante, a amortização do empréstimo.

De resto, prevê-se na mesma cláusula 6ª que os imóveis poderiam não se encontrar arrendados, devendo então os pagamentos a efetuar para liquidação do capital mutuado, respetivos juros ou outros encargos, ser realizados por débito numa outra conta de depósitos à ordem (nº 3 da dita cláusula 6ª).

É evidente que uma coisa é o fim a que, de acordo com a respetiva escritura de aquisição, se destina um certo imóvel, e outra a existência de um concreto contrato de arrendamento, quando foi celebrado e em que condições.

Ora, na situação em análise, como vimos, o contrato de arrendamento invocado pela A. foi celebrado em 1.8.2006 relativamente a ambas as frações, logo, após o registo das respetivas hipotecas, realizado em 15.4.2005.

Por sua vez, como se provou, e contra o que ficara estipulado, a mutuária não forneceu ao Banco R. cópia do contrato de arrendamento celebrado com a A., nem recebeu as rendas respetivas na conta aberta no Banco R.. Tal como manifestamente não celebrou, em 2006, tal contrato por “renda compatível com as praticadas no mercado de novos arrendamentos”, tendo em vista o valor de € 3.600,00 fixado como renda anual dos primeiros doze meses para as duas frações (cfr. ponto 7 supra).

Ademais, e sem prejuízo do disposto no nº 5 do art. 5 do Código do Registo Predial, nem o referido contrato de arrendamento foi sujeito a registo, como se impunha face ao disposto no art. 2, nº 1, al. m), do mesmo Código, visto ter sido celebrado sem prazo e por tempo indeterminado.

Logo, nem sequer pode invocar a A. que o Banco R. conhecesse, ou devesse conhecer, o contrato de arrendamento em apreço, o ónus que concretamente impendia sobre o imóvel.

Por outras palavras, não pode retirar-se da circunstância da aquisição das frações se destinar ao arrendamento, como era do conhecimento do R., que tal obstasse, de per si, à aplicação do disposto no art. 824, nº 2, do C.C., sendo a específica situação locatícia (registada ou não) constituída após o registo de hipoteca.

De resto, se a mutuária tivesse adquirido as frações já oneradas com arrendamentos pré-existentes é evidente que tal levaria a que se tivesse operado para si a transmissão da posição da locadora, por força do estatuído no art. 1057 do C.C., posição que haveria, por seu turno, de se transmitir também ao Banco R. em consequência da venda judicial, caso o registo da hipoteca fosse posterior a esses ditos arrendamentos, não operando, então, o art. 824, nº 2, do C.C..

Em suma, não se vislumbra que o Banco R. atue em abuso de direito ao invocar a caducidade do arrendamento por força da venda executiva.

Donde, inevitável é concluir que, nos termos do art. 824, nº 2, do C.C., o direito de arrendamento da recorrente caducou com a venda judicial das frações sobre que versava a locação, como acima desenvolvemos." 

[MTS]