10/02/2020

Jurisprudência 2019 (171)


Apelação;
junção de documentos; documentos supervenientes*


1. O sumário de STJ 12/9/2019 (1238/14.9TVLSB.L1.S2) é o seguinte:

I – A faculdade de junção de documentos em fase de recurso é de natureza excecional e não é possível depois da apresentação das alegações, por a lei não admitir a prorrogação do prazo constante do art. 651º, nº 1 do CPC.

II – A junção em momento posterior não pode ser permitida ao abrigo do art. 6º, nº 1 do mesmo diploma – dever de gestão processual a cargo do juiz – por este visar uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de atos não permitidos por lei.

III – Havendo recurso da decisão proferida quanto à matéria de facto, a apreciação do cumprimento das exigências de especificação feitas no art. 640º do mesmo diploma tem de ser feita à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

IV – Não impondo a lei, textualmente, que a identificação dos factos seja feita, nem pela indicação do seu número, nem pela indicação do seu teor exato, não pode deixar de se considerar suficiente qualquer outra referenciação feita pelo recorrente, desde que elaborada em termos tais que não deixem dúvidas sobre aquilo que pretende ver sindicado, assim definindo o objeto do recurso nessa parte, através da enunciação suficientemente clara da questão que submete à apreciação do tribunal de recurso.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Depois de terem apresentado em 2.12.2016, a fls. 508 e segs., as suas alegações, os apelantes vieram, em 16 do mesmo mês, pedir a junção aos autos de uma fotografia, acompanhada de expediente que a certifica emitido por … Ocidental, SRU – Sociedade de Reabilitação Urbana, E. M., S. A..

Justificando a sua apresentação nesse momento, disseram que só em 9.12.2016 o documento foi encontrado no espólio de JJ, comproprietária encarregada, à época, de gerir a edificação.

No acórdão recorrido rejeitou-se a sua apresentação, com a seguinte fundamentação:

“Dispõe o nº1 do art. 651º do CPC:
«As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância».

Por seu lado, preceitua o art. 425º do CPC:

«Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».

Abrantes Geraldes refere, a propósito da junção de documentos na fase do recurso, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 203-204, o seguinte:

«Em sede de recurso, é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva).

Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido,
maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.

A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa ao resultado».

Conforme se exarou no Ac. da Rel. do Porto de 26-09-2016 (Rel. Manuel Domingos Fernandes), Proc. nº 1203/14.6TBSTS.P1, publicado em www.dgsi.pt:

«I - Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

II - Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.

III - Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.

IV - Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.

V - Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento.»

A junção de documentos com as alegações de recurso é, na verdade, excepcional, desde logo porque, ainda que se impugne a matéria de facto, não visa esta provocar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, nem os julgamentos podem ser prolongados
“ad infinitum”, nem o contraditório pode assumir na fase de recurso a mesma dimensão que tem numa audiência de discussão e julgamento, com a imediação que esta proporciona e com todas as virtualidades que a discussão que, no seu âmbito, se desenrola, permite.

Neste caso, considera-se ser a apresentação extemporânea, desde logo porque não foi feita com as alegações. Na verdade, os Apelantes ao mesmo tempo que requereram a correcção de duas gralhas (que, na situação, não assumem importância, não sendo susceptíveis de perturbar a substância do recurso), solicitaram a junção do documento, invocando superveniência subjectiva. Ora, as AA. lembram – bem – que o processo teve início em 2013, com o embargo extrajudicial de obra nova. De onde se retira que os RR. tiveram tempo para fazer a recolha/busca, junto de quem os pudesse fornecer, dos elementos documentais pertinentes, de modo a serem exibidos na altura adequada, com pleno exercício do contraditório. E, como se vê, nem o fizeram com as alegações, como a Lei, ainda que excepcionalmente, permite, mas em momento posterior, em requerimento avulso que, no que toca à junção do documento, não pode configurar-se como correcção das alegações.

Assim, há que indeferir a requerida junção do documento, devendo ser desentranhado, juntamente como os que o acompanham.”
 

Como resulta do que dispõe o art. 651º, nº1 do CPC [...], a junção de documentos, em fase de recurso, apenas é consentida com as alegações.

Trata-se, aliás, de um mecanismo de utilização excecional, pois pressupõe a verificação das situações previstas no art. 425º ou que a apresentação do documento se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

No caso em análise, a junção de novo documento teve lugar, não com o oferecimento das alegações, mas em requerimento posteriormente apresentado pelos recorrentes destinado à retificação de [lapsos] de escrita cometidos naquela peça processual.

Conscientes de que aquela norma não dá cobertura à sua pretensão, acolhem-se ao disposto no nº 1 do art. 6º, que impõe ao juiz o dever de uma gestão processual que imprima celeridade à tramitação, recusando o que for impertinente ou dilatório e adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a obtenção, em prazo razoável, da justa composição do litígio.

Pretende-se, pois, obter uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de atos não permitidos por lei, como seria a aceitação da prática de ato processual fora do prazo perentório a que está sujeito.

Seria ato não permitido a admissão de documento apresentado depois do prazo legal; sendo a junção de documento possível apenas com a apresentação da alegação de recurso, isso envolve a existência de um prazo perentório, já que se não prevê a possibilidade da sua prorrogação – cfr. art. 141º, nº 1."

*3. [Comentário] Embora o STJ reflicta no seu acórdão o entendimento comum (na jurisprudência e na doutrina) sobre a matéria, crê-se que é possível uma outra leitura do regime legal.

O art. 425.º CPC estabelece que, "depois do encerramento da discussão, só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento". Disto resulta que, na fase de recurso, é possível apresentar documentos supervenientes ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância.

Na sequência deste regime, o art. 651.º, n.º 1, CPC determina, no que agora releva, que "as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º [...]". Disto decorre que as partes do recurso podem, nas suas alegações, juntar documentos que sejam supervenientes em relação ao encerramento da discussão em 1.ª instância (e não podem juntar a essas alegações documentos que não sejam posteriores a esse encerramento).

Mas, salvo melhor opinião, do disposto no art. 651.º, n.º 1, CPC não resulta que as partes só possam juntar esses documentos supervenientes com as alegações. A única coisa que decorre do art. 651.º, n.º 1, CPC é que as partes têm o ónus de juntar às suas alegações os documentos que sejam supervenientes em relação ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância e que as partes disponham nesse momento. Do disposto nesse preceito não resulta, de modo algum, que, em recurso só é possível apresentar os documentos que as partes têm o ónus de juntar às alegações.

Assim, o regime legal permite ainda considerar a hipótese de os documentos serem supervenientes em relação às alegações das partes. A opinião comum -- que o acórdão do STJ reflecte -- é a de que estes documentos não podem ser juntos ao processo. Não se acompanha esta orientação. 

Ao contrário do que se entende habitualmente, os art. 425.º e 651.º, n.º 1, CPC não instituem um regime único, mas antes um regime dual:

-- O art. 425.º CPC é, nesta matéria, a regra geral: em recurso, só são admitidos os documentos que sejam posteriores ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância; mas, como é evidente, tanto são posteriores a esse momento os documentos que as partes têm o ónus de juntar às alegações, como os documentos que são posteriores a essas alegações; todos estes documentos preenchem a condição do art. 425.º CPC, isto é, todos eles são posteriores ao encerramento da discussão em 1.ª instância;

-- O art. 651.º, n.º 1, é, nesta mesma matéria, um regime especial: em relação aos documentos que sejam posteriores ao encerramento da discussão em 1.ª instância, esse preceito estabelece que, para aqueles que sejam anteriores às alegações das partes, estas têm o ónus de os juntar a estas alegações.

Sendo assim, para uma hipótese que não cabe neste regime especial -- que é a de os documentos serem posteriores à apresentação das alegações das parte --, há que aplicar o regime geral do art. 425.º CPC, com a importante consequência de que a parte pode apresentar em recurso um documento superveniente à apresentação da respectiva alegação.

Deste modo, excluídas, naturalmente, as situações de falta de diligência da parte ou de litigância de má fé desta (o que, caso concreto, o STJ não controlou), nada no regime legal impede a junção de documentos supervenientes em relação à apresentação das alegações. Aliás, cabe perguntar com que justificação -- que não seja uma justificação puramente formal -- se pode impedir uma parte de apresentar em recurso um documento de que só teve conhecimento depois da apresentação das respectivas alegações? 

No fundo, o que bem se pode perguntar é que justiça é que se pretende que seja obtida nos tribunais através da aplicação do direito processual civil.

MTS