14/02/2020

Jurisprudência 2019 (175)


Providência cautelar;
manifesta improcedência


1. O sumário de RP 12/9/2019 (1774/19.0T8PRD.P1) é o seguinte:

I - A providência cautelar comum não se esgota na natureza conservatória do direito; pode ter natureza antecipatória, o que acontece quando visa a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.

II - Neste procedimento, a manifesta improcedência a que se referem os art.ºs 226º, nº 4, al. b) e 590º, nº 1, do Código de Processo Civil, não pode deixar de se revelar por uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de Direito indispensáveis ao exercício cautelar do direito, de tal modo que torne inútil qualquer instrução e discussão posteriores.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. B…, divorciada, [...] instaurou procedimento cautelar não especificado contra C…, divorciado, NIF ………., com indicação da mesma residência, alegando essencialmente que foi casada com o Requerido, que no âmbito do divórcio a casa de morada de família foi, por acordo devidamente homologado, atribuída àquele seu ex-cônjuge até à partilha, a qual já foi requerida em 12.07.2017, que vive com o filho maior do casal, nascido em 08.11.2000, o qual está desempregado e incapacitado por doença de exercer qualquer profissão pelo menos até 18.07.2019, que depende de si, uma vez que realiza tratamento psiquiátrico em ambulatório, carecendo da sua acção e vigilância na toma da medicação, [...] que se alteraram as circunstâncias que ditaram o acordo quanto à atribuição da casa de morada de família e vai instaurar a respetiva ação para se proceder a tal alteração [...].

II. [...] Está para decidir se há fundamento para rejeição liminar do procedimento cautelar requerido, por falta dos respetivos pressupostos. [...]

IV. [...] A providência cautelar comum não se esgota na natureza conservatória do direito, podendo ter natureza antecipatória, ou seja, as providências cautelares são conservatórias se visam acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a permanência da situação existente, e são antecipatórias se visam a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.

As medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo. Garante-se desde logo e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter caracter definitivo. [...]

A admissibilidade liminar da providência requerida depende da alegação de factos que consubstanciem a probabilidade séria da existência do direito tido por ameaçado, do fundado receio da sua lesão grave e de difícil reparação, da adequação da providência à remoção do periculum in mora concretamente verificado e ainda da garantia de que visa assegurar a efectividade do direito ameaçado e, bem assim, da insusceptibilidade de o decretamento implicar prejuízo superior ao dano que visa evitar. [...]

Tem-se entendido que o correto entendimento será, pois, o de que a providência deve ser decretada, sempre que, se esteja ante uma lesão grave, atenta importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objeto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível. [...]

A Requerente pretende que lhe seja cautelarmente atribuída a casa de morada família, propriedade ainda indivisa do casal, propondo-se pagar uma retribuição pelo seu uso até à partilha e instaurar a ação principal destinada àquele mesmo fim.

Nos termos do art.º 1793º do Código Civil:

1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.

Como observámos, o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou, antecipadamente, em direito emergente de decisão a proferir.

Justifica a Requerente a sua pretensão provisória com uma alteração das circunstâncias de facto surgida após o acordo (homologado) havido entre ela e o seu ex-cônjuge, o Requerido, que considera suficiente para que o direito deixe de ser exercido por este e seja atribuído à própria, também até à partilha, como ficara estabelecido no referido acordo.

A atribuição da casa de mora de família é uma providência de jurisdição voluntária, podendo, por isso, a sua resolução ser alterada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes, ou seja, todas aquelas que ocorram posteriormente à decisão e ainda as que, sendo anteriores, não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.ºs 988º, nº 1 e 990º do Código de Processo Civil).

Para que lhe seja atribuído o direito em causa, a Requerente aduz essencialmente que, desde a data em que, por acordo homologado em 9.11.2015, foi atribuída ao Requerido a casa de morada de família até à partilha dos bens comuns do extinto casal, se alteraram as circunstâncias da sua vida, da vida do Requerido e do filho, integrando este o seu agregado familiar. O contrato de arrendamento relativo à sua casa de habitação e do filho extinguiu-se, ficando o agregado sem meios para fazer face à renda de casa que teria de suportar com um novo arrendamento, não conseguindo, aliás, obter na mesma zona outro espaço habitacional para arrendar pelo mesmo ou mais favorável preço de renda. Não obstante acompanhamento clínico psiquiátrico anterior, revelou-se a doença grave do filho do foro psicótico (esquizofrenia), está desempregado e incapacitado, e tem necessidade de acompanhamento e vigilância na toma do medicamento em ambulatório, sob pena de agravamento sensível da doença. O seu agregado não tem meios financeiros para fazer face a um novo arrendamento compatível com as suas necessidades.

O Requerido emigrou e, por isso, deixou de residir na casa de morada de família, que passou a frequentar apenas por curtos períodos de tempo, designadamente nas suas férias laborais de verão. Não cumpriu devidamente as suas obrigações alimentares relativamente ao filho enquanto este foi menor, com valor elevado em dívida e em vias de cobrança coerciva, não se preocupa com a sua situação de doença atual nem colabora nos encargos que daí advêm, pelo que é a Requerente que tem vindo a suportar sozinha todas as suas despesas, apesar de ter como único rendimento a sua retribuição laboral mensal de apenas €635,07.

Tudo isto foi alegado no requerimento inicial com melhor concretização. Mesmo que se admita que tais factos carecem de alguma complementaridade, designadamente quanto à sua superveniência relativamente à data em que foi homologado o acordo das partes quanto à atribuição do direito à casa de morada de família - o que sempre pode ser viabilizado através do mecanismo que o art.º 5º, nº 2, do Código de Processo Civil prevê - a matéria alegada revela um agravamento apreciável do estado de necessidade da casa de morada de família por parte da Requerente e do filho e uma significativa atenuação da necessidade da mesma casa por parte do Requerido por ter passado a residir no estrangeiro, suficientes para que não se possa concluir, ao menos por agora, que existe uma manifesta improcedência da providência requerida. [...]

A ser verdade o que mais alega a Requerente, existe da parte dela um estado de carência de habitação que pode ser suprido pelo exercício do provável direito à casa de morada de família pela preponderância do seu interesse (e do filho) sobre o interesse do Requerido, fortemente reduzido pela sua ausência no estrangeiro, propondo-se ela pagar-lhe uma compensação.

A providência cautelar instaurada não está ab initio condenada ao fracasso. A manifesta improcedência a que se referem os art.ºs 226º, nº 4, al. b) e 590º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicados na decisão recorrida, não pode deixar de se revelar por uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de Direito indispensáveis ao exercício do direito, entre eles a falta da causa de pedir, não uma causa de pedir que seja apenas deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta, por isso aperfeiçoável, sendo evidente naquele código a adoção de mecanismos demonstrativos de séria preocupação com a realização da justiça material e concreta [...]. [...]

A manifesta improcedência é a evidência, a notoriedade, da improcedência, sendo entendimento tradicionalmente dominante que o indeferimento da petição, com tal fundamento, só deve ocorrer quando a improcedência ou a inviabilidade da pretensão do autor se apresente de forma tão evidente, que torne inútil qualquer instrução e discussão posteriores, isto é, que faça perder qualquer razão de ser à continuação do processo, levando a um desperdício manifesto se (não fosse logo atalhada) da actividade judicial, ou, por outras palavras ainda, quando é evidente ou que a pretensão do autor carece de fundamento, o que deve ser aferido casuisticamente, perante cada caso concreto, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito. [...]

A providência cautelar instaurada pela Requerente é viável.

A apelação deve proceder, com admissão da providência por não haver manifesta improcedência que justifique o indeferimento liminar (a questão do recurso)."

[MTS]