17/02/2020

Jurisprudência 2019 (176)


Prestação de facto; execução;
prestação fungível; sanção pecuniária compulsória*

1. O sumário de STJ 19/9/2019 (939/14.6T8LOU-H.P1.S1) é o seguinte:

I - É através da interpretação que se obtém o sentido da sentença que é título executivo e o alcance do caso julgado. 

II - A condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória encontra-se intimamente ligada à condenação do devedor na realização da prestação de facto, na medida em que visa compeli-lo a adotar a conduta devida, até então por si omitida. Tem, outrossim, em vista assegurar a observância da sentença condenatória. 

III – Tendo os Recorrentes, no requerimento executivo, optado pela prestação por outrem - e não pelos Recorridos -, verifica-se que o requerimento do pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que os Recorridos foram condenados, não encontra respaldo na sentença exequenda. 

IV - É que a condenação nesse pagamento pressupõe, de acordo com a sentença, a prestação pelos Recorridos e não por outrem à custa destes. 

V - O caso julgado formou-se nestes precisos termos, de um lado e, de outro, a execução tem de respeitar o título executivo. 

VI - A sentença exequenda, como decorre da respetiva interpretação, pronunciou-se sobre o pedido respeitante à fixação de uma quantia a título de sanção pecuniária compulsória formulado pelos Recorrentes no pressuposto da intervenção e participação pessoal dos Recorridos, do atraso da realização da prestação pelos Recorridos e não por outrem à custa destes. 

VII - Pode dizer-se que não se verifica ofensa do caso julgado no que toca ao afastamento do pagamento desta sanção compulsória no período subsequente à data da propositura da ação executiva em que os Recorrentes requerem a realização da prestação por outrem. Enquanto meio de coerção, a sanção pecuniária compulsória deixou então de produzir efeitos. Desapareceu o pressuposto da sanção em apreço e, por isso, não pode continuar a pressionar-se os Recorridos, dada a irrelevância da sua vontade. 

VIII - Não pode, todavia, afirmar-se o mesmo a propósito da sanção pecuniária compulsória correspondente ao período que medeia entre o termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos Recorridos e a data da instauração da ação executiva, do requerimento da prestação por outrem. O requerimento da prestação por outrem apenas faz cessar os efeitos da sanção pecuniária compulsória para o futuro, não para o passado.

2. No relatório do acórdão escreveu-se, nomeadamente, o seguinte:

"I – Relatório

1. Na ação declarativa de condenação, com processo sumário, que correu termos no então 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., e na qual foram Autores AA e mulher BB, ora Exequentes, e Réus CC e mulher DD, ora Executados, foram estes condenados, inter alia, a:

“A) Reconhecer que os autores são donos do prédio identificado no art.1º da petição, bem como da água que nele era explorada e represada, conforme descrito nos artigos 7º a 13º da petição;

B) Reconhecer os direitos dos autores e intimados a abster-se de, por qualquer, forma, impedir ou diminuir o seu gozo pelos autores;

C) Repor o prédio dos autores identificado no art.º1º da petição, no estado anterior aos trabalhos de movimentos de terra que nele foram executados pelo réu marido, nomeadamente aliviando a nascente, repondo a água que nela brotava, reconstruindo a poça e nela repondo o tubo e repondo a condução da água, através dele, para o prédio “...”;

D) Executar estes trabalhos no prazo de trinta dias, após trânsito em julgado da sentença condenatória;

E) No pagamento aos Autores na quantia de 2 UC por cada dia de atraso no cumprimento dos trabalhos supra ordenados, para além dos 30 dias acima concedidos contados do trânsito em julgado desta decisão, a título de sanção pecuniária compulsória; (…)”.

2. Após o trânsito em julgado da referida decisão, os ali Autores AA e mulher BB instauraram execução contra os Réus CC e mulher DD, alegando, no seu requerimento executivo e entre o mais, o seguinte:

“- Que o prazo para a realização dos trabalhos definidos na sentença proferida da acção declarativa terminou no passado dia 7 de Agosto de 2009.

- Contudo e até à data da instauração da execução (09.09.2009), os executados nada realizaram (…).

- (…) declaram, ao abrigo do disposto no art.º 933º, nº1 do CPC optar pela prestação de facto por outrem, por se tratar de facto fungível, requerendo que seja nomeado perito que avalie o custo da prestação (art.º 935º, nº1 do CPC).

- (…) como os executados nada fizeram, desde 08.08.2009 até à presente data (09.09.2009), devem os executados pagar a quantia de 7.920,00 €, a título de sanção pecuniária compulsória, sendo metade para os exequentes e outra metade para o Estado.

- (…) os executados devem ainda pagar a sanção pecuniária compulsória, à razão de 2 UC por dia, que continuará a vencer-se, desde a presente data até integral cumprimento da prestação de facto, que deverá ser liquidada a final pelo agente de execução, nos termos do artigo 805º, nº3 do CPC. (…)”.

3. O Tribunal de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho:

“(…) Além do pedido da prestação de facto, os exequentes também pretendem que os executados lhe paguem a quantia que ficou fixada a título de sanção pecuniária compulsória, na sentença que constitui título executivo nos presentes autos.

Tal sentença condenou os executados ao pagamento de uma sanção de 2 UCs, por cada dia de atraso na execução do facto a que alude a sentença em causa.

A sentença em causa foi uma mera sentença de preceito, dado não ter havido oposição por parte dos réus aqui executados. Foi proferida em Maio de 2009, tendo transitado em julgado em Julho desse ano.

Já passaram mais de 8 anos desde o trânsito em julgado dessa sentença.

A entender-se que este valor é devido desde o prazo consignado na sentença até a data de hoje, a sanção pecuniária em causa, ultrapassaria os 500.000€.

Porém e sem necessidade de buscarmos institutos como a redução dessa cláusula ou o funcionamento da figura do abuso de direito, entendemos que a referida cláusula não é devida a qualquer título, não desrespeitando este Tribunal, com esta decisão, a força do caso julgado.

Com efeito, o art.° 829.° A do C. Civil prevê o seguinte: (…)

Por sua vez a prestação diz-se fungível quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor, e será infungível no caso inverso, ou seja que apenas pode ser realizada pelo devedor.

Conforme decorre desse preceito legal e é jurisprudência unanime nos nossos tribunais superiores, apenas nas prestações de facto infungíveis é que há lugar à condenação e pagamento dessa sanção, não fazendo sentido que tal suceda noutras situações.

E compreende-se que assim seja, pois que consistindo a sanção pecuniária compulsória uma medida coercitiva de caracter compulsório que visa forçar o devedor a cumprir, não faz sentido que essa coercividade seja usada nas situações em que o facto possa ser prestado por terceiro ou até pelo próprio credor que depois pode fazer repercutir esse custo na esfera patrimonial do devedor.

No caso em apreço, estamos perante um facto fungível que pode ser prestado por terceiro, conforme os exequentes reconhecem e pedem no seu requerimento executivo.

Logo, e tendo os exequentes optado pela prestação por outrem, nos termos do art.° 933°, n° 1, do CPC, por entenderem que estavam perante facto fungível, não podem reclamar sanção pecuniária compulsória, pois a mesma, como vimos, ao abrigo do art.° 829°-A, do CC, destina-se apenas a cobrir a hipótese de prestação de facto infungível.

Acresce que esta decisão, conforme referimos, não viola o princípio do caso julgado, pois que no processo declarativo, cuja sentença constitui título executivo, nunca se referiu nem tampouco se apurou se estávamos perante prestação de facto fungível ou infungível, algo que apenas foi aflorado e analisado nestes autos.

Logo, tem de se interpretar tal decisão ao abrigo do preceito legal que suporta a figura da sanção pecuniária compulsória, sendo que apenas na hipótese de estarmos perante uma prestação e facto infungível é que a sanção prevista na referida sentença se tornaria efectiva, algo que não acontece no caso em apreço. Refira-se ainda que caso estivéssemos perante facto infungível entendemos igualmente que a sanção nunca poderia atingir estes valores, havendo lugar à sua redução, nos termos do art.° 811.°, n.°3 e 812.° do C. Civil.

Nesta conformidade e por todo o exposto, este Tribunal decide: (…)

- esclarecer e determinar que na penhora dos bens necessários ao custo da prestação, não se deve ter em conta o valor da sanção pecuniária compulsória, pois que a mesma não é devida, dado estarmos perante prestação de facto fungível. (…).”.

4. Inconformados, os Exequentes interpuseram recurso de apelação.

O Tribunal da Relação do Porto confirmou o despacho apelado, baseando-se, essencialmente, nas seguintes considerações:

“Segundo o disposto nos artigos 933º, nº1, 2ª parte, e 939º, nº 1, do CPC, no âmbito do processo executivo para prestação de facto, “se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir ou quando o prazo para a prestação não esteja determinado no título executivo, o credor pode requerer a prestação por outrem (e a fixação judicial do prazo para o efeito), se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação.

No entanto, quando se trate de uma prestação de facto infungível, pode, ainda, o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo, isto é, este tipo de sanção apenas pode ter lugar em caso de obrigação de prestação de facto infungível.

Ou seja, apenas quando se trate de prestação de facto infungível e em que, nos termos do art.º 829º-A do Código Civil, haja sido estabelecida sanção pecuniária compulsória, pode o exequente cumular com o pedido de indemnização compensatória o pedido de obtenção da quantia eventualmente devida a título de sanção compulsória, ou, quando não haja sido estabelecida esse tipo de sanção na acção declarativa, pode o exequente obter, no âmbito da própria execução por facto positivo, a condenação do executado em sanção pecuniária compulsória, sempre que se verifiquem os pressupostos estabelecidos no art.º 829º-A, do Código Civil, facultando-se assim ao exequente uma ampliação (objectiva) do título executivo, no âmbito da própria execução, de modo a sancionar o executado, devedor de prestação de facto infungível”.

5. Os Exequentes, uma vez mais irresignados, interpuseram recurso de revista excecional."
 
3. No seu acórdão, o STJ decidiu o seguinte:

"Pelo exposto, decide-se julgar o recurso parcialmente procedente e revogar o acórdão recorrido na parte em que desconsidera a necessidade de os Recorridos procederem ao pagamento da sanção pecuniária compulsória liquidada no valor de €7.920."

4. [Comentário] a) Com todo o devido respeito, a decisão do STJ não é defensável.

É claro que, nesta matéria, os equívocos começaram na decisão condenatória proferida na anterior acção declarativa, na qual, apesar de se ter qualificado (ou aceitado) a prestação dos réus como sendo uma prestação de facto fungível, ainda assim se condenou, em clara violação do disposto no art. 829.º-A, n.º 1, CC, os demandados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

Já na execução proposta na sequência da condenação proferida na processo declarativo, o tribunal de 1.ª instância e Relação procuraram "emendar" a decisão condenatória, defendendo que, sendo a obrigação fungível, nunca pode haver condenação (nem, naturalmente, consequente execução) de qualquer sanção pecuniária compulsória.

No acórdão em análise, o STJ entendeu que os executados tinham direito à sanção pecuniária compulsória "correspondente ao período que medeia entre 8 de agosto (termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos Recorridos e momento a partir do qual a sanção pecuniária compulsória decretada começa a produzir efeitos) e 9 de setembro de 2009 (data da instauração da ação executiva, do requerimento da prestação por outrem)". Salvo o devido respeito, esta solução não parece aceitável.

b) No âmbito das decisões "viciadas", a doutrina processualista alemã trabalha, pelo menos desde os anos 50 do Século passado (Jauernig, Das fehlerhafte Urteil (1958)), com o conceito de "decisões ineficazes".

Esta ineficácia da decisão pode ter várias causas. Assim, entre outras situações, "uma sentença é ineficaz, quando ela pronuncia ou ordena uma consequência jurídica que, de acordo com a sua natureza, é desconhecida do direito vigente, como, por exemplo, quando [...] condena numa prestação que não existe segundo o direito vigente" (Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht (2018), 352). 

Quer dizer: a sentença tem de se movimentar no quadro do ordenamento jurídico, não podendo construir algo que está fora deste ordenamento. Nem o caso julgado obsta a esta conclusão, nomeadamente quando num outro processo -- como, in casu, num processo executivo -- se invoca o vício da decisão. Efectivamente, o que está fora do ordenamento jurídico não entra neste através do caso julgado, pois que este está tanto fora do ordenamento como a própria decisão a que se refere. Neste contexto, a ideia de que o caso julgado faz do branco, preto, e do recto, curvo (e vice-versa), já fez o seu tempo.

c) A acima referida sentença condenatória constitui um bom exemplo de uma decisão ineficaz na acepção da doutrina alemã: ao mesmo tempo que condena os réus a reporem a nascente no estado em que se encontrava antes dos movimentos de terras, condenou esses réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória. Atendendo ao disposto no art. 829.º-A, n.º 1, CC, isto é, naturalmente, contraditório, porque da premissa (prestação fungível) nunca pode decorrer a consequência (sanção pecuniária compulsória).

Repare-se não se trata de discutir se a prestação que os demandados devem realizar é fungível ou infungível e, tendo-se concluído que se trata de uma prestação infungível, condenar esses réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória. Nesta hipótese, poderia haver discordâncias quanto ao carácter infungível da prestação, mas a decisão não padecia de nenhum vício intrínseco: em coerência com a qualificação atribuída, a condenação na sanção pecuniária compulsória era intocável. 

O caso em análise é completamente diferente: não se discute o carácter fungível da prestação a que os réus são condenados, mas, ainda assim e manifestamente contra legem, condena-se os mesmos réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória. Ou seja, extraiu-se de uma premissa uma consequência inexistente na ordem jurídica portuguesa, dado que, quanto a prestações fungíveis, nunca é aplicável o regime da sanção pecuniária compulsória.

Como se disse, as instâncias -- quiçá pressentindo a "ineficácia" da decisão condenatória -- procuraram, através da interpretação desta decisão, afastar a exigibilidade e a execução da sanção pecuniária compulsória. Estranhamente, o STJ não seguiu este caminho, antes entendeu que a prestação era infungível até ao momento em que o exequente pediu a sua sua execução por outrem, momento em que a prestação de infungível passa a fungível. Dado que a fungibilidade ou a infungibilidade de uma prestação é definida por critérios objectivos e não pode depender da vontade do credor, trata-se de uma solução que não parece nada feliz.

MTS