26/02/2020

Jurisprudência 2019 (183)


Penhora; 
bem imóvel; âmbito da penhora


1. O sumário de RE 26/9/2019 (1224/14.9T8STB-A.E1) é o seguinte:

I - Não existindo qualquer parte destacada do prédio urbano penhorado, e devidamente registada, a parte do imóvel indicada pelo executado não tem autonomia registral e, como tal, a penhora, igualmente sujeita a registo, em face do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea n), do CRP, não poderia incidir sobre uma parte do prédio urbano descrito, mas apenas sobre o mesmo na sua integralidade, como incidiu.

II - O processo civil tem regras que não podem ser postergadas pelo tribunal, não não sendo a execução o meio próprio para suprir o consentimento da exequente para o destaque.

III - Mas, ainda que o executado tivesse instaurado essa acção, o processo executivo não poderia ser suspenso sequer com fundamento na pendência de causa prejudicial.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O embargante apelou renovando, em parte, argumentos já apresentados na oposição à penhora que deduziu com base no «manifesto excesso de bens penhorados para satisfazer um crédito que dizia apenas respeito a metade do valor das benfeitorias», invocando como fundamento os factos acima sintetizados no relatório.

A primeira instância, depois de correctamente afirmar que um dos fundamentos da oposição à penhora é precisamente a sua inadmissibilidade, quer quanto aos bens concretamente apreendidos quer relativamente à extensão com que foi realizada - conforme previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 863.º-Aº do CPC revogado pela Lei 41/2013, de 26/6, aplicável aos presentes autos por força do disposto no artigo 6.º, n.º 4, da referida Lei -, afirmou em fundamento da decisão recorrida que: «a questão suscitada pelo oponente respeita evidentemente à segunda parte da alínea em apreço, fundamento admitido como podendo servir de base ao incidente quando tenham sido penhorados bens de valor significativamente superior à quantia exequenda que visam garantir e às custas e encargos do processo (J. T. R. Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, vol. IV, Processo Executivo, Quid Juris, pág. 919).

Nos autos foi penhorado o prédio descrito na CRP de Sesimbra sob o n.º … da freguesia de Sesimbra (Castelo), inscrito na matriz sob o artigo ….

De acordo com o registo predial, o referido prédio é composto de edifício de r/c com a área coberta de 89,24 m2 e logradouro de 432,75 m2, e ainda por um edifício de r/c para oficina com a área coberta de 130,20 m2. Logo, não podia ser penhorada apenas uma parte do mencionado prédio, nomeadamente apenas a benfeitoria a que corresponde o edifício com a área coberta de 89,24 m 2 e um logradouro de 50 m2, mas a totalidade do prédio em causa, sendo certo que o oponente não demonstrou, como lhe competia, que foi efetuado o destaque daquele edifício e daquele logradouro.

Por outro lado, o oponente não fez, nem se propõe fazer, prova de que o bem penhorado tem um valor significativamente superior à quantia exequenda e às custas e encargos do processo. De resto, sempre a penhora do imóvel teria de ser considerada admissível à luz do preceituado no art. 834º, n.º 2 do CPC, na medida em que não foram identificados e localizados outros bens cuja penhora permitisse a satisfação integral do crédito no prazo de seis meses.».

Aceita o Apelante que «uma vez apurado com rigor o valor em dívida e que se supõe da ordem de 52.500 euros, em instante algum o recorrente se opôs à execução propriamente dita, insurgindo-se sim contra a dimensão assumida pela penhora efectuada, apresentando uma proposta equilibrada, justa e equitativa».

Significa isto que assumidamente apenas está em causa o fundamento de oposição à penhora indicado em primeira instância e pelo próprio oponente, isto é, a extensão da penhora, tanto mais que o mesmo assume igualmente o incumprimento da obrigação de pagamento de tornas que assumiu no processo de inventário. [...]

Insurge-se o Apelante, aduzindo, em suma, que a penhora veio incidir sobre os descritos e referenciados 2 r/c cobertos, sendo um de 89,24 m2 e logradouro de 432,75 m2 e o outro de 130,20 m2 para oficina, sendo que ambos se situam em terreno doado ao recorrente por seus pais, pelo que se trata de benfeitorias com direito de superfície, concluindo que se presume que a penhora que recai sobre essa totalidade patrimonial viola os princípios da adequação e da proporcionalidade, ao exceder manifestamente a cifra que será bastante para satisfazer o crédito da exequente.

Acontece, porém, que não são “benfeitorias com direito de superfície” que a certidão da Conservatória do Registo Predial junta ao processo executivo em 29.08.2012, faz presumir existirem na titularidade do executado, em face do disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial, de acordo com cuja estatuição “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, ou seja, de acordo com a respectiva inscrição e descrição, o mesmo é titular de um prédio urbano, com a referida descrição e componentes.

Na verdade, conforme decorre dos factos assentes, na execução foi penhorado o prédio urbano descrito na CRP de Sesimbra sob o n.º …/20100928 da freguesia de Sesimbra (Castelo), inscrito na matriz sob o artigo …, composto de edifício de r/c com a área coberta de 89,24 m2 e logradouro de 432,75 m2, e ainda por um edifício de r/c para oficina com a área coberta de 130,20 m2, sendo que a aquisição do mesmo e não apenas do terreno, encontra-se registada a favor do Apelante, por doação, mediante a Ap. 9 de 1976/07/19.

Portanto, atenta a data da descrição e inscrição do prédio urbano a favor do executado, nos termos acima indicados, ao invés do afirmado pelo ora Apelante e como sublinhado na decisão recorrida, sempre a penhora do prédio urbano acima identificado e descrito teria de ser considerada admissível à luz do preceituado no artigo 834.º, n.º 2, do CPC, na medida em que não foram identificados e localizados outros bens cuja penhora permitisse a satisfação integral do crédito da exequente, no prazo de seis meses.

Acresce que, igualmente ao invés do que afirma num passo das suas conclusões, mas acaba por aceitar noutro, não existiu qualquer destaque, o prédio penhorado é único.

Na realidade, isso mesmo assume o executado quando refere que «veio esgrimir a hipótese de um destaque de uma moradia, onde até já tinha sido a casa de morada de família e posteriormente usada por um filho com 50 m2 de logradouro», afigurando-se-lhe «que esta desanexação permitirá satisfazer as expectativas e os interesses legítimos de ambos os contendores, mas a ela crê-se que injustificadamente se tem oposto obstina, teimosa e tenazmente a recorrida, com a clara intenção de colocar o recorrente sem aquela parcela de terreno, onde tem uma oficina que constitui o complemento do rendimento da sua reforma».

Portanto, é também uma evidência que não existe qualquer parte destacada do prédio urbano penhorado, e devidamente registada.

Assim sendo, a parte do imóvel indicada pelo executado não tem autonomia registral e, como tal, a penhora, igualmente sujeita a registo, em face do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea n), do CRP, não poderia incidir sobre uma parte do prédio urbano descrito, mas apenas sobre o mesmo na sua integralidade [Cfr. neste sentido, a respeito de arresto em prédio misto, o Acórdão deste Tribunal da Relação proferido em 25.01.2018, no processo n.º 54/17.0T8FTR-A.E1, relatado pelo ora 2.º Adjunto, e disponível em www.dgsi.pt.], como incidiu.

Tanto assim é que o Apelante vem invocar «para que não seja forçoso que a conclusão dos autos acarrete uma situação insustentável ou penosa para uma ou mesmo ambas as partes … Verbi gratia v. afloramentos no artigo 2º (possibilidade de execução e procedimentos úteis), artigo 3º (audição e contradição), artigo 4º (igualdade de armas), artigo 5º (a liberdade do juiz face a alegações), artigo 6º (diligências e mecanismos de agilização para a composição), artigo 7º com a cooperação, esclarecimentos e remoção de obstáculos e por aí fora» (sic), entendendo que «o tribunal deve promover a suspensão do processo por um prazo razoável até se conhecer o desenlace definitivo do expediente alternativo proposto pelo recorrente, intimando a recorrida a assinar na Conservatória o registo pretendido, sob pena da cominação das sanções previstas para a falta de colaboração das partes e inclusive e até por razões de economia processual, suprindo oficiosamente a falta de consentimento dela».

Que dizer?

Em primeiro lugar lembrar que o processo civil tem regras que não podem ser postergadas pelo tribunal e o processo executivo visa o cumprimento coercivo de uma obrigação que, obviamente, não foi voluntariamente cumprida.

Como é sabido, a acção executiva tem na sua base a existência de um título, pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos, não podendo as partes constituir títulos executivos para além dos legalmente previstos (artigos 10.º, n.ºs 5 e 6, 53.º a 55.º e 726.º, n.º 3, a contrario, todos do CPC).

O título executivo é, portanto, “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla executio sine titulo”[...]. Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo[...].

Na verdade, os “títulos executivos são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador”, sendo “constitutivo da relação obrigacional quando a obrigação tem no acto documentado a sua fonte” e “certificativo da obrigação quando, procedendo a constituição da dívida de um outro acto, o título apenas confirma a existência dela”. Concluindo, “o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não”[Cfr. ANTUNES VARELA et Alii, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora 1985, págs. 78 e 79].

Ou, por outras palavras, o título executivo é “o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele”[Cfr. Ac. STJ de 19-02-2009, proferido no processo n.º 07B4427, e disponível em www.dgsi.pt].

Ora, tendo a acção executiva sido proposta volvidos os seis meses assinados para o pagamento das tornas devidas à Recorrida, em 2011, não tendo o executado logrado obter a anuência da exequente para o pretendido destaque (que o oponente diz, sem comprovar, ser bastante para satisfazer a quantia exequenda, o que a oponida nega…), incumbia ao ora Apelante e não ao tribunal lançar mão da acção adequada a fazer valer o seu direito, conforme expressamente afirmado nos artigos 2.º, n.º 2, e 3.º, n.º 1, do CPC, que estabelecem a garantia de acesso aos tribunais e a necessidade do pedido. Porém, para esse pedido ser abstractamente atendido teria o executado que recorrer ao processo especial respectivo, não sendo a execução o meio próprio para suprir o consentimento da exequente para o destaque.

Mas, ainda que por absurdo se cogitasse tal possibilidade e o executado tivesse instaurado essa acção - conforme ainda recentemente se decidiu neste Tribunal da Relação [Cfr. Ac. de 11.07.2019, proferido no processo n.º 293/09.8TBORQ-B.E1, disponível em www.dgsi.pt], para cuja fundamentação remetemos -, a acção executiva não poderia ser suspensa sequer com fundamento na pendência de causa prejudicial, pela simples mas evidente razão de que a mesma tem por base um título executivo, com as consequências acima referidas. Consequentemente, não poderia a acção executiva ser suspensa para aguardar a decisão de tal hipotético processo.

Em conformidade, e sem necessidade de ulteriores considerações, mostrando-se improcedentes ou deslocadas todas as conclusões, a apelação deve improceder com a consequente confirmação da decisão recorrida.

Porque vencido, o Apelante suportaria as custas devidas pelo recurso, na vertente de custas de parte, atento o princípio da causalidade expresso no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, e o disposto no artigo 529.º, n.ºs 1 e 4, ambos do CPC."

[MTS]