04/03/2020

Jurisprudência 2019 (188)

 
Processo executivo; 
direito de retenção; embargos de terceiro
 
 
1. O sumário de RL 10/10/2019 (26411/11.8T2SNT-D.L1-6) é o seguinte:
 
I) A correcta compreensão do princípio do contraditório não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos, antes implica ainda que possam pronunciar-se sobre quanto a questões determinantes para a decisão a proferir que, constituindo novidade no processo, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.

II) Pretende-se evitar que as partes se defrontem, sem pronúncia prévia, com uma interpretação judicial que não poderiam antecipar ou com uma tramitação processual que escape ao modelo formal aplicável, visando que a decisão seja o culminar de um processo argumentativo justo e equitativo que permita que cada um dos justiciáveis faça ouvir a sua voz, trazendo ao decisor a sua perspectiva e, nessa medida, influenciando a decisão.

III) A decisão de indeferimento liminar de embargos de terceiro por intempestividade não pode ser considerada decisão-surpresa, tratando-se de uma decisão típica, que aborda um dos fundamentos previstos pela lei como seu objecto.

IV) O prazo estabelecido para a dedução de embargos de terceiro é um prazo judicial para dedução de um incidente em processo em curso, com uma janela temporal delimitada claramente na lei.

V) Com a «nova» (reforma de 1995/1996) reconfiguração dos embargos como incidente, a lei impõe ao juiz a verificação oficiosa na fase liminar da tempestividade dos embargos.

VI) À apreciação liminar da petição de embargos é aplicável o disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que estatui o indeferimento liminar por manifesta improcedência.

VII) O direito de retenção do promitente-comprador que resolveu o contrato promessa não é incompatível com a penhora ou com a venda em execução para pagamento de quantia certa deduzida contra o promitente-vendedor, sendo antes a execução pressuposto do seu exercício.

VIII) Actuando a Relação em substituição, o contraditório a que alude o artigo 665.º, n.º 3, do CPC, apenas se aplica a questões novas ou a apreciação de mérito, como resulta da sua origem no antigo artigo 753.º, n.º 2, do CPC de 1961 na redacção anterior à reforma de 2008.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.4. Conforme se referiu anteriormente, os Embargantes invocam o direito de retenção, decorrente de indemnização devida por incumprimento definitivo de contrato-promessa com tradição do imóvel.
 
O direito de retenção é um direito real de garantia e não de gozo – artigo 754.º, do Código Civil -, visando colocar o credor que o detém em posição reforçada para obtenção do pagamento do seu crédito.

Enquanto direito real de garantia é insusceptível de ser ofendido pelo acto de penhora ou de venda em execução, constituindo estes actos, aliás, pressuposto do seu exercício [Cf. quanto a tal numerosa e concordante jurisprudência de que se citam os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2001, proferido no processo 01A1843 (Silva Paixão), de 23 de Janeiro de 2003, proferido no processo 02B4386 (Duarte Soares), de 18 de Setembro de 2007, proferido no processo 07A2627 (Mário Cruz), de 4 de Dezembro de 2007, proferido no processo 07A4070 (Fonseca Ramos), e de 29 de Abril de 2008, proferido no processo 08A745 (Paulo Sá)]. Assim, o direito de retenção visa a satisfação do crédito com a precedência que resultar do concurso de credores, implicando o prosseguimento da execução para pagamento de quantia certa instaurada contra os promitentes vendedores (já não assim no que respeita à execução para entrega de coisa certa [Cf. Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro, Almedina, 2001, p. 97-98]).

Contrariamente ao que o seu sumário inculca [O qual tem o seguinte teor: Os embargos de terceiro deduzidos pelo promitente-comprador que obteve a tradição da coisa objecto do contrato, fundados na alegação da posse da coisa e do direito de retenção para garantia da indemnização pelo incumprimento do promitente-vendedor, não podem ser indeferidos liminarmente com o fundamento de serem manifestamente improcedentes por o promitente-comprador ser sempre, independentemente dos factos alegados, um mero detentor da coisa], não contraria esta conclusão o acórdão da Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2019, proferido no processo 18281/16.6T8PRT-B.P1 (Aristides Rodrigues de Almeida) que se refere apenas à posse, e não ao direito de retenção.

Com isso parecem concordar os Embargantes na sua petição, nomeadamente nos passos dela que acima se transcreveram, ao afirmarem que não consideram ofensivas do seu alegado direito nem a penhora, nem a venda. No entanto, não retiram de tal as consequências que cremos que se impõem.
 
A entrega do bem objecto do direito de retenção é susceptível de o afectar. No entanto, contrariamente ao que defendem os Embargantes, cremos ser pacífico que a extinção do direito pela entrega da coisa, a que se refere o artigo 761.º, do Código Civil, apenas ocorre em caso de entrega voluntária por parte do titular do direito de retenção, não pela entrega decorrente de venda judicial, a qual se realiza de modo a efectivar o direito de retenção e a possibilitar o seu exercício [Cf. entre outros o acórdão desta Relação de 17 de Março de 2016, proferido no processo 1690/10.1TBSCR-D.L1-2 (Jorge Leal), e o acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2001 [...]].

A execução não causa ao promitente-comprador qualquer prejuízo – apenas o força ou incita a reclamar o seu crédito nesse mesmo processo. A garantia, numa palavra, é compatível com a execução.

Quanto ao problema de saber se o promitente-comprador pode usar dos embargos com o objectivo, não de excluir a coisa do processo executivo, mas de se manter no respectivo gozo até ao termo da execução, a resposta também não deve ser diferente daquela que se deu para os terceiros que, em geral, possuam nos termos de um direito de garantia.

Este direito apenas permite a realização, à custa da coisa, de determinado valor, não existindo nenhum direito real de gozo susceptível de tutela.

Ora, uma vez que a execução para pagamento assegura ao promitente-comprador a satisfação do seu direito de crédito, mesmo no caso de ter perdido, no âmbito do processo executivo, a posse que exercia sobre a coisa, não tem tal promitente de ser mantido no gozo dessa coisa com base no alegado direito de retenção [Assim, Miguel Mesquita, Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, Almedina 1998, p. 162-164].

Aos Embargantes, cabe por isso deduzir os meios processuais adequados à declaração do direito de crédito e da garantia que a retenção constitui e de reconhecimento e graduação do mesmo em sede de execução, para pagamento pelo produto da venda do bem.

De entre os pedidos deduzidos consta o de reconhecimento desses direitos e de graduação do crédito. No entanto, o incidente de oposição à execução por embargos de terceiro visa aquilo que a sua denominação designa: obstar a que a execução prossiga ou a que determinado acto nela realizado ou a realizar se mantenha ou realize. Tal incidente não é idóneo àquela declaração de direitos ou graduação de créditos, nem a petição em que é deduzido é aproveitável para tal efeito.

Assim, não pode embargar de terceiro, nem mesmo para se manter na posse da coisa até ao termo da acção executiva, o titular do direito real de garantia, por exemplo o titular do direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na acção executiva por via do concurso de credores [Cf. Salvador da Costa in Os incidentes da instância, Almedina, 1999, p. 183] ou seja, por via do reconhecimento e graduação do crédito que permitem a sua satisfação com a precedência que o direito de retenção impõe.

Se estiver em causa um direito real de aquisição ou um direito real de garantia, a incompatibilidade [com a penhora e com a venda] não se verifica, visto que o respectivo titular encontrará satisfação no esquema da acção executiva [Cf. José Lebre de Freitas, A acção Executiva – depois da reforma da reforma, Coimbra Editora, 5.ª edição, 2011, p. 286].

Aos Embargantes cabe recorrer ao incidente de reclamação de créditos previsto no artigo 788.º, do Código de Processo Civil, nomeadamente do seu n.º 3, considerando as circunstâncias invocadas, ou, não se encontrando munidos de título exequível, usar do disposto no artigo 792.º, do mesmo Código [ Assim, João Calvão da Silva, in Sinal e Contrato-Promessa, Coimbra, 1988, p. 112].

Em suma, à dedução de embargos de terceiro pelo titular de um direito real de garantia só poderá corresponder o indeferimento liminar da respectiva petição (…) [ Cf. Augusta Ferreira Palma, op. cit. p. 97].

Em conclusão, a petição de embargos está votada ao insucesso, devendo ser liminarmente indeferida com esse fundamento, o que se decide."
 
[MTS]