16/03/2020

Jurisprudência 2019 (196)


Deveres do tribunal
omissão; nulidade da sentença*



1. O sumário de 10/9/2019 (400/19.2T8AMT-D.P1) é o seguinte:

I - Estando a nulidade processual invocada coberta pela decisão judicial que a sancionou ou confirmou, implícita ou explicitamente, é atempada a arguição da mesma em sede do recurso interposto dessa mesma decisão.

II - Conferido ao juiz no processo de insolvência o poder de fundar a sua decisão não só nos factos alegados, como também naqueles que da discussão da causa vier a apurar, entende-se estar-lhe conferida a faculdade de igualmente os investigar e assim recolher os elementos de prova que tiver por conveniente e oportunos com vista ao apuramento da verdade material.

III - O poder-dever investigatório do juiz está sempre balizado pela natureza urgente do processo e assim pelo respeito pelos restritos prazos legalmente estabelecidos.
Este poder não visa a desresponsabilização dos intervenientes processuais no que respeita à alegação factual e proposição de prova necessária à demonstração daquela: esteja em causa a procedência da pretensão deduzida pelo requerente ou a alegação e demonstração pelo opoente dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão deduzida.

IV - Balizado por estes princípios e limites e tendo como critério orientador, no respeito daqueles, a prática dos atos necessários e indispensáveis à obtenção da justiça material, merecerá censura a atuação do tribunal a quo quando a omissão cometida tiver influência na decisão da causa (vide 195º nº 1 do CPC).

V - A natureza urgente do processo de insolvência consagrada no artigo 9º do CIRE, da qual é consequência a determinação da marcação da audiência para um dos cinco dias subsequentes à dedução da oposição do devedor, não é compatível com a realização de prova pericial que vise demonstrar o que aliás por via documental e testemunhal poderá ser igualmente demonstrado.

VI - A tramitação processual do processo particular de insolvência a que alude o artigo 295º do CIRE pressupõe a sua compatibilização com o Regulamento UE nº 2015/848 do PEC.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Alegou nesta sede o recorrente que o tribunal a quo deveria oficiosamente ter ordenado ao recorrente a junção das certidões tidas por necessárias e a realização da avaliação dos bens imóveis para que a factualidade alegada e constante dos pontos b), c) e e) pudesse ser considerada como provada. [vide conclusões D a G].

Mais alegou que a omissão de tal diligência é violadora do disposto nos artigos 411º, 436º e 467º do CPC e 11º do CIRE.

Embora o não tenha enquadrado como tal, a alegação por parte do recorrente de que o tribunal violou o dever de praticar oficiosamente ato que lhe estava imposto pelo princípio do inquisitório em ordem ao apuramento dos factos tidos por relevantes para o mérito da questão em apreciação, configura a arguição de uma nulidade processual nos termos e com as consequências legais previstas no artigo 201º do CPC [ex vi artigo 17º do CIRE]. E como tal será apreciada.

Nulidade que tal como o determinam os artigos 195º e 196º do CPC, por se tratar de nulidade secundária, apenas poderia – por regra - ser conhecida sob reclamação do interessado nos termos do artigo 196º nº 1 do CPC.

Diz-se por regra, porquanto e conforme tem vindo a ser entendido, tanto na doutrina como na jurisprudência, estando a nulidade processual invocada coberta pela decisão judicial que a sancionou ou confirmou, implícita ou explicitamente, é atempada a arguição da mesma em sede do recurso interposto des
sa mesma decisão [nota 2: Neste sentido vide Ac. TRP de 24/09/2015, processo nº 128/14.0T8PVZ.P1 e doutrina no mesmo citado; ainda Ac. TRP de 05/11/2018, processo nº 1425/17.8T8GDM.P1, ambos in www.dgsi.pt. Neste último acórdão e convocando a doutrina se podendo ler: “Idêntica solução defendia Manuel de Andrade ao salientar que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer ato que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se, em suma, da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.»”

É este também o ensino de Anselmo de Castro e de Antunes Varela. [...]

Afirma o primeiro que “ se entretanto, o ato afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o juiz) e passará a ser o recurso da decisão “, enquanto o segundo refere que ” tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o ato viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”].

É o caso. O recorrente convoca a nulidade fundada em violação do princípio do inquisitório perante a decisão de que recorre, da qual resulta ter o tribunal a quo entendido não ter sido feita prova cabal de determinada factualidade relevante para a apreciação da oposição deduzida pelo recorrente e sobre a qual não foi exercido – conforme alegado – o poder dever de ordenar as diligências tidas por necessárias para a averiguação cabal de tais factos, em cumprimento do princípio do inquisitório."

*3. [Comentário] O acórdão é uma oportunidade para desfazer uma confusão.

Não pode deixar de se considerar que constitui um avanço entender que a violação do dever de esclarecimento ou de auxílio pelo juiz não é uma nulidade processual como as que são subsumíveis ao estabelecido no art. 195.º, n.º 1, CPC, antes origina um recurso da decisão que foi proferida sem que o juiz tivesse previamente -- como devia -- feito uso desses seus poderes-deveres.

O que é discutível é que se fundamente essa orientação na doutrina que seguia o velho brocardo "dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se". Esta orientação está certíssima, mas não foi -- nem podia ter sido -- construída a pensar na omissão pelo juiz dos deveres de esclarecimento ou de auxílio. Importa lembrar que estes deveres são uma aquisição muito mais recente do processo civil português.

Aquilo em que, na altura, se estava a pensar é bem ilustrado por Alberto dos Reis: "Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo" (Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 507 s.).

Ora, é fácil concluir que esta hipótese nada tem em comum com aquela em que se verifica a omissão do cumprimento do dever de esclarecimento ou de auxílio, pela simples razão de que essa omissão não decorre de nenhuma decisão do juiz. Efectivamente, não existe nenhuma decisão que se pronuncia sobre se, no caso concreto, o juiz deve ou não deve cumprir algum desses deveres. O que há é o proferimento de uma decisão sem que, antes dela, se tenha cumprido um desses deveres.

Sendo assim, a situação analisada no acórdão -- que respeita ao proferimento de uma decisão sem que o tribunal tivesse convidado o requerente do PEAP a sanar umas omissões -- nada tem a ver com a "velha" orientação que entende que, se uma decisão "autorizou ou ordenou" (Alberto dos Reis, Comentário II, 508) uma nulidade processual, o meio de reacção adequado é o recurso dessa decisão.

Em suma: a jurisprudência está no bom caminho, mas ainda não atingiu a meta. A solução correcta do caso é, como repetidamente se tem defendido neste Blog, entender que a decisão que é proferida sem que anteriormente o juiz tenha cumprido os seus deveres de esclarecimento ou de auxílio é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC), dado que essa decisão conhece de matéria de que, sem se ter previamente dado cumprimento ao dever de esclarecimento ou de auxílio, não podia ter conhecido.

MTS