18/03/2020

Jurisprudência 2019 (198)


Audiência final;
justo impedimento

1. O sumário de RP 24/9/2019 (2083/18.8T8MAI.P1) é o seguinte:

I - Sempre que a audiência final tenha sido marcada por acordo prévio (cf. art.º 151.º, n.º 1, do CP Civil) apenas o impedimento do tribunal ou o justo impedimento podem legitimar o seu adiamento.

II - O justo impedimento capaz de justificar o adiamento da audiência final tem que ser feito em momento anterior ou, quando muito, coincidente com o do início aprazado para esta, através de comunicação ao tribunal com alegação de motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado e apresentação da respectiva prova.

III – Na eventualidade de o justo impedimento não poder ser invocado em momento anterior ou contemporâneo com o da audiência final, já se tratará diversamente da invocação de uma nulidade processual. Nesta situação, a parte interessada terá que provar, para além da ocorrência do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado em audiência, igualmente a impossibilidade de o ter comunicado antes da audiência, apresentando a respectiva prova.

IV - O Recorrente não pode suscitar em recurso a apreciação de nulidades alegadamente decorrentes da produção da prova em audiência final se o respectivo direito se encontrar precludido, por não ter sido tempestivamente suscitado no processo declarativo.
 


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O Recorrente pede a revogação da sentença por nulidade do indeferimento do justo impedimento.

Sustenta, para tanto, que, ainda antes da sessão de julgamento de 16/01/19 ter começado, o Ilustre Mandatário do Recorrente, através de um faz (sic) enviado pelo seu escritório, informou o Tribunal que se encontrava impossibilitado de comparecer, por ter dado entrada nas Urgências do Hospital E2… e estar ainda em convalescença.

Afirma que, mesmo que assim se não entendesse, por requerimento de 22/01/19, para dissipar qualquer dúvida, insistiu para que o Tribunal a quo marcasse de novo Audiência de Discussão e Julgamento, alegando que, no seguimento do episódio de urgência do “Centro Hospitalar E1…”, em Penafiel, do dia 14 de Janeiro, a incapacidade do Mandatário se prolongou ao longo de toda a semana, tendo ficado a repousar e a fazer vários exames e análises, por indicação médica.

Declara que, por absoluta incapacidade de se deslocar ao Tribunal para a Audiência de Discussão e Julgamento marcada para dia 16 de Janeiro, pediu à Secretária que informasse disso o Juízo Local Cível através de fax e pediu ainda a um Colega que, por telefone, avisasse da sua impossibilidade para comparecer.

Entende estar demonstrado que o Mandatário não tinha qualquer possibilidade, nem condições de comparecer à Audiência de Julgamento. [...]
 
Supletivamente sustenta ainda que o tribunal deveria pelo menos ter ouvido as testemunhas por si apresentadas, antes de julgar o incidente.

Vejamos:

O actual art.º 603.º do CP Civil consagra a regra da inadiabilidade da audiência final, tendo eliminado a quase totalidade dos fundamentos de adiamento consagrados na redacção inicial do Código de Processo civil inicial.

O art.º 151.º do CP Civil, numa concreta emanação do princípio da cooperação entre magistrados e advogados, veio estabelecer, como regra, que a marcação das diligências judiciais seja levada a cabo mediante acordo prévio com os mandatários das partes.

Assim, sempre que a audiência final tenha sido marcada por acordo prévio (cf. art.º 151.º, n.º 1, do CP Civil [...]) apenas o impedimento do tribunal ou o justo impedimento podem legitimar o seu adiamento.

No caso em apreciação, não se colocando qualquer situação de impedimento do tribunal, importa delimitar o conceito de “motivo que constitua justo impedimento”.

Refere-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 20/03/15: “O instituto do justo impedimento tem o seu fundamento num imperativo de natureza ético-jurídica, cuja intelecção é de fácil apreensão e que se prende com o facto de não poder exigir-se a ninguém que pratique actos, em processos judiciais ou administrativos, que esteja absolutamente impossibilitado de, em determinado momento, levar a cabo, por razões que não lhe sejam imputáveis. O contrário consubstanciaria uma restrição inaceitável ao núcleo essencial do direito fundamental de acesso ao Direito previsto no art.º 20.º da CRP.”

Este instituto foi tipicamente configurado para a prática de actos processuais peremptórios e, ao longo das várias alterações ao Código de Processo Civil, foi vendo o respectivo campo de aplicação ser paulatinamente alargado.

Como se lê no Preâmbulo do D.L. n.º 329-A/95, 12/12, as alterações introduzidas foram-no “em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia da culpa, que se afastou da excessiva regidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição da lei em vigor, inquestionavelmente revelam.”

Explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [In Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Almedina, pág. 274] que “À luz do novo conceito, basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao seu mandatário, por ter tido culpa na sua produção. (…) Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário.”

Actualmente, a disposição legal do n.º 1 do art.º 140.º considera justo impedimento “o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto.”

Por aplicação das regras gerais do ónus da prova, cabe à parte interessada alegar e provar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo da prática atempada do acto processual.

O justo impedimento, tal como especificamente determinado pelo n.º 1 do art.º 603.º do CP Civil, aplica-se, também, no âmbito da audiência final, como forma de legitimar um direito subjectivo de adiamento da mesma.

O D.L. n.º 131/2009, de 01/06, como lei especial, consagrou o direito dos advogados ao adiamento de actos processuais em que devam intervir em caso de maternidade, paternidade e luto.

Fora destes casos especiais, há que compatibilizar as regras dos art.º 140.º e do art.º 603.º, ambas do CP Civil.

Assim, deve entender-se que o justo impedimento capaz de justificar o adiamento da audiência final tem que ser feito em momento anterior ou, quando muito, coincidente com o do início aprazado para esta, através de comunicação ao tribunal com alegação do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado e apresentação da respectiva prova.

Na eventualidade de o justo impedimento não poder ser invocado em momento anterior ou contemporâneo com o da audiência final, já se tratará diversamente da invocação de uma nulidade processual.

Seguindo a explicação de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [In Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2014, Almedina, pág. 571]: “Não tendo o justo impedimento sido invocado antes do momento em que a audiência teve lugar, deverá a parte reclamar da nulidade processual em que se traduz a prática de um acto que a lei não admite (art.º 195.º, n.º 1) – realização da audiência ocorrendo justo impedimento. O impedimento é aqui invocado como pressuposto constitutivo do direito de obter a declaração de nulidade do acto – relativa: art.º 197.º, n.º 1 – e não do direito de adiamento da audiência ou do direito de praticar um acto para além do prazo fixado.”

Nesta situação, a parte interessada terá que provar, para além da ocorrência do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado em audiência, igualmente a impossibilidade de o ter comunicado antes da audiência, apresentando a respectiva prova.

Aplicando estas disposições legais e considerações jurídicas ao caso vertente [...], verifica-se que, na data aprazada para a audiência final, o Ilustre mandatário do Réu faltou, tendo-se iniciado o julgamento e designado dia para a sua continuação.

No novo dia aprazado para a sessão de continuação da audiência final, dia 30/11/18, o Ilustre mandatário do Réu remeteu para os autos Fax com o seguinte teor resumido: “D…, mandatário do Réu no presente processo, vem comunicar a sua impossibilidade por motivo de doença, de estar presente na audiência de julgamento que está marcada para hoje, dia 30 de Novembro de 2018, por ainda não reunir as condições mínimas de saúde para o exercício da sua actividade de advocacia, conforme atestado médico do Médico Psiquiatra (…). Mais se informa que a data previsível do regresso ao trabalho do aqui Mandatário será a partir de 10 de Dezembro de 2018. (…). Requer assim o adiamento e a marcação de nova data para a audiência de julgamento, em conformidade com o referido acima.”

Esta sessão de continuação da audiência final foi adiada para o dia 16/01/19, com o fundamento de que não havia sido marcada com o prévio acordo dos Ilustres mandatários e foi proferido despacho que, entre o mais, refere “Advirta o ilustre mandatário do réu de que se não puder estar presente na nova data terá que substabelecer a colega seu, porque o julgamento far-se-á mesmo sem a sua presença, pois não pode o Tribunal aguardar indefinidamente a sua recuperação numa situação que (como se constata no processo 940/18.0T8MAI) onde tem procuração passada) se verifica pelo mesmo desde Setembro.”

Apesar do teor deste despacho, o Ilustre mandatário do Réu faltou novamente na continuação da audiência final do dia 16/01/19, tendo remetido fax com o seguinte teor: “D…, Advogado, mandatário do Réu, vem informar o Tribunal de que por motivos de saúde não pode estar presente hoje na diligência de julgamento marcado. Junta comprovativo de ter dado nas urgências do Hospital E….” Juntou documento emitido pelo “Centro Hospitalar E1…, EPE” comprovativo de que, no dia 14/01/19, tal instituição recebeu do Ilustre mandatário a quantia de € 16,00 correspondente ao pagamento de taxa moderadora de episódio de urgência.

Já após a prolação da sentença, o Ilustre mandatário do Réu veio apresentar requerimento nos autos, com data de 22/01/19, invocando justo impedimento, alegando que, no seguimento do episódio de urgência no “Centro Hospitalar E1…”, em Penafiel, no dia 14 de Janeiro, a sua incapacidade se prolongou ao longo de toda a semana e afirmando que, por indicação do seu médico pessoal, teve que repousar durante oito dias e ainda fazer vários exames e análises.

Juntou um Atestado Médico, datado de 14/01/19, com indicação de que “se encontra doente pelo que deverá permanecer dispensado do exercício da sua profissão por um período de 8 dias” e uma informação clínica do episódio de urgência do dia 14/01/19, com referência a “ansiedade e nervosismo; tonturas; frequentes ataques de pânico”.

Verifica-se, assim, que, pelo menos desde 30/11/18, o Ilustre mandatário do Réu tinha conhecimento de que padecia de uma doença de que o impossibilitaria previsivelmente de exercer a sua profissão durante vários dias, e por período temporal indeterminado.

Ora, um dos deveres principais dos Advogados, previsto no art.º 108.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, é o dever de diligência, nos termos do qual “O advogado deve, em qualquer circunstância, actuar com diligência e lealdade na condução do processo.”

Uma vez que uma doença prolongada e/ou de duração indeterminada de um dos mandatários das partes não é causa legal de adiamento da audiência final, o Ilustre mandatário deveria, em obediência a este princípio deontológico, ter reorganizado a sua actividade de forma corresponder aos seus compromissos processuais, designadamente substabelecendo noutro colega [...].

Não o tendo feito, não poderia vir invocar essa doença prolongada como fundamento de adiamento da audiência final, por não se tratar de uma situação fortuita ou imprevista. Ou seja, por não ser enquadrável na noção de justo impedimento, para os fins previstos nos art.º 140.º e 603.º do CP Civil.

Assim se decidiu designadamente no Acórdão desta Relação de 15/10/12, tendo como Relator António Ramos [ Proferido no Processo n.º 1804/11.4TTPRT.P1 [...]]: “A doença do advogado da parte só constitui justo impedimento se for súbita e tão grave que o impossibilite, em absoluto, de praticar o acto, avisar o constituinte ou substabelecer o mandato. O justo impedimento do mandatário tem de ser imprevisível, pois que se era de previsão normal e não tomou as necessárias cautelas incorreu em negligência. Não constitui justo impedimento um caso em que o mandatário, aquando do contacto da Ré para organizar a defesa, cujo prazo já decorria, já se encontrava na invocada situação de doença impeditiva de exercer o mandato e era previsível a manutenção daquela situação para além do prazo legalmente concedido para apresentação daquela defesa.”

Ainda que – hipoteticamente – se aceitasse que o Ilustre mandatário do Réu tinha melhorado e, entretanto, tido uma recaída [...], mesmo assim não se poderiam considerar as suas comunicações válidas para efeitos de invocação de incidente de justo impedimento.

O fax enviado para o Tribunal no dia 16 de Janeiro de 2019 limita-se a afirmar que o Ilustre mandatário não pode estar presente na audiência “por motivos de saúde” e o documento anexo somente comprova que dois dias antes este tinha estado nas Urgências do Hospital.

Ou seja, não está sequer alegada a ocorrência de uma doença imprevista e impeditiva da presença na diligência aprazada.

O requerimento enviado para o Tribunal no dia 22 de Janeiro de 2019 poderia formalmente legitimar a invocação de uma nulidade processual consistente na realização do julgamento sem a presença do Ilustre mandatário do Réu, em situação de justo impedimento.

No entanto, também neste não se alega, em termos consistentes e cabais, uma situação de doença imprevista e impossibilitante de comparecer em Tribunal, já que apenas se refere que o Ilustre mandatário esteve durante toda a semana a repousar e a fazer vários exames.

Tal comunicação não comprova ainda a impossibilidade de dedução do incidente atempadamente [...].

Além disso, não faz sequer qualquer referência à impossibilidade de o Ilustre mandatário ter substabelecido noutro colega para representar o seu cliente na audiência final.

Neste sentido, cita-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/10, tendo como Relator Bettencourt de Faria[10], versando um caso paralelo ao destes autos: “O atestado de doença que atesta a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem esclarecer a gravidade do mal, ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento, uma vez que não indicia que não pudesse ser encarregada outra pessoa de praticar o acto."

Em face do exposto, conclui-se não se verificar qualquer nulidade da sentença por indeferimento do justo impedimento, não se justificando sequer a inquirição das testemunhas arroladas no último requerimento apresentado nos autos."


[MTS]