23/03/2020

Jurisprudência 2019 (201)

Dupla conforme;
omissão de pronúncia

 
1. O sumário de STJ 17/10/2019 (617/14.6YIPRT.L1.S1) é o seguinte:

I – Sendo inequívoca a existência de dupla conformidade quando o recorrente nenhum benefício alcança com a decisão da Relação por esta se haver limitado a confirmar a decisão da 1ª instância, iria contra o espírito da lei – que é o de restringir o acesso ao STJ quando as instâncias decidiram no mesmo sentido e sem fundamentação essencialmente diferente – e até das regras da lógica que a parte descontente, vendo a sua situação melhorada, pudesse, exatamente por isso, aceder ao terceiro grau de jurisdição.

II – Sustentando o recorrente que a Relação se absteve indevidamente de apreciar os elementos probatórios por ele invocados na apelação como fundamento do erro de julgamento que aí atribuiu à decisão de 1ª instância, está a imputar-lhe a violação de normas processuais relacionadas com a apreciação dessa impugnação, pelo que neste âmbito, não tendo a matéria em causa sido apreciada na 1ª instância, não tem cabimento falar em dupla conformidade.

III – É regra basilar do ónus de impugnação a de que o réu, ao contestar, “deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor”.

IV – Não satisfaz esta exigência o réu quando afirma que desconhece os factos alegados, justificando com o tempo transcorrido a afirmada falta de lembrança do exato teor do(s) orçamento(s) que a autora lhe propôs e ela aceitou.

V – Trata-se de facto que tem de considerar-se como pessoal do réu, não podendo este, em virtude dessa natureza, deixar de conhecê-lo, pelo que tem de ser tido como confessado.

VI – Assim sendo, não se justifica que o Tribunal da Relação reaprecie a prova produzida quanto aos factos em discussão, pois que os mesmos se mostram já plenamente assentes.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O acórdão da Relação, julgando recurso de apelação interposto pela ré, por unanimidade, deu-lhe parcial procedência, com fundamentação em tudo idêntica à que na sentença se usara.

E tendo isso em consideração, a recorrida defende a existência de dupla conforme que, nos termos do nº 3 do art. 671º do CPC [...], impede o acesso ao STJ.

Tendo favorecido a ré recorrente, a decisão emitida, embora não sendo idêntica em termos absolutos à da 1ª instância, deve considerar-se conforme com ela.

Com efeito, sendo inequívoca a existência dessa conformidade quando o recorrente nenhum benefício alcança com a decisão da Relação por esta se haver limitado a confirmar a decisão da 1ª instância, iria contra o espírito da lei – que é o de restringir o acesso ao STJ quando as instâncias decidiram no mesmo sentido e sem fundamentação essencialmente diferente – e até das regras da lógica que a parte descontente, vendo a sua situação melhorada, pudesse, exatamente por isso, aceder ao terceiro grau de jurisdição.

Não se compreenderia, na verdade, que a ré recorrente estivesse impedida de aceder ao terceiro grau de jurisdição no caso de a sua apelação ter sido julgada improcedente, mas visse esse acesso viabilizado na hipótese de a decisão de 2ª instância a beneficiar.

Como refere Abrantes Geraldes [“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, págs. 371 a 374 e respetivas notas.], depois de numa fase inicial se ter exigido, neste STJ [...], para efeitos de admissibilidade da revista excecional, uma confirmação unânime e irrestrita da sentença pelo acórdão da Relação, vem sendo adotado em vários e muito recentes acórdãos deste Tribunal [...], o entendimento proposto por Teixeira de Sousa [Em Cadernos de Direito Privado, nº 21, pág. 24 “Dupla Conforme: critério e âmbito de conformidade”],[...], segundo o qual “sempre que o apelante obtenha uma procedência parcial do recurso na Relação, isto é, sempre que a Relação pronuncie uma decisão que é mais favorável – tanto no aspecto quantitativo, como no aspecto qualitativo – para esse recorrente do que a decisão proferida pela 1ª instância, está-se perante duas decisões «conformes» que impedem que essa parte possa interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça”.

E a atribuição de nulidades ao acórdão também não é, por si só, suscetível de excluir a existência de dupla conformidade. [Cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 369]

Ainda assim, no presente caso, tem de reconhecer-se - na linha do entendimento adotado pelo Exmo. Desembargador Relator no seu despacho de admissibilidade da revista – que não existe dupla conformidade mas tão só no tocante à decisão da Relação que, conhecendo da impugnação deduzida contra a decisão de 1ª instância, manteve, sem apreciar a prova produzida, o julgamento aí emitido no sentido de considerar provada a aceitação pela ré dos orçamentos invocados pela autora – factos nºs 2 e 3 (e também nº 4, enquanto concretização dos factos nºs 2 e 3) [...] -, por considerar que os respetivos factos se mostram assentes por confissão e acordo das partes.

E isto porque a recorrente, ao sustentar que o tribunal recorrido se absteve indevidamente de apreciar os elementos probatórios por ela invocados na apelação como fundamento do erro de julgamento que aí atribuiu à decisão de 1ª instância, está a imputar-lhe – ao menos implicitamente - a violação de normas processuais relacionadas com a apreciação dessa impugnação.

Nesta parte está em causa a correção de decisão relativamente à qual não tem cabimento falar em dupla conformidade, pela simples razão de que foi proferida apenas pela Relação, não tendo a matéria que dela foi objeto sido apreciada pelo tribunal recorrido.

Versando esta questão, escreve Abrantes Geraldes [Cfr. obra citada, pág. 366]:

“Todavia, tal conclusão [De verificação de dupla conforme] não parece a mais ajustada, já que, relativamente à questão adjetiva relacionada com o ónus de alegação ou com o dever de reapreciação dos meios de prova, a interposição do recurso de revista constitui a única possibilidade de fazer reverter a situação a favor do recorrente nos caos em que o acórdão da Relação esteja eivado de erro de aplicação de lei processual a respeito da decisão de facto.

Nestas situações e noutras similares em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual, ainda que seja confirmada a sentença recorrida no segmento referente à apreciação de mérito da apelação, não se verifica, relativamente àqueles aspetos, uma efetiva situação de dupla conforme, já que as questões emergiram apenas do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação, sem que tenham sido objeto de apreciação na 1ª instância. (…)

Por isso, em tal eventualidade, a impugnação do acórdão recorrido, na parte respeitante à decisão da matéria de facto, deve fazer-se através do recurso de revista nos termos normais, sem embargo da interposição de revista excecional no que concerne à matéria de direito, acautelando uma eventual improcedência da primeira.”

Tem sido esta a posição adotada na matéria por este Supremo, como flui dos vários arestos mencionados na obra que vimos citando. [Págs. 366-367, nota de rodapé 529]

Conclui-se, assim, pela admissibilidade da revista mas apenas quanto à dita problemática; tudo o mais, estando abrangido pela dupla conforme, é insuscetível de revista normal nos termos do citado nº 3 do art. 671º e, não tendo sido interposta revista excecional que haja sido admitida, tal matéria não será objeto do conhecimento e apreciação deste tribunal, devendo o recurso ser julgado findo nessa parte, por inadmissibilidade, o que adiante se fará."


[MTS]