02/04/2020

Jurisprudência 2019 (209)


Matéria de facto; matéria de direito;
alegação de facto; prova documental


1. O sumário de STJ 7/11/2019 (6414/16.7T8VIS.C1.S1) é o seguinte:

I. A remissão para o teor de documentos juntos com a petição inicial pode servir para complementar a alegação de factos que sustentam o pedido.

II. Assim ocorre numa ação baseada num alegado contrato de descoberto em conta ou de descoberto bancário de que resultou um crédito final a favor da instituição financeira, não sendo obrigatório que na petição inicial se reproduzam todas as operações que mediaram entre a outorga de tal contrato e o seu encerramento e que a documentação junta revela.

III. Impugnando os RR. a matéria de facto que a 1ª instância considerou provada e não provada em termos que podem projetar-se na integração jurídica, a Relação não está dispensada de proceder à sua apreciação a pretexto de que não foram alegados na petição inicial todos os factos correspondentes à operação de descoberto bancário.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"III – Decidindo:

1. No precedente recurso de apelação os RR. focaram-se essencialmente na impugnação da decisão da matéria de facto, pretendendo que a Relação alterasse diversos pontos que a 1ª instância considerara provados e não provados.

A Relação, depois de algumas observações genéricas acerca de tal pretensão, passou de imediato para a apreciação da matéria de direito por julgar que a dita impugnação da decisão de facto é inútil para o desfecho da causa e do recurso (fls. 739, vº). [...]

3. O que podemos desde já adiantar é que, sem embargo das modificações que porventura venham a ser introduzidas na decisão da matéria de facto, fruto da apreciação da impugnação que contra a mesma foi dirigida pelos RR., no exercício de uma tarefa que é da exclusiva competência da Relação, não se pode confirmar que tudo quanto dela consta neste momento constitua pura matéria de direito, como acabou por asseverar a Relação.

Tal afirmação tem subjacente o uso de um critério formal que já nem sequer encontra a sustentação que dantes poderia ter a cobertura do nº 4 do art. 646º do CPC de 1961. A solução encontrada pela Relação contraria ainda as correntes jurisprudenciais e doutrinais que renegam o estabelecimento de uma linha de demarcação rígida entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito e que atribuem relevo aos aspetos de ordem material em detrimento da supremacia de aspetos formais que emergem da hipervalorização do direito adjetivo em face do direito material.

Não vamos de novo reavivar uma jurisprudência de pendor formalista que com muita frequência deixava em segundo plano princípios e razões de justiça material, quando, como sucede em casos como o presente, a matéria que a 1ª instância considerou provada revela, sem dúvida alguma, uma certa realidade que é compreensível e que importa integrar juridicamente, embora tal apenas deva ocorrer depois de apreciada a impugnação que foi apresentada pelos RR.

No estado em que se encontra a matéria de facto não existem motivos para dispensar aquela tarefa e passar de imediato à integração jurídica, como fez a Relação, pois que, no mínimo, dever-se-ia considerar que a descrição que foi feita pela 1ª instância comporta segmentos que apresentam simultaneamente um significado jurídico e material que mereceria a integração jurídica adequada.

Ademais, quer a alegação das partes, quer a circunscrição da realidade operada pela 1ª instância são inseparáveis dos documentos que pela A. foram apresentados e que, podendo constituir uma extensão da petição inicial, poderão naturalmente constituir também uma extensão daquilo que o tribunal de 1ª instância considerou como factos provados.

Assim já era considerado por Alberto dos Reis (CPC anot., vol. II, p. 353) e a evolução legislativa e do pensamento jurídico, a par das modificações que também ocorrem na sociedade e da acentuação dos fatores de economia, celeridade e eficácia dos procedimentos processuais, interpelam os tribunais judiciais a cooperar também na melhoria dos resultados.

Preenchidos os pressupostos essenciais de natureza formal, devem ser canalizadas as energias para os aspetos de ordem material, refletindo a jurisprudência numerosos casos em que, em situações semelhantes à dos presentes autos, tal tem sido concretizado através da adoção de uma pré-compreensão que é radicalmente oposta àquela que prevaleceu no acórdão recorrido.

Assim o era quando entrou em vigor a reforma processual de 1995/96, nos termos que o ora relator deixou sintetizados em Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª ed., p. 201, nota 353, e a posterior evolução do sistema processual civil que envolveu a publicação de um novo CPC apenas vem acentuar ainda mais a necessidade de dar primazia a aspetos materiais.

4. Ora, sem necessidade de introduzir outros apoios que podem ser encontrados facilmente na doutrina e jurisprudência mais recentes, resulta evidente que, em situações como a presente (relação bancária que perdurou no tempo, com diversas operações), não se justifica de modo algum exigir do autor, quando elabora a petição inicial, que reproduza cada uma das múltiplas operações que foram contabilizadas no âmbito de um alegado contrato de descoberto bancário. Pelo contrário, não existem obstáculos legais a que a alegação feita na petição inicial seja complementada com o que emerge dos documentos que foram apresentados para ilustrar cada uma das alegações.

Também não é caso para sobrevalorizar, desde logo, nesta altura, uma distinção que a Relação pretendeu fazer entre um alegado contrato de descoberto bancário e um outro relacionamento contratual que corresponderia a um contrato de desconto bancário, para daí extrair as conclusões que logo foram retiradas. Ainda menos para considerar dispensável ou inútil a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto relativamente a concretos pontos que sintetizam o que ocorreu num largo período de duração daquele relacionamento.

Verifica-se, aliás, que ao dar prevalência a aspetos jurídicos, com a assunção de conclusões que por ora se mostra desnecessário rebater, a Relação passou ao largo das divergências que foram manifestadas pelos RR. relativamente ao que a 1ª instância inseriu no segmento da “matéria de facto” provada e não provada, invertendo de modo evidente a ordem de prioridades que foi exposta pelos RR. nas suas alegações no anterior recurso de apelação.

Com efeito, lidas as alegações e as respetivas conclusões, verifica-se que as principais objeções apresentadas pelos RR. contra a sentença da 1ª instância foram dirigidas ao elenco de factos provados e, em menor grau, ao elenco de factos considerados não provados. Já relativamente à matéria de direito, ou seja, às conclusões que foram extraídas dos factos apurados, os RR. apelantes praticamente se limitaram, a negar a existência de qualquer crédito (conclusões QQQ) e ss. do recurso de apelação), fundando a sua pretensão no sentido da improcedência da ação essencialmente na pretendida modificação de segmentos da matéria de facto provada e não provada que procuraram obter e que a Relação, no entanto, considerou dispensável ou mesmo inútil.

Neste contexto, impõe-se a revogação do acórdão recorrido para que a Relação proceda, como deveria ter procedido já, à apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida pelos RR., incluindo as nulidades que relativamente a tal matéria foram expostas no precedente recurso de apelação, após o que se seguirá a integração jurídica dos factos que forem definitivamente fixados, sem que sobre essa matéria tenhamos de antecipar desde já qualquer solução."
 
[MTS]