14/04/2020

Jurisprudência 2019 (217)


Administrador do condomínio;
legitimidade processual*


1. O sumário de RP 24/10/2019 (1406/18.4T8GDM.P1) é o seguinte:

I - A instauração de ação judicial pelo Condomínio, representado pelo Administrador, para condenação do construtor/vendedor a reparar os defeitos de construção existentes nas partes comuns do edifício, previamente denunciados, não se enquadra na “realização de actos conservatórios dos direitos relativos a bens comuns” a que se refere o art.º 1436º, al. f), do Código Civil, carecendo, por isso e ao abrigo do subsequente art.º 1437º, nº 1, de prévia autorização da Assembleia dos condóminos.

II - Se, depois de deliberado (por unanimidade) na Assembleia dos condóminos, a ação instaurada com aquele fim termina com absolvição do réu da instância por inércia do autor em promover uma habilitação de herdeiros, não é necessária nova deliberação para que seja instaurada uma nova ação se os condóminos, reunidos em assembleia, tomam conhecimento e aceitam (ainda que implicitamente) que a questão ainda não foi decidia de mérito e se continua a diligenciar judicialmente para que o seja.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Do mérito da apelação
 
A representação do A. nesta ação carecia de legitimação por deliberação prévia da assembleia de condomínio?
 
A ação judicial visa a realização do direito dos condóminos à reparação dos defeitos de construção existentes nas partes comuns do edifício do A. Condomínio (art.º 1421º do Código Civil [...]) e à indemnização dos danos consequentes. Por isso, foi instaurada contra os construtores/vendedores das frações pelo Condomínio.
 
A Assembleia dos condóminos e o Administrador são órgãos administrativos previstos no regime da propriedade horizontal, ambos com funções de administração das partes comuns do edifício assim constituído (art.º 1414º e seg.s, especialmente o art.º 1430º).
 
Não obstante ambos os órgãos se moverem no quadro da administração das partes comuns do edifício, tanto a Assembleia como o Administrador têm funções institucionais e próprias: a assembleia não pode reduzir o quadro de funções do administrador, nem pode limitar as ações que o administrador está legitimado a propor no exercício das suas funções.
 
A Assembleia tem funções essencialmente deliberativas, enquanto o Administrador tem funções executivas e práticas que não se compadecem com o funcionamento colegial da Assembleia. É um órgão de execução, nomeado e exonerado pela Assembleia dos condóminos, a quem tem de prestar contas da sua atividade. Procede, portanto, em regra, à execução das decisões daquela e à adoção das medidas necessárias à conservação e vida do edifício. [...] 

Para que possa levar por diante a sua tarefa executiva, o art.º 1437º, sob a epígrafe “Legitimidade do administrador”, estabelece no seu nº 1 que este órgão “tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia”.
 
Não se trata propriamente de legitimidade processual, no sentido da legitimidade ad causam, mas apenas de legitimatio ad processum, daí decorrendo que a representação do Condomínio em Juízo (parte na ação por força da extensão da personalidade judiciária prevista no art.º 12º, al. e), do Código de Processo Civil) incumbe ao respetivo Administrador. [...] O que ali está em causa é a capacidade judiciária do Condomínio relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do Administrador, já que o Condomínio, tendo personalidade judiciária, não tem personalidade jurídica – a norma do art.º 1437º é uma aplicação concreta do art.º 26º do Código de Processo Civil. [...] É o condomínio o titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade. [..]
 
Assim, o Administrador pode agir em Juízo, como parte ativa, em representação do Condomínio, sem necessidade de autorização da Assembleia quando esteja a exercer funções que a lei lhe atribui diretamente, designadamente quando se trate de regularizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns. Fora dessas situações de competência própria, o Administrador necessita de autorização da Assembleia ou de disposição regulamentar que o autorize. [...]
 
[...] no caso da presente ação visa-se conseguir (criar) uma nova situação para o prédio, através da reparação e eliminação dos defeitos de construção que apresenta e da condenação do construtor em indemnização por prejuízos causados. É algo que está para além da mera administração ordinária. Não está, por isso, no âmbito das funções que pertencem ao administrador do respetivo condomínio. Deve entender-se que pertence à Assembleia dos condóminos a decisão sobre a oportunidade de instaurar ou não a ação judicial contra o vendedor do prédio para a reparação de defeitos de construção existentes nas partes comuns. Tão relevante e decisivo assunto de demandar ou não demandar não pode ficar na única e exclusiva iniciativa do Administrador. [...]
 
A instauração de uma ação judicial com as caraterísticas da presente implica a ponderação de vários fatores, desde a escolha do mandatário, passando pelos seus honorários e despesas judiciais a pagar, avaliação do interesse na ação relativamente à gravidade dos defeitos e aos custos da respetiva correção, possibilidade de prévia negociação da reparação com a parte contrária (discussão de condições, limitações, valores, prazos de execução, etc.).
 
Como assim, entendemos que, por não tratar a presente ação da realização de atos conservatórios (dos direitos relativos aos bens comuns) o A. não podia tê-la instaurado sem autorização da Assembleia dos condóminos art.ºs 1436º, al. f) e 1437º, nº 1, in fine).

Importa agora saber se aquela deliberação existe e é eficaz para a instauração da presente ação.
 
Consta da ata n.º 4 que documenta a realização da assembleia ordinária dos condóminos de 04/07/2008: “PONTO UM: ANÁLISE, DISCUSSÃO E DELIBERAÇÃO SOBRE PROCEDIMENTOS A ADOTAR EM RELAÇÃO AOS DEFEITOS DE CONSTRUÇÃO QUE ESTÃO A SURGIR NO PRÉDIO.
 
(…) Analisada e discutida esta situação, foi deliberado, por unanimidade, avançar com ação judicial contra a empresa construtora para reclamar os defeitos de construção que estão a surgir no prédio”.
 
Assim mandatado pela Assembleia dos condóminos, o A. intentou a ação que correu os seus termos com o n.º 3775/08.5TBGDM e que já terminou, com absolvição dos RR. da instância em razão da inércia do A. quanto à abertura de um incidente de habilitação de herdeiros, na sequência do óbito de uma das partes.
 
Porém, o assunto não teve ali o seu decesso.
 
Na ata nº 25, relativa à assembleia ordinária do condomínio que teve lugar cerca de 10 anos depois, está espelhado o retorno do assunto à Assembleia para comunicar o ponto da situação da ação judicial que havia sido interposta. Foi então veiculado que a ação voltou à 1ª instância e ali irá prosseguir os seus termos, aguardando-se pela marcação da audiência prévia.
 
Apesar desta informação não corresponder à realidade processual da extinção da instância declarada naquela primeira ação, é, no essencial, verdadeira a sua mensagem quanto à essência da sua substância: A ação ainda não foi definitivamente decidida e irá ser oportunamente decidida de mérito na 1ª instância. [...].
 
O que de essencial foi deliberado e ainda se mantém é que se recorra a Juízo por via de ação contra o construtor/vendedor para solucionar o problema dos defeitos de construção e os prejuízos sofridos; é isso que efetivamente está em curso, decorridos cerca de 10 anos sobre a deliberação da respetiva autorização. Nunca esteve em causa o número de ações a interpor ou os expedientes processuais a adotar; isso é assunto técnico-forense. O que releva é o motivo do recurso aos tribunais, “subentendendo-se que eram conferidos poderes para a adopção das providências ou mecanismos judiciais adequados a tal motivação, na prossecução dos inerentes interesses jurídicos da parte/condomínio”, como decorre, por exemplo, do acórdão da Relação de Lisboa de 23.10.2014[13].
 
A presente ação é uma necessidade processual face à extinção da instância na ação anterior com subsistência do litígio.
 
Neste enfiamento impõe-se concluir que o A. instaurou a presente ação sob autorização validamente concedida em Assembleia dos condóminos, não se verificando a irregularidade da falta de deliberação a que se refere o art.º 29º do Código de Processo Civil, nem se tendo justificado, segundo o nosso ponto de vista, a designação do prazo dentro do qual o Administrador deveria obter autorização do condomínio, com suspensão dos termos da causa, como foi decidido pelo tribunal a quo.

Diz-nos o recorrido, nas contra-alegações, que sempre o recorrente se conformou com o despacho de regularização da instância proferido nos autos a 18.12.2018, pelo qual se determinou a suspensão da instância pelo período de 3 meses para que o A. obtivesse a deliberação imposta pelo art.º 1437.º que previsse a autorização para a propositura da ação e respetiva ratificação do processado, sob cominação de absolvição dos Réus da instância, caso tal autorização e ratificação não fossem obtidas e apresentadas nos autos no prazo estabelecido. [...]
 
Como observámos, por existir já e ser eficaz relativamente à presente ação, não há fundamento para exigir do A. a autorização para o procedimento judicial e ratificação do respetivo processado pela Assembleia dos condóminos; não há irregularidade de representação do A. em Juízo."

*3. [Comentário] O art. 1437.º, n.º 1, CC estabelece realmente o que com toda a literalidade dele consta: "o administrador tem legitimidade para agir em juízo". Isto só pode querer dizer que o administrador tem legitimidade processual para agir em juízo, ou seja, para instaurar, em nome próprio, acções judiciais. 

Neste enquadramento, isto é, sem fazer qualquer interpretação correctiva do disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC são possíveis duas situações:

-- O administrador actua no exercício de funções próprias (como são as que estão referidas no art. 1436.º CC); neste caso o administrador actua por si mesmo, sem necessidade de qualquer autorização do condomínio (art. 1437.º, n.º 1 1.ª parte, CC); o administrador tem legitimidade para ser autor em qualquer acção respeitante ao exercício dessas funções; por exemplo: ao administrador incumbe "exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas" (art. 1436.º, al. e), CC); disto decorre que o administrador tem legitimidade para, como autor, propor uma acção contra qualquer condómino para obter essa cobrança;

-- O administrador actua fora das suas funções próprias, mas para tutela direitos que pertencem ao condomínio; nesta hipótese, o administrador actua no âmbito do que, em muitas e variadas latitudes, se designa por substituição processual (ou legitimidade processual indirecta), porque o administrador age em juízo em substituição do titular do direito, que é o condomínio; à semelhança da hipótese anterior, também nesta situação é o administrador que é parte; a diferença reside em que, neste caso, o administrador necessita de autorização do condomínio (art. 1437.º, n.º 1 in fine, CC), precisamente porque o direito que vai defender em juízo pertence ao condomínio; em suma: nesta situação, constitui-se o que, nas mesmas múltiplas latitudes, se chama substituição processual voluntária.

Em conclusão: o disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC é perfeitamente compatível com os mais comuns e tradicionais cânones da legitimidade processual. É, por isso, dispensável qualquer outra construção, que, aliás, só é motivo de confusões. 

Aliás, destas não se livrou o próprio acórdão, ao afirmar que "o Administrador pode agir em Juízo, como parte ativa, em representação do Condomínio". Como é claro, não é assim: se age como parte activa, não pode agir como representante da própria parte activa; e se é representante da parte activa, não pode ser parte activa.

b) Veja-se ainda como o afirmado anteriormente teria evitado inúmeras complicações processuais no caso decidido pela RP:

-- Em vez de a acção ter sido proposta pelo condomínio representado pelo administrador, a acção deveria ter sido proposta pelo administrador no exercício das funções próprias; aliás, tal como a acção foi proposta, não faltam sequer muito boas razões para entender que o condomínio é parte ilegítima, porque não se consegue perceber qual a justificação para que o condomínio seja parte numa acção que tem a ver exclusivamente com o exercício de funções que são próprias do administrador; repare-se que o art. 1436.º CC quando pretende atribuir poderes de representação ao administrador di-lo expressamente na al. i); portanto, nos demais casos, o administrador não age como representante do condomínio, mas como titular de direitos e de deveres próprios;

-- A propositura da acção pelo administrador e o reconhecimento de que ele (e apenas) ele tem legitimidade para exercer, também em juízo, as funções que lhe são atribuídas pelo art. 1436.º CC teria evitado a discussão inconsequente sobre a necessidade da autorização do condomínio para a sua representação pelo administrador.

MTS