20/04/2020

Jurisprudência 2019 (221)


Função jurisdicional;
responsabilidade civil do Estado*


1. O sumário de RC 13/11/2019 (2519/18.8T8LRA.C1) é o seguinte:

I - O regime geral aplicável à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional corresponde ao regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam diretamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave.

II - Para o reconhecimento de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, é necessária a existência de um erro judiciário, o qual implicará que haja a certeza de que um juiz normalmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis, quer se esteja perante erro de direito ou de facto.

III- Essa certeza, enquanto requisito da ilicitude da responsabilidade em causa, tem de advir da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, comportando-se, pois, esta revogação, como um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional.

IV – Não se trata, no entanto, de uma qualquer revogação de uma decisão judicial, mas de uma revogação que implique, pelo seu conteúdo, o reconhecimento judicial do erro, com as características de manifesto, quando de direito, ou de grosseiro, quando de facto.

V – A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu dever ter-se por definitivamente afastada a exigência da prévia revogação da decisão danosa quando esteja em causa a apreciação da responsabilidade civil do Estado por acto da função jurisdicional em função da violação do direito comunitário por um órgão jurisdicional nacional que decida em última instância.

VI – Por isso, apenas quando o erro judiciário que origina o dever de indemnizar proceda do órgão jurisdicional que decida em última instância e se reporte à devida interpretação ou aplicação do direito comunitário pode e deve ser dispensada a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Atualmente a matéria da responsabilidade civil extracontratual do Estado é regida pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, que foi alterada pela Lei 31/2008, importando convocar nesse diploma legal no que diz especificamente respeito à responsabilidade civil contra o Estado por erro judiciário, não só o já referido seu art 14º, mas, desde o logo, o seu art 12º - que torna aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça o regime da responsabilidade por ilícitos cometidos no exercício da função administrativa . E, indiscutivelmente, o art 13º, onde se encontram os requisitos desta específica responsabilidade civil .

Diz-se neste preceito: «1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

As decisões jurisdicionais em causa são, nas palavras de Ana Celeste Carvalho, «não só as decisões jurisdicionais, maxime, sentença ou acórdão, enquanto decisões finais que põem termo ao litígio, como qualquer outra decisão ou medida aplicada que defina a situação jurídica e a concreta composição de interesses, ainda que provisoriamente ou no exercício de funções materialmente administrativas», explicando, antecedentemente, que «o conceito de sentença não deve ser tomado no seu sentido técnico-processual, já que para além das decisões definitivas, que põem termo à instância, total ou parcialmente, seja de forma, seja de mérito, seja em acção, seja em processos cautelares e seus incidentes, não é de excluir que outras decisões e mesmo certos despachos (como aqueles que decidam a admissão de articulado superveniente, requerimentos de produção de prova, a ampliação do pedido/causa de pedir e a modificação objectiva/subjectiva da instância), possam influir na decisão final».

Quanto ao erro judiciário, decorre da norma em causa que a referida responsabilidade civil só existirá perante decisões jurisdicionais inconstitucionais ou ilegais, desde que o sejam «manifestamente»; ou perante decisões jurisdicionais em matéria de facto, aí, desde que contenham «erro grosseiro». E estabelece-se um requisito essencial para o accionamento dessa responsabilidade – o de que tenha existido a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Na verdade o RRCEE (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado) optou por não definir o erro judiciário – pressuposto material da responsabilidade em referência - preferindo limitar-se a apontar as características de que o mesmo se deve revestir para que seja fonte geradora de responsabilidade civil: configurar-se como um erro manifesto de direito, dele decorrendo uma decisão jurisdicional («manifestamente») inconstitucional ou ilegal, ou configurar-se como um «erro grosseiro» de facto, dele decorrendo uma decisão de facto “grosseiramente” injustificada.

Já se vê que as características do erro judiciário são predominantemente dadas pelos termos «manifestamente» e «grosseiro», referindo Ana Celeste Carvalho: «Sendo imediatamente valorativos, os conceitos manifesto e grosseiro, traduzem uma elevada relevância ou importância, não bastando qualquer erro, o erro banal, corrente ou comum, mas antes aquele que o magistrado tem a obrigação de não cometer, por ser crasso e clamoroso».

Como é evidente, e como para tanto o adverte Gomes Canotilho , «sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova», referindo mais especificamente : «Não se intentam acções de responsabilidade para contestar a interpretação de normas e a valoração dos factos e dos meios probatórios. Quando assim se pretende proceder utiliza-se a via do recurso».

O que significa que quem interpõe uma ação de responsabilidade civil contra o Estado por erro judiciário tem, à partida, que, em função das várias decisões jurisdicionais que hajam sido proferidas sobre a matéria do litígio, situar e definir o erro que está em causa, e fazê-lo de tal modo que o mesmo resulte configurado como «manifesto» (quando de direito) ou «grosseiro» (quando de facto).

Importa ainda ter em consideração que como sucede genericamente na matéria de responsabilidade civil, esse erro há-de apresentar-se como causa adequada do dano cuja ressarcibilidade se pretende: «Apenas será relevante o erro que permita estabelecer o nexo causal com o dano produzido, pelo que, ocorrendo um erro ainda que manifesto e grosseiro e indemnizável, se o mesmo não for a causa adequada do dano, será de excluir a responsabilidade» .

No Grande Dicionário da Língua Portuguesa surge como sinónimo de “grosseiro”: mal acabado, sem arte, tosco, que está longe da perfeição; desprovido de cultura, de civilização, de educação, de instrução; rude, bruto, rústico; malcriado, incivil, que fere a decência e a delicadeza; fig. no sentido moral – o que é manifestamente contrário à razão, ao bom senso, à verdade.

E como sinónimo de “manifesto”: evidente, notório, que toda a gente pode reconhecer, patente, claro, inegável, flagrante.

Para melhor percepção da caracterização do erro judiciário, numa e noutra das vertentes, repetem-se aqui as citações jurisprudenciais utilizadas no Ac STJ 10/5/2016 . Assim:

-no Ac STJ 8/9/2009, (Sebastião Póvoas) – “O erro grosseiro é o que se revela indesculpável, intolerável, constituindo, enfim, uma “aberratio legis”. Terá de se traduzir num óbvio erro de julgamento, por divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, a interferir no seu mérito, resultante de lapso grosseiro e patente”;

-no Ac STJ de 15/12/2011 (João Trindade) – “O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de ou gravemente negligente”;

-Ac STJ de 28/2/2102 (Nuno Cameira) – “O erro de direito só constituirá fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que tome a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas”;

-Ac STJ 23/10/2014 (Fernanda Isabel) – “O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser “escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante”, sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de “erro grosseiro.”;

-Ac STJ 24/2/2015 (Pinto de Almeida) “O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.”

Em função destes acórdãos e de outros verifica-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem repetidamente qualificado como erro grosseiro, o erro indesculpável em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação conhecimento e competência .

Dizendo-se ainda com interesse no Ac STJ 20/10/2005: «Para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar de que não foi justa ou melhor a solução encontrada», antes se impondo que, «haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis”. Acrescentando-se ainda nesse acórdão: «A revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso».

É das acima referidas características do erro judiciário que acabam por resultar os pressupostos da ilicitude e da culpa no exercício da função jurisdicional susceptíveis de importar responsabilidade civil do Estado, como ainda se faz notar nessa decisão, quando se refere: «Só podem dar-se como verificados (esses pressupostos) nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador».

Carlos Alberto Fernandes Cadilha introduz na definição do erro de direito, enquanto fundamento da responsabilidade civil, uma nota muito relevante: a de que devendo revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, não possa aceitar-se como «uma das soluções plausíveis da questão de direito». Por outro lado, «O reconhecimento do direito indemnizatório não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito; tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes».

Relativamente ao erro na apreciação dos pressupostos de facto, certo que só origina responsabilidade civil do Estado em caso de erro grosseiro, refere que «esta especial qualificação do erro, quando está em causa uma decisão de facto, parece relacionar-se com o condicionalismo da formação da convicção do juiz relativamente a meios de prova que sejam de livre apreciação». Dizendo mais à frente: «Compreende-se assim que a responsabilidade civil por erro quanto à matéria de facto se circunscreva aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova, ressalvando-se as situações em que a decisão de facto, ainda que tenha sido alterada por um tribunal de recurso, ainda se enquadra dentro dos limites da contingência e da falibilidade de um juízo de convicção psicológica sobre a valoração da prova», tornando claro que o erro na apreciação das provas tanto pode respeitar a um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova, como a um erro sobre a fixação dos factos matéria da causa .

Cabe evidenciar que devendo o erro de direito ou o erro de facto gerar inconstitucionalidade ou ilegalidade, estas são, só por si, expressão de ilicitude.".

*3. [Comentário] Quanto ao regime processual da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, importa agora ter presente o disposto nos arts. 696.º, al. h), 696.º-A, 701.º e 701.º-A CPC, todos na redacção da L 117/2019, de 13/9.

Como não podia deixar de acontecer, a referida dualidade de regimes quanto à necessidade ou à dispensa da revogação prévia da decisão na qual se cometeu o alegado erro judiciário deixa de se verificar no novo regime legal. Agora, a revogação prévia da decisão é obtida, qualquer que seja o fundamento da alegada responsabilidade civil do Estado, no recurso de revisão (cf. art. 701.º, n.º 1 caput, CPC).

MTS