05/05/2020

Jurisprudência 2019 (231)

 
Prova por declarações de parte;
discriminação de factos

 
1. O sumário de RP 21/11/2019 (29903/15.6T8PRT-F.P1) é o seguinte:

I - No requerimento em que se peçam declarações de parte, têm de ser discriminados os factos a que se irão reportar, podendo tal discriminação ser genérica em relação ao respetivo articulado.

II - Caso a parte não o faça, deve ser convidada pelo tribunal a fazê-lo com a cominação de, não aceitando o convite, não serem admitidas tais declarações.

III - A menção a que se pede que as declarações de parte se reportem a todos os factos em que interveio pessoalmente e de que tem conhecimento direto não cumpre os requisitos mínimos de discriminação devendo assim ser convidada a discriminar os factos sobre que vão incidir as declarações.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do artigo 466.º, n.º 1, do C. P. C., capítulo III, secção II, as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
 
O n.º 2 do mesmo artigo menciona que «às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.».
Será com base neste número que se pode entender que a estas declarações se aplica o disposto no artigo 452.º, n.º 2, do C. P. C., capítulo III, secção I, que impõe que deve indicar-se discriminadamente logo no requerimento probatório os factos sobre que há-de recair.
 
E essa é a nossa opinião pois a remissão é expressa para a secção onde está regulado o depoimento de parte e não se deteta que existam motivos para não ser aplicada.
 
A necessidade de discriminação dos factos verifica-se, por um lado, para o tribunal constatar se o requerimento pode ser admitido tal como pedido e, por outro lado, para a parte contrária poder não só sindicar se esse requerimento pode ser deferido como peticionado mas também para delinear a sua estratégia processual sabendo que há a apresentação daquele tipo de prova que pode vir a ser produzida com determinados contornos.
 
A referência a discriminada pode induzir a ideia de que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica (por exemplo, toda a matéria da petição inicial ou da contestação).
 
Para além das razões históricas da exigência em causa (Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, 2001, 2.º volume, página 466, em anotação ao então artigo 552.º, do mesmo Código ou na mesma obra, 3.ª edição, páginas 284 e 285) e a que infra ainda faremos uma ligeira menção, pensamos que também se pretende obter maior clareza e rapidez na perceção pelo tribunal e contraparte do âmbito do que se pretende, o que igualmente permitirá maior rapidez na apreensão e decisão sobre qual deve ser o conteúdo final desse depoimento ou declarações.
 
É certo ainda que se a parte indica o conteúdo do depoimento/declarações a toda a matéria, pode estar em causa um longo articulado em que aquela referência seria no fundo estar a impor desde logo ao tribunal a necessidade de pesquisar nesse articulado que factos é que poderiam servir de base a tal meio de prova o que seria contraproducente não só para a prática processual (criando delongas desnecessárias) como eventualmente se transmitia ao tribunal o ónus de produzir peças processuais escorreitas, o que tem de caber à parte.
 
E assim poderia pensar-se que seria «caso a caso» que o tribunal iria aferir se tinha de haver uma descriminação de factos ou se bastava uma referência genérica como acima referido, em que, por exemplo, numa petição inicial de dez artigos não haveria dificuldade em determinar que factos poderiam ser a base das declarações de parte mas num processo com duzentos artigos na petição inicial essa busca já não era fácil e então tinha a parte de proceder à discriminação ponto por ponto.
 
Não entendemos assim mas antes que a parte pode discriminar genericamente os factos que pretende que sejam a base das suas declarações (e depoimento de parte), aqui ainda mais intensa essa possibilidade, na nossa perspetiva, pois estão em causa declarações pedidas pela própria parte, sendo ela que fixa aquilo sobre que poderá prestar declarações, não sendo a outra parte que está a fixar matéria contra a sua vontade.
 
Ou seja, se estiver em causa um depoimento de parte, por regra é a parte contrária quem fixa o conteúdo desse depoimento (artigo 453.º, n.º 3, do C. P. C.) pelo que ainda subsistem razões para a exigência da discriminação pelo legislador que assim entendeu que a parte que vai depor tem de ficar prevenida sobre o que vai de ter de se pronunciar, tendo a parte contrária de ser cuidadosa nessa indicação (vejam-se os motivos que radicam na génese histórica que ainda prevalecem para esta indicação na obra acima referida, 2.ª edição, página 467).
 
Acresce ainda que quem vai depor como parte fica a saber que há matéria que lhe vai ser perguntada pelo que deve procurar lembrar-se da mesma e assim estar bem informado do que está em causa.
 
Mas ainda assim, essa prevenção pode ser feita mediante discriminação genérica, sem ter de ser atomística – veja-se Lebre de Freitas na atual 3.ª edição da obra acima referida, páginas 285 e 286.
 
No caso das declarações de parte, se é esta quem espontaneamente manifesta vontade de o fazer em julgamento e se indica que o quer fazer a toda a matéria do articulado, o ónus de indicação está atingido pois não só refere a matéria como não há razões (como entende Lebre de Freitas na ob. citada que as não há para o depoimento de parte) para que se determine que tenha de o fazer de outro modo (quanto à possibilidade deste tipo de discriminação, Ac. da R. Guimarães de 12/03/2015, www.dgsi.pt) -.
 
Não há razões para se acautelar sobre a matéria em relação à qual a parte se vai pronunciar pois se assim o pede é porque ponderou (ou devia ter ponderado) sobre essa questão e aceita essa situação espontaneamente; acresce que se os factos foram por si alegados, é porque se recorda dos mesmos.
 
Outra situação é se o tribunal entende que todos os factos que foram indicados, mesmo genericamente, poderão ser a base dessas declarações de parte uma vez que estas só podem ter por base factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto; se o tribunal conseguir deslindar pelo teor do articulado que há factos que são abrangidos pela discriminação (genérica ou concretizada) feita pela parte no seu requerimento para prestar declarações enquanto tal e que não reúnem uma daquelas duas qualidades, então terá de impedir que façam parte desse objeto.
 
Se a parte nada diz sobre quais são os factos sobre os quais quer depor, aí sim, deve ser convidada a concretizar quais são aqueles que são a base das mesmas sob pena de não o fazendo tais declarações não serem admitidas por o artigo 6.º, n.º 2, parte final, do C. P. C. impor esse convite (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, página 531).
 
No caso concreto, pensamos que nem genericamente foi efetuada a discriminação pois a parte não refere que quer prestar declarações a toda a matéria do seu articulado mas apresenta uma frase vaga, reproduzindo a parte final do artigo 466.º, n.º 1, do C. P. C. - requer a declaração de parte do Oponente, a todos os factos em que interveio pessoalmente e de que tem conhecimento direto – não limitando a discriminação ao seu articulado, podendo suceder que viesse a entender que havia factos na contestação aos embargos sobre os quais podia depor por deles ter conhecimento direto, o que não é possível, pelo menos de forma imediata (sabendo-se que a factualidade tem um rosto e um verso, ao referir-se a um determinado facto por si alegado indiretamente reporta-se a um facto eventualmente de sentido oposto alegado pelo exequente).
 
Mas o aqui recorrente tinha de indicar a factualidade constante do seu articulado que serviria de base às suas declarações o que não fez; assim, como acima referido, deverá então ser convidado a fazê-lo sob pena de, não respondendo ao convite, não serem admitidas."
 
[MTS]