19/05/2020

Jurisprudência 2019 (241)


Reconvenção;
absolvição da instância; legitimidade processual*


1. O sumário de RG 5/12/2019 (4677/15.4T8GMR.G1) é o seguinte:

I. A absolvição dos réus da instância, não obsta à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, se este não for dependente do formulado pelo autor.

II. No caso dos autos, não sendo o pedido reconvencional deduzido pelos réus condicional aos pedidos do autor (pois que não está subordinado à condição de a pretensão do autor proceder), é o mesmo admissível.

III. Não se pode confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. Relatório

José (..) intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, no actual Juízo Central Cível de Guimarães, J1, contra (…) e mulher (…), pedindo que seja declarada a anulabilidade do negócio jurídico em causa – compra e venda do prédio objecto da escritura pública celebrada em 20 de Maio de 2015 – e concomitante anulabilidade do registo de propriedade do prédio então efectuado a favor dos réus, dado que estes, dolosamente através de recurso a um artifício/embuste, o induziram em erro, do qual resultou a falsidade da declaração exarada na escritura pública no que concerne ao recebimento do preço do prédio objecto da compra e venda, declaração que jamais ocorreria se não tivesse sido, dolosamente, induzido e mantido em erro pelo réu marido; ou a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de € 55.000 acrescida de juros à taxa comercial, contados a partir da data de entrada em juízo da presente acção até integral pagamento de tal quantia, despesas judiciais, procuradoria e tudo o mais que vier a ser apurado. [...]

Os réus contestaram, invocando a excepção de ilegitimidade activa por entenderem que a acção devia ser intentada em nome da representada e não do seu procurador, pois este age no interesse e em representação daquela.

Contrapuseram que em 30 de Novembro de 2009 celebraram com o autor, que interveio em representação de M. S., um contrato promessa de compra e venda do aludido imóvel, acordando o preço de € 175.000, entregando, então, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 3.000; ficou estipulado que o promitente vendedor se comprometia a obter licença de habitabilidade nos serviços camarários até à data da celebração da escritura; porém, os anos passaram sem que licença fosse obtida pois o imóvel tinha várias construções não licenciadas, pelo que decidiram renegociar o preço e, em 28 de Setembro de 2012, celebraram novo contrato promessa acordando que o preço era de € 100.000, que foi recebido pelo demandante em três cheques datados de 20 de Dezembro de 2012, ficando estipulado que lhes caberia obter a licença; pagaram, para o efeito, os honorários de técnicos e trataram eles próprios dos actos preparatórios a essa emissão, o que apenas alcançaram em Março de 2015 e permitiu agendar a escritura que veio a celebrar-se em 20 de Maio desse ano; o preço encontrava-se pago pelo que o autor na qualidade de procurador da vendedora declarou tê-lo recebido; na escritura declararam o preço de € 117.000 em razão da avaliação matricial do prédio e das regras do IMT.

Deduziram reconvenção pedindo a condenação do autor a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ...º. [...]

Dispensada a audiência prévia, a reconvenção foi admitida, tendo sido proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa, absolvendo os réus da instância, decisão que veio a ser confirmada em sede de recurso; relativamente aos restantes pressupostos processuais, pronunciou-se pela sua validade e regularidade, estado em que, aliás, se mantêm. [...]
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“VI. Decisão

Em face do exposto, o Tribunal:

a) julga a reconvenção provada e procedente, condena o Reconvindo José a reconhecer que os Reconvintes F. L. e mulher P. S. são proprietários do prédio urbano composto por rés-do-chão e primeiro andar, dependência e logradouro, situado no lugar de ... ou da ..., freguesia de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ...; [....].


IV. Do objecto do recurso. 

1. Da admissibilidade do pedido reconvencional.

[...] No caso dos autos, manifesto é que, considerando a forma como foi intentada a presente acção, e a configuração dada ao pedido reconvencional, só se pode discutir se este “emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa”.

Como é sabido, é a causa de pedir que serve de fundamento à acção, isto é, o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo pelo autor (artigo 581.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

Assim, se a reconvenção se baseia nesse facto, passam a existir dois pedidos que se cruzam, mas com uma origem comum.

Por outro lado, se o fundamento da reconvenção emerge da defesa, torna-se necessário que o facto invocado produza efeito útil defensivo.

Com efeito, tem sido entendimento pacífico quer na doutrina quer na jurisprudência que, de acordo com a primeira parte da expressão “quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa”, admite-se a reconvenção quando o pedido reconvencional tem a mesma causa de pedir da acção, isto é, o mesmo facto jurídico em que o autor fundamenta o direito que invoca.

Por seu lado, de acordo com a segunda parte dessa mesma expressão, a reconvenção só é admissível quando o réu invoque como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (neste sentido, nomeadamente, Acs. RP. de 25/06/2007; de 05/07/2011; e de 27/07/2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

De facto, tratando-se de uma contra-pretensão, dentro do mesmo processo, a reconvenção deve ter uma certa compatibilidade com a causa de pedir do autor, razão pela qual tem de ter a sua génese na causa de pedir invocada pelo autor-reconvindo, ou na qual o réu-reconvinte estriba a sua defesa em relação a essa causa de pedir invocada pelo autor.

Como refere Jacinto Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, 3ª ed., pág. 32: “Partindo do pressuposto irrefutável que toda a acção tem como causa de pedir um certo acto ou facto jurídico, para que a reconvenção seja admissível ao abrigo da referida alínea a) exige-se que o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir que serve de suporte ao pedido da acção ou emirja do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, embora desse acto ou facto jurídico se pretenda, nesse caso, obter um efeito distinto, naturalmente favorável ao réu, reduzindo, modificando ou extinguindo o pedido do autor”.

E como afirmam Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 530: “Na previsão da alínea a) cabem duas hipóteses: o pedido reconvencional pode fundar-se na mesma causa de pedir – ou em parte dessa mesma causa de pedir – que o pedido do autor, ou pode fundar-se nos mesmos factos – ou parcialmente nos mesmos factos – em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial”.

No caso dos autos, como bem se refere na decisão de admissão do pedido reconvencional, os réus pediram que o autor seja condenado a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ...º.

Para tanto, deram por reproduzida a matéria da impugnação na qual alegaram que o Autor, na qualidade de procurador de M. S., em 30 de Novembro de 2009, celebrou consigo um contrato promessa de compra e venda do imóvel por € 175.000, tendo pago € 3.000 a título de sinal, ficando estipulado que o promitente vendedor se comprometia até à data da escritura a obter licença de habitabilidade; devido à existência de várias construções ilegais e não licenciadas, decidiram renegociar o preço, celebraram novo contrato promessa acordando que o preço seria de € 100.000 e entregaram, antes desse ato o montante de € 80.000, estipulando que a parte restante de € 20.000 seria paga até à escritura ou na data da sua realização, a celebrar até 30 de Dezembro de 2012; através de três cheques datados de 20 de Dezembro de 2012, dois de € 20.000 e um de € 60.000 pagaram a quantia global de € 100.000, emitindo o Autor declaração em como os tinha recebido; a escritura acabou por não se realizar por dificuldades na obtenção da licença de habitabilidade, acabando por assumir eles próprios tal responsabilidade, com êxito, agendando a escritura que veio efectivamente a realizar-se em 20 de Maio de 2015.

Ora, na acção, o autor alegou que, não obstante tenha ficado a constar da escritura pública de compra e venda, a sua declaração, enquanto representante da vendedora, de ter recebido o respectivo preço, na verdade, os réus ainda não tinham pago o montante de € 55.000 e que agiram com dolo afirmando, momentos antes daquele ato de solenização, que o fariam imediatamente a seguir à outorga, o que não cumpriram subsequentemente, alegando dificuldades financeiras imediatas, tendo também recusado rectificação da escritura, assim como a entrega de cheque pré-datado ou confissão de dívida.

A ser assim, verifica-se que estamos, de facto, perante uma reconvenção que emerge do fundamento da defesa, já que a propositura da acção põe em causa a titularidade do direito de propriedade pelos réus, através da arguição de um vício da declaração de vontade, à qual estes contrapõem argumentos para verem afastada a dúvida suscitada pelo demandante.

Por outro lado, o pedido formulado revela-se autónomo e subsistente mesmo com a ilegitimidade activa do demandante anteriormente decidida, que não impede de forma alguma o prosseguimento do pedido reconvencional.

Com efeito, como se afirma no sumário do Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 18.02.2002, disponível in www.dgsi.pt: “Sumário: I-- O n.º 6 do artigo 274.º do CPC, ao estabelecer que a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional, ressalva a hipótese de o pedido reconvencional se “dependente do formulado pelo autor”, querendo com isso significar “quando o pedido do réu for condicional ao pedido do autor”, isto é, “quando estiver subordinado à condição de a pretensão do autor proceder”.

II-- Sendo o pedido reconvencional deduzido por mais de um réu, a absolvição da instância de um deles não obsta à apreciação do pedido reconvencional.

III-- A ilegitimidade passiva de um dos réus não contende com a sua legitimidade activa relativamente ao pedido reconvencional.”.

No caso dos autos, é manifesto que o pedido reconvencional deduzido pelos réus não é condicional aos pedidos do autor, pois que não está subordinado à condição de a pretensão do autor proceder. Assim, é o mesmo admissível."

*3. [Comentário] O acórdão suscita uma tal perplexidade que tem de se admitir que não se consegue interpretar bem o que dele consta ou que nele falta algum elemento que resolve todas as dúvidas.

O problema é (aparentemente) o seguinte:

-- O autor intentou a acção em nome próprio, mas tinha intervindo no negócio cuja anulação pediu em representação da vendedora; por esta razão, as instâncias entenderam (indiscutivelmente bem) que o autor era parte ilegítima e absolveram os réus da instância;

-- Apesar de os réus terem sido absolvidos da instância com o fundamento de o autor ter intervindo no negócio como representante da autora, a RG limitou-se a considerar que, não sendo a reconvenção dependente do pedido autor, aquela absolvição não impede a subsistência desta reconvenção; com isto, a RG permite o trânsito em julgado da decisão da 1.ª instância que considerou procedente o pedido reconvencional de reivindicação contra o mesmo autor que tinha sido considerado parte ilegítima por ser representante da vendedora.

Se bem se compreende o decidido no acórdão, nem o recorrente suscitou o problema da sua ilegitimidade passiva para o pedido revonvencional deduzido pelos réus, nem a 1.ª instância e a RG se aperceberam de que o fundamento para considerar que o autor era parte (activa) ilegítima tinha de se aplicar a essa mesma parte como reconvindo no pedido de reivindicação formulado pelos réus. Se o autor não é parte legítima para intentar a acção, porque foi mero representante da vendedora, então também, exactamente pelo mesmo motivo, não pode ser parte legítima (agora como parte passiva) quanto ao pedido de reivindicação formulado pelos réus.

O pedido de reivindicação tinha de ser dirigido, não contra o representante da vendedora, mas contra esta mesma vendedora. Só assim, aliás, é que se poderia observar a regra que consta do art. 1311.º, n.º 1, CC quanto à legitimidade passiva para a acção e reivindicação: esta acção tem de ser proposta contra o possuidor ou o detentor da coisa (não, naturalmente, contra um representante deste possuidor ou detentor). Supõe-se que a 1.ª instância e a RG deveriam ter-se apercebido deste problema.

Ao considerar admissível o pedido reconvencional deduzido pelos réus, a RG permitiu o trânsito em julgado da decisão da 1.ª instância que condenou o autor (isto é, o representente da vendedora) a reconhecer a propriedade dos réus. Dado que uma das funções da legitimidade processual é precisamente a de permitir que na acção estejam os "legítimos contraditores", no mínimo há que concluir que a procedência do pedido reconvencional não é oponível à vendedora, dado que não foi parte na acção.

MTS