25/05/2020

Jurisprudência 2020 (1)


Acordo simulatório; negócio dissimulado;
prova testemunhal


1. O sumário de RP 14/1/2020 (805/18.6T8PRT.P1) é o seguinte:

I – A restrição do artº 394º nº2 CCiv não veda a possibilidade de os simuladores provarem o acordo simulatório e o negócio dissimulado mediante um princípio de prova escrita contextualizada ou complementada pela prova testemunhal ou por presunção judicial.

II – Se o objectivo das partes foi o de minorar eventuais consequências fiscais para todas elas outorgantes, então o negócio dissimulado era ilícito, pelo que as partes poderiam sempre provar livremente tal negócio ilícito, nos termos do disposto no artº 281º CCiv.

III – A autonomia do contrato promessa em face do contrato definitivo impõe que se considerem subsistentes, mesmo após a conclusão do contrato definitivo, as obrigações constituídas pela promessa que não tenham encontrado solução extintória na celebração daquele contrato.

IV – A iliquidez do crédito do titular do direito de retenção irreleva para a afirmação do referido direito de retenção – nº2 do artº 757º CCiv; o saldo de eventuais créditos e débitos recíprocos não prejudica o pressuposto da iliquidez do crédito.

V - A situação jurídica que proporciona a fruição da casa de habitação por acordo das partes em divórcio, sem qualquer contrapartida (ou seja, não sendo caso de apreciação em concreto do disposto no artº 1793º CCiv) e com a limitação temporal da partilha, constitui um verdadeiro direito de habitação semelhante àquele que o legislador de 77 instituiu a favor do cônjuge sobrevivo nos artºs 2103º-A e 2103º-B CCiv, e mostra-se definido e regulado nos artºs 1484ºss. CCiv.

VI - Uma das consequências do direito assim regulado é que ficam a cargo do usuário as despesas de administração e os encargos anuais, tal como um verdadeiro usufrutuário – artºs 1489º nº1 e 1474º CCiv.

VII – Nos termos do artº 1726º nº1 CCiv, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações; assim, a atribuição patrimonial que favoreceu o bem próprio faz nascer um direito de compensação no património do outro cônjuge, exigível no momento da dissolução e da partilha da comunhão – artº 1726º nº2 CCiv.

VIII - A quantia em que se traduz tal compensação não pode fundamentar direito de retenção, posto que, entre a contribuição para a aquisição do imóvel e este imóvel em si, não existe a conexão material ou objectiva prevista no artº 754º CCiv.

IX - Tendo as partes, em inventário divisório, sido remetidas para os meios comuns, quanto à natureza de bem próprio ou comum do imóvel, só com a definição dessa natureza se poderá dizer cessada a situação pendente de partilha.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em função das conclusões apresentadas pelos Recorrentes, as questões em apreciação serão as de saber:

Apelação do Autor

- se cabe julgar não provados os factos constantes de H), I) e J), posto que as declarações dos permutantes em juízo o não autorizam e visto o valor probatório da escritura pública, considerando o disposto no artº 394º nº2 CCiv; [...]
I

Em primeiro lugar, portanto, se cabe julgar não provados os factos constantes de H), I) e J), posto que as declarações dos permutantes em juízo o não autorizam e visto o valor probatório da escritura pública, considerando o disposto no artº 394º nº2 CCiv.

O Recorrente concentra-se no disposto no artº 394º nº2 CCiv, quanto à inadmissibilidade de prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado, invocado pelos simuladores - no caso dos autos, a ter sido invocado pela Ré, que interveio numa escritura de permuta na qualidade de cônjuge do outorgante, dando o seu consentimento para o negócio.

Diga-se porém que a Ré não invocou a simulação do negócio – apenas invocou a validade das cláusulas da promessa que antecedeu a escritura de permuta.

E mesmo a ter invocado a simulação do negócio – rectius se fosse de concluir pela simulação, o pactum simulationis, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, teria incidido sobre a parte relativa à compra e venda, quanto a um contrato misto de permuta e de compra e venda, no qual apenas a parte relativa à permuta veio a ser declarada, omitindo-se deliberadamente o pagamento de um preço, como é típico da compra e venda.

Ora, é doutrina de há muito estabelecida que a restrição do artº 394º nº2 CCiv não veda a possibilidade de os simuladores provarem o acordo simulatório e o negócio dissimulado mediante um princípio de prova escrita contextualizada ou complementada pela prova testemunhal ou por presunção judicial, à semelhança do que acontece nos sistemas civilísticos italiano e francês – tudo no seguimento da doutrina consagrada do Prof. Vaz Serra, v.g. na Revista Decana 107º/310, a que aderiram os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 2ª ed., pg. 320.

Prova que, no caso dos autos, sempre se apoiaria nas cláusulas da promessa celebrada.

E note-se ainda que, se o objectivo das partes foi o de minorar eventuais consequências fiscais para todas elas outorgantes, então o negócio dissimulado era ilícito, pelo que as partes poderiam sempre provar livremente tal negócio ilícito, não obstante as restrições probatórias do artº 394º nº2 CCiv: na verdade, nos termos do disposto no artº 281º CCiv, o negócio jurídico cujo fim seja contrário à lei ou à ordem pública é nulo, quando tal fim seja comum a ambas as partes.

Tudo visto, a simulação relativa do contrato em referência, misto de permuta e de compra e venda, encontrar-se-ia afectado pela simulação relativa, no respeitante ao preço pago, o que não importaria a invalidade do negócio dissimulado (artº 241º nºs 1 e 2 CCiv), relevando o preço efectivamente convencionado entre as partes.

Nada obstava assim à prova dos factos constantes das alíneas H), I) e J), conforme doutamente decidido."

[MTS]