02/06/2020

Eficácia da decisão penal no processo civil: a "solução O. J. Simpson" do art. 624.º, n.º 1, CPC



1. O art. 624.º, n.º 1, dispõe o seguinte:

A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.

Este preceito suscita alguma perplexidade, dado que o recurso à presunção legal parece querer ressuscitar a construção oitocentista do caso julgado como "presunção de verdade". Com efeito, apesar de inserido na matéria reguladora do caso julgado, o preceito não estabelece que o caso julgado penal absolutório vale como tal "em quaisquer acções de natureza civil", mas antes, ainda que entre as mesmas partes do processo penal, como "simples presunção legal da inexistência desses factos".

Trata-se, como resulta da parte final do preceito, de uma presunção iuris tantum. Isto significa que, apesar de o tribunal criminal ter considerado não provados certos factos, se admite que estes factos possam vir a ser provados numa posterior acção civil, mesmo que esta decorra entre as mesmas partes. Supõe-se que o preceito não comporta outra interpretação.

2. A acção civil que pode vir a decorrer após o processo penal que terminou com uma decisão absolutória por falta de provas será, na maior parte dos casos, uma acção de indemnização. Isto conduz às seguintes soluções:

-- Se a indemnização civil for pedida, como impõe, em regra, o art. 71.º CPP, na própria acção penal, é claro que o tribunal criminal está vinculado aos factos que ele próprio considerou não provados (o que, note-se, não significa que o pedido de indemnização não possa ser julgado procedente);

-- Se a indemnização civil for solicitada, como o permite o art. 72.º CPP, fora do processo penal, o disposto no art. 624.º, n.º 1, CPC (que então encontra o seu verdadeiro campo de aplicação) impõe que o tribunal civil não esteja vinculado à decisão do tribunal penal e, portanto, que, na acção civil, possam ser considerados provados factos que não foram dados como provados na acção penal.

Quer dizer: a mesma indemnização, mas dois regimes distintos em função apenas da forma pela qual a indemnização é pedida em juízo. Em suma: um regime incoerente.

3. O art. 623.º CPC é o pendant do art. 624.º, n.º 1, CPC para a sentença penal condenatória. Estabelece-se aí o seguinte:

A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.

Em relação ao art. 624.º, n.º 1, CPC, o art. 623.º CPC apresenta uma diferença fundamental: é que este preceito se refere, como logo se adverte na sua epígrafe, à oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória. Portanto, a contrario sensu, o que o tribunal penal tiver decidido vale em qualquer acção civil que venha a decorrer entre as mesmas partes.

Poder-se-ia procurar fazer uma outra interpretação do art. 623.º CPC: se a sentença penal condenatória constitui para terceiros presunção ilidível dos factos que integram a punição, então, a contrario sensu, para as partes essa sentença nem sequer constitui essa presunção. Esta interpretação não é evidentemente aceitável, pois que não se pode imaginar que a sentença condenatória tenha uma maior força para terceiros do que para as próprias partes do processo penal.

Portanto, o que está subjacente ao disposto no art. 623.º CPC é que o caso julgado da sentença penal condenatória vale como tal entre as partes do processo penal. Para terceiros, não podendo (por opção do legislador) valer como caso julgado, vale como como presunção ilidível. Noutros termos: o art. 623.º CPC parte do princípio de que a sentença condenatória é vinculativa para as partes (uma solução que não levanta nenhum óbice) e resolve, de acordo com a opção tomada pelo legislador, a força probatória dessa sentença em relação a terceiros.

4. a) Nas situações enumeradas no art. 72.º CPP, a indemnização civil pode ser solicitada no tribunal civil. A conjugação desta possibilidade com a vinculação das partes na posterior acção civil à sentença penal condenatória que está subjacente ao disposto no art. 623.º CPC contrasta com a não vinculação das mesmas partes à sentença penal absolutória que decorre do estabelecido no art. 624.º, n.º 1, CPC.

Quer dizer:

-- Se a sentença penal tiver sido condenatória, na posterior acção civil as partes estão vinculadas aos factos que foram considerados provados no processo penal (solução implícita no art. 623.º CPC, dado que o preceito só trata da força probatória da sentença penal para terceiros);

-- Se a sentença penal tiver sido absolutória, as partes não estão vinculadas aos factos que foram considerados não provados no processo penal (solução expressa do art. 624.º, n.º 1, CPC).

b) Não se vislumbra nenhuma justificação para esta diferença de regimes, aliás geradora de uma desigualdade entre as partes:

-- O acusado que foi condenado no processo penal não pode procurar demonstrar na posterior acção civil que os factos dados como provados no processo penal não são verdadeiros; o acusado condenado só tem uma oportunidade de demonstrar que os factos não são verdadeiros;

-- O lesado que não deduziu o pedido de indemnização na acção penal pode, mesmo após a absolvição do acusado, procurar demonstrar na posterior acção civil que os factos dados como não provados no processo penal são verdadeiros; o lesado tem duas oportunidades de demonstrar que os factos são verdadeiros.

Recorde-se que esta solução foi precisamente aquela que, no sistema norte-americano, foi dada ao célebre Caso O. J. Simpson: absolvição no processo penal e condenação no processo civil. Note-se que não há nenhuma incoerência na absolvição penal e na condenação civil, dado que, apesar de não ter havido crime, pode haver justificação para a condenação civil; o que não é coerente é proferir uma absolvição penal e uma condenação civil com base nos mesmos factos, que uma vez são considerados não provados e outra vez são julgados provados.

5. Uma observação a latere: como nunca se sabe se o tribunal criminal vai proferir uma decisão condenatória ou absolutória do acusado e porque, mesmo que venha a proferir uma decisão absolutória, o lesado não está impedido de vir a provar que os factos não provados no processo penal são verdadeiros, do disposto no art. 624.º, n.º 1, CPC resulta que não há, em rigor, nenhuma prejudicialidade da acção penal em relação à acção respeitante à indemnização civil. A bondade desta solução -- que é um corolário lógico da "solução O. J. Simpson" do art. 624.º, n.º 1, CPC -- é mais do que discutível.

6. Pode concluir-se que o disposto no art. 624.º, n.º 1, CPC é duplamente incoerente porque:

-- Cria uma duplicidade de regimes quando a decisão penal é absolutória (o que vale dentro do processo penal não vale fora dele);

-- Cria uma duplicidade de regimes entre a decisão penal absolutória e a decisão penal condenatória (a não vinculação das partes à decisão absolutória contrasta com a sua vinculação à sentença condenatória).

7. As reflexões anteriores foram motivadas pelo Ac. RC 4/3/2020 (269/17.1T9LMG.C1). A RC decidiu bem que, na apreciação do pedido de indemnização civil, o tribunal da acção penal está vinculado aos factos por ele apurados. Fica-se, no entanto, com a ideia de que a RC aceita como perfeitamente normal que o que não pode ser discutido no processo penal pendente possa vir ser discutido num processo civil posterior, como decorre das seguintes afirmações:

"Não recorrendo da sentença o titular ou titulares da ação penal, não pode continuar a discutir-se, no mesmo processo, a questão nuclear do processo – o facto ilícito, fundamento da responsabilidade criminal e cível - sob pena de insofismável desrespeito por uma decisão proferida no mesmo processo, transitada em julgado, com base no mesmo tipo de culpa meramente negligente.

Sem prejuízo do disposto no art. 624º do CPC que supõe um novo processo, com partes diferentes [sic], novos fundamentos, sujeitos a nova discussão e apreciação.

Outro entendimento levaria a abrir no processo penal um novo processo civil que levaria, aliás, a consequências imprevisíveis, propiciando não só contradição de julgados, como prolongando o processo penal para efeitos para os quais não está traçado."

Ora, é precisamente isto que, como se julga ter demonstrado, é duplamente incoerente.

MTS