01/06/2020

Jurisprudência 2019 (249)


Hipoteca; 
alienação do bem dado em garantia; inopobilidade


1. O sumário de STJ 17/12/2019 (3294/11.2TBBCL.G1.S1) é o seguinte:

Se, à data da celebração do contrato de mútuo com hipoteca, a pessoa que assume a posição de garante não tiver legitimidade para alienar o bem dado em garantia, esta é ineficaz em relação ao titular do respectivo direito sobre esse bem.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. Na presente ação, o autor pediu, no que releva para a decisão desta revista, que se declare a falsidade/nulidade/anulação de dois contratos de mútuo, com hipoteca, que a 1ª ré, em nome próprio e em representação do autor, celebrou com o Banco EE, SA. E que, em consequência, se ordene o cancelamento das inscrições hipotecárias efetuadas com base naqueles títulos.

Na 1ª instância, foi declarada a ineficácia dos aludidos contratos em relação ao autor, por terem sido celebrados pela 1ª ré com base em procuração que se provou ser falsa. No tocante às hipotecas foi igualmente declarada a sua ineficácia, em relação ao património comum do ex-casal, constituído pelo autor e pela 1ª ré, tudo por aplicação do n° 1 do art. 268° do Código Civil.

A Relação, porém, julgando nesta parte procedente o recurso de apelação interposto pelo autor, declarou a nulidade das hipotecas e ordenou o cancelamento dos respectivos registos, ao abrigo do disposto no art. 280º, do CC, por entender que recaíam sobre objeto legalmente impossível.

Nesta revista, o Banco EE não questiona a verificação de uma situação de representação sem poderes relativamente ao autor, mas apenas, no que toca às hipotecas constituídas, a consequência jurídica a extrair por quem não tinha legitimidade substantiva para onerar o bem dado em garantia. Pretende, assim, a revogação do acórdão recorrido, nessa parte, repristinando-se o decidido na 1ª instância.

Afigura-se-nos que a razão está do lado da recorrente.

Com efeito:

Decorre da factualidade provada que o autor e a 1ª ré casaram entre si em 8.1.1995, no regime de comunhão de adquiridos, divorciando-se em 3.2.2003 (cf. ponto 1, dos factos provados).

Provou-se também que, em 13.11.2008, a 1ª ré, por si e como procuradora do autor, celebrou os contratos de mútuo com hipoteca com o Banco EE, S.A., confessando-se ambos devedores da quantia neles referida e dando de hipoteca, para garantia do pagamento, o prédio urbano identificado nos autos (cf. ponto 13, dos factos provados).

Ficou ainda provado que o património comum do ex-casal, não partilhado à data da celebração dos aludidos contratos de mútuo, era constituído pelo prédio urbano sobre o qual incidiram as hipotecas (cf. pontos 1 e 2, dos factos provados).

Ora, a alienação e oneração de bens imóveis comuns dos cônjuges carece da intervenção de ambos (por si ou representados por procurador, munido de poderes de representação) ou de um só deles, desde que obtido o consentimento do outro (art. 1682º-A, do CC).

Por sua vez, a sanção para a infração ao disposto no art. 1682º-A do CC, está prevista no art. 1687º, do mesmo Código, ao prescrever que os actos praticados são anuláveis, nos termos ali mencionados.

Este mesmo regime se deve aplicar após o divórcio e enquanto os bens se mantiverem numa situação de indivisão, pois, não obstante a extinção do vínculo conjugal implicar o fim das relações patrimoniais entre os cônjuges (arts. 1788º e 1789, nº1, do CC), os bens comuns mantêm essa qualidade até à liquidação e partilha, pois só ela põe termo à comunhão. [Neste sentido, Cristina M. Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora.] [...]

Por seu turno, relativamente à hipoteca voluntária (art. 712º, CC), estabelece-se no art. 715º, do CC que “só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens”.

É, portanto, de concluir que a 1ª ré, sem a intervenção ou o consentimento do ora autor, seu ex-marido, e sem dispor de poderes de representação, como se provou ter acontecido no caso dos autos, não podia ter constituído as hipotecas sobre o imóvel que integrava o património comum do ex-casal.

Assim, em conformidade com o disposto no art. 268º, do CC, e independentemente da boa fé do beneficiário do direito real de garantía, o negócio jurídico da hipoteca é, face ao detentor da legitimidade substantiva para alienar/onerar, «res inter alios acta», ou seja, insusceptível de produzir quaisquer efeitos sobre o património em causa. Em suma: ineficaz. [Sobre esta problemática, cf., entre outros, os acs do STJ de 6.5.2008, proc. nº 08A1056 (Alves Velho), in www.jusnet.com e de 29.3.2012, proc.2441/05 (Hélder Roque), in ECLI:PT:STJ:2012:2441.05.8TBVIS.C1.S1.3E]

É que, enquanto a nulidade é uma forma de ineficácia, em sentido amplo, pressupondo uma falta ou irregularidade, quanto aos elementos internos ou essenciais do negócio (falta de capacidade, falta ou defeito da declaração de vontade, impossibilidade física ou legal do objeto), a ineficácia, em sentido estrito, baseia-se na falta ou irregularidade de outra natureza [Cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, pág. 411.], não já de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas antes de alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação de facto produtiva de efeitos jurídicos (falta de titularidade do direito de que se dispôs ou onerou, falta de registo relativamente a terceiros, etc.) [Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 4ª edição, págs. 615 a 617].

Diga-se, por fim, que muito embora a hipoteca de coisa alheia se reja, essencialmente, pelo regime da venda de coisa alheia, a celebração do negócio constitutivo da hipoteca sobre o prédio urbano nestes autos, não se encontra sujeita à aplicação do estipulado no artigo 892º, do CC (ex vi do art. 939º, do mesmo Código), desde logo porque a 1ª ré não é a única titular do respectivo direito sobre o imóvel hipotecado, nem interveio nos actos de constituição de hipoteca nessa qualidade."

[MTS]