29/06/2020

Jurisprudência 2020 (19)


Acompanhamento de maior;
pressupostos; requisitos


1. O sumário de RL 4/2/2020 (3974/17.9T8FNC.L1-7) é o seguinte:

I - A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições: - uma positiva (princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e uma das medidas enumeradas no Art.º 145, n.º 2 do C.C., sendo que na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento; - uma negativa (princípio de subsidiariedade): a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência, nomeadamente de âmbito familiar (Art. 140.º, n.º 2, C.C.), não devendo o tribunal decretar essa medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.

II - A regra geral é de reconhecer a capacidade da pessoa humana para exercer de forma livre os seus direitos pessoais (Art. 147.º n.º 2 do C.C.), sendo as restrições ou limitações ao seu exercício a exceção, que sempre deverá ser bem fundamentada.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. Da adequação das medidas de acompanhamento de maior constantes da sentença recorrida.

A presente ação tinha por finalidade inicial a declaração de interdição da Requerida, por anomalia psíquica e a instauração da tutela, nos termos do Art. 141.º e 152.º a 156.º do C.C., instituto que foi revogado pela Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, que criou o regime do maior acompanhado.

A Lei n.º 49/2018, que entrou em vigor em fevereiro de 2019 (Art. 25.º), alterou não apenas o Código Civil e o Código de Processo Civil, mas dezassete outros diplomas que se reportavam a pessoas na situação de interditas ou inabilitadas, tendo imediata aplicação aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, devendo os juízes utilizar os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes (Art. 26.º n.ºs 1 e 2).

Houve uma alteração de paradigma na rigidez do anterior sistema que assentava em duas figuras (interdição e inabilitação) que limitavam a capacidade de exercício do requerido de forma estanque e pré-definida na lei. Esse sistema deu lugar à uma figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação e das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto. Onde antes a regra era a da incapacidade de exercício, agora é a da capacidade.

Conforme refere Pinto Monteiro, a pergunta agora já não é “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, mas “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que ela exerça a sua capacidade jurídica?”. Parte-se de uma ideia de capacidade, para dotar a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais — e sempre tendo em conta as particularidades de cada atuação ou domínio de atuação — em que dela careça. A solução já não é generalizante, procurando, pelo contrário, preservar até ao limite a possibilidade de atuação autónoma do sujeito. No fundo, pretende-se proteger sem incapacitar» (Mafalda Miranda Barbosa in “Maiores Acompanhados: da Incapacidade à Capacidade?”, ROA, Ano 78, jan./jun. 2018, pág. 236, a obra que cita de A. Pinto Monteiro é O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar sobre o futuro).

O Prof. António Pinto Monteiro (in RLJ, Ano 148, n.º 4013, Secção de Legislação, “Das incapacidades ao maior acompanhado”, a pág. 72 e segs) refere que: «(…) a Lei n.º 49/2018 veio dar resposta positiva às preocupações que se faziam sentir no campo das incapacidades das pessoas com deficiência, com a consagração deste novo regime jurídico do maior acompanhado. A Lei acolheu a mudança de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e apoio. “Proteger sem incapacitar”, recorde-se, é a palavra de ordem do novo modelo. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso à representação legal quando, excecionalmente, não houver alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial. Temos hoje, pois, em vez do modelo do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, de substituição, temos hoje, dizia, um regime que segue um modelo flexível e monista, de acompanhamento ou apoio, casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade das pessoas e o seu poder de autodeterminação. É claro que o sucesso, na prática, deste novo modelo vai depender, em grande medida, dos tribunais, pela responsabilidade acrescida que o novo regime lhes atribui, na definição - e revisão – das medidas adequadas a cada deficiente, a cada situação! É esta mais uma tarefa que a lei confia aos tribunais, no desempenho da nobre missão de servir a vida!»


O mesmo autor escreve ainda (a fls. 80 da citada R.L.J) que: «Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na atual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes». E ainda (a fls. 72 e 73) que: «É claro que há razões de fundo, razões que estiveram presentes na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica, também de um ponto de vista social foram vários os apelos – entre nós e por esse mundo fora - a uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais, ou com quaisquer outras limitações que afetem a sua capacidade jurídica. Essa tomada de consciência deu corpo a um movimento internacional de peso. A este respeito, impõe-se mencionar a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009, de 30 de Julho), bem como o respetivo Protocolo Adicional, adotado pelas Nações Unidas na mesma data de 30 de Março de 2007 (e aprovado pela Resolução da AR nº 57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 72/2009, de 30 de Julho).»

Miguel Teixeira de Sousa (fls 51 da apresentação realizada no CEJ, em 11/12/2018, no âmbito da ação de formação “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado” - O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos Processuais), refere que: «A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:

- Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no Art.º 145, n.º 2 do C.C.; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;

- Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (Art. 140.º, n.º 2, C.C.), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.».

Assim, atualmente, o Art. 138 do CC, com redação da Lei 49/2018, é epigrafado “Acompanhamento” e estabelece que: «o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código». [...]

No pedido final formulado nas alegações de recurso foram diretamente postas em causa as medidas constantes dos pontos 1.9 a 1.12 da parte dispositiva da sentença recorrida.

No ponto 1.9 foi condicionado o exercício de direitos pessoais, nos termos do Art. 5.º n.º 3 da Lei de Saúde Mental (Lei 36/98 de 24/7).

No ponto 1.10 foi condicionado o exercício de providência referidas no Art. 13.º da mesma Lei de Saúde Mental.

No ponto 1.11 limitou-se o exercício do direito de aceitar ou rejeitar liberalidades a favor da beneficiária.

No ponto 1.12 autorizou-se o internamento da beneficiária na Casa de Saúde Câmara Pestana, no Funchal, que é o local onde reside.

Está em causa o Art. 147.º n.º 1 do C.C. que [...] estabelece que a regra geral é do livre exercício dos direitos pessoais pelo maior acompanhado, fazendo no n.º 2 uma enumeração não exaustiva desse tipo de direitos.

Começando pelo ponto 1.9 da sentença recorrida, temos de referir que a sentença não estabeleceu uma limitação genérica para o exercício de todos e quaisquer direitos pessoais da beneficiária do regime de acompanhamento. A sentença só restringiu os direitos pessoais mencionados no Art. 5.º n.º 3 da Lei 36/98 de 24/7.

Estabelece essa norma que: 

«3 - Os direitos referidos nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 são exercidos pelos representantes legais quando os doentes sejam menores de 14 anos ou maiores acompanhados e a sentença de acompanhamento não faculte o exercício direto de direitos pessoais».

Por seu turno, nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 estão previstos os seguintes direitos aos utentes dos serviços de saúde mental:

«c) Decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas propostas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiros;

«d) Não ser submetido a electroconvulsivoterapia sem o seu prévio consentimento escrito;

«e) Aceitar ou recusar, nos termos da legislação em vigor, a participação em investigações, ensaios clínicos ou atividades de formação».

Dos factos provados resulta que a Requerida padece de esquizofrenia paranoide e apresenta delírio, o que assume gravidade tal que a incapacita de governar a sua pessoa e bens, ainda que tenha suficiente autonomia para os seus cuidados de higiene, andando sem apoio, falando de forma percetível e com perfeita noção do tempo e do espaço. No entanto, como não se indicia que possam estar sequer em causa a possibilidade de alguma das intervenções ou terapêuticas a que se reporta o Art. 5.º n.º 3 da Lei de Saúde Mental, não vemos que faça sequer sentido essa limitação seja estabelecida, sem prejuízo da reavaliação da situação nos termos do Art. 155.º do C.C..

Passando ao ponto 1.10, uma vez mais a limitação estabelecida na sentença recorrida reporta-se apenas às providências referidas no Art. 13.º da Lei de Saúde Mental, que trata da matéria da legitimidade para requerer o internamento compulsivo.

Decorre desse preceito que: 

«1- Tem legitimidade para requerer o internamento compulsivo o representante legal do menor, o acompanhante de maior quando o próprio não possa, pela sentença, exercer direitos pessoais, qualquer pessoa com legitimidade para requerer a instauração do acompanhamento, as autoridades de saúde pública e o Ministério Público.

«2 - Sempre que algum médico verifique no exercício das suas funções uma anomalia psíquica com os efeitos previstos no artigo 12.º pode comunicá-la à autoridade de saúde pública competente para os efeitos do disposto no número anterior.

«3 - Se a verificação ocorrer no decurso de um internamento voluntário, tem também legitimidade para requerer o internamento compulsivo o diretor clínico do estabelecimento.»

Quanto a este aspeto, da matéria de facto só decorre que a Requerida está a residir numa Casa de Saúde e sofre duma doença do foro psiquiátrico. Não resulta daqui que tenha havido, ou sequer se coloque a questão, do internamento compulsivo. Não está também evidenciada uma ausência total de consciência por parte da Requerida que não lhe permita exercer esse direito, sendo que se algum dia a questão se colocar de forma premente, perante uma situação de saúde mental mais grave, a Lei de Saúde Mental estabelece um naipe de soluções suficientemente amplo que salvaguardará o caso. Pelo que, também este ponto 1.10 deverá ser excluído.

Diretamente relacionado com esta última situação está o ponto 1.12 da sentença recorrida, que se refere à autorização dada pelo tribunal para o internamento, tendo em atenção o disposto no Art. 148.º do C.C.. A questão coloca-se precisamente nos mesmos termos da anterior. Não decorre dos autos a necessidade premente do internamento. O que decorre dos autos é apenas que a mesma se encontra numa “Casa de Saúde”, onde reside.

Se a Requerida reside na “Casa de Saúde”, trata-se de situação voluntária que não exige autorização do tribunal. Mas se a questão do internamento se vier a colocar, poderá ser oportunamente decidida, nos termos do n.º 2 do Art. 148.º do C.C..

Passando ao ponto 1.11, refere-se o mesmo à limitação da capacidade para aceitar ou rejeitar liberalidades, nos termos do Art. 4.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 272/2001 de 13/10.

Estabelece esse preceito que: 

«1- São da competência do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de notificação do representante legal para providenciar acerca da aceitação ou rejeição de liberalidades a favor de incapaz menor ou de maior acompanhado que, nos termos da sentença de acompanhamento, não o possa fazer pessoal e livremente.»

Quanto a esta matéria o único facto relevante é o constante do ponto 4 dos factos provados. Resulta desse ponto que a Requerida sofre de patologia tal, de caráter permanente e de tal modo grave que a torna incapaz de governar os seus bens. O que, a nosso ver, é insuficiente para se estabelecer a limitação mencionada no ponto 1.11.

Mas para além do pedido constante do final das alegações de recurso, o Ministério Público, aqui Recorrente, pôs ainda em causa as limitações constantes dos pontos 1.7 e 1.8 da sentença recorrida, sobre as quais incide grande parte das conclusões do recurso.

No 1.7 a sentença recorrida impede a Requerida de casar, considerando que a doença mental verificada constituiria impedimento dirimente, nos termos do Art. 1601.º al. b) do C.C.. Já no ponto 1.8 impede a Requerida da atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou morte, fundados em união de facto.

Sucede que, apenas a “demência notória”, que não se demonstra ser ainda o caso, constitui impedimento dirimente absoluto para casar, nos termos do Art. 1601.º al. b) do C.C..

Repita-se, só excecionalmente, com fundamentação relevante, ponderando o supremo interesse do acompanhado, se poderá coartar por decisão judicial o exercício de direitos pessoais. Entre esses direitos pessoais estão precisamente os de casar, constituir família ou viver em união de facto (Art. 147.º n.º 2 do C.C.). Para além de que são direitos fundamentais que assistem a todos os cidadãos, com tutela constitucional nos Art.s 36.º n.º 1 e 67.º da nossa Constituição.

A doença de esquizofrenia paranoide, com delírios, pode ser controlada por via medicamentosa e pode não se traduzir numa situação de “demência notória” que justifique as limitações estabelecidas na sentença recorrida.

Em suma, concordando nesse aspeto com as conclusões das alegações de recurso, fundamentalmente julgamos que a matéria de facto provada é insuficiente para justificar a subsistência dos pontos 1.7 a 1.12 da sentença, que assim deve ser alterada nessa parte, eliminando-se essa parte dispositiva da decisão recorrida."

[MTS]