02/07/2020

Jurisprudência 2020 (22)


Prova pericial; documentos em poder da parte contrária;
substituição processual*


I. O sumário de RL 6/2/2020 (492/18.1T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:

1– A pertinência da perícia, como de resto sucede com os outros meios de prova, está relacionada com o chamado objecto da prova que consiste no conjunto dos factos alegados pelas partes, que interessam à discussão da causa segundo as várias soluções de direito plausíveis, constituindo o substrato factual do thema decidendum.

2– No âmbito da acção pauliana, a impossibilidade a que se refere o artº 610º al. b) do CC, afere-se através da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar: o cálculo dos bens do devedor reporta-se apenas aos que integram o património desse devedor por serem eles que garantem a satisfação do crédito do credor impugnante.

3– Por isso, existindo devedores solidários, somente importa a situação do património do devedor no qual se integrava o bem sobre que recaiu o acto impugnado, irrelevando o património dos demais devedores solidários.

4– A esta luz, é impertinente, para efeitos de aferir daquela impossibilidade, a realização de perícia com vista a determinar o valor de bens de outros devedores solidários.

5– A cessão do crédito do impugnante na pendência de acção pauliana, é irrelevante para efeitos de determinação/alteração do valor desse crédito; isto porque a cessão de créditos apenas opera uma modificação subjectiva do titular do crédito: o que é transmitido é o direito do credor à prestação debitória tal como ela existia na esfera do cedente.

6– O deferimento da junção de documento em poder da parte contrária está dependente da efectiva necessidade e da pertinência da junção: impõe-se que a parte que pretenda a cooperação do tribunal justifique, de forma convincente, que não consegue obter esses elementos e, que deles carece efectivamente para uma finalidade processual.

7– Assim, é de indeferir o pedido do réu de notificação à parte contrária para juntar cópia de contrato da cessão de crédito, justificando, vagamente, pretender o documento para equacionar a possibilidade de deduzir incidente de habilitação de cessionário. (Sumário elaborado pelo Relator)

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2– O Indeferimento da notificação da autora e da “HG PT” para juntarem documentos aos autos.

Segundo o apelante, a junção de tais documentos e o esclarecimento do “preço” da cessão de créditos e do respectivo pagamento é relevante para a boa decisão da causa e da marcha do processo porque: (i) permite aferir qual o valor actualmente em dívida; (ii) faculta aos réus as informações necessárias a instaurarem incidente de habilitação de cessionário.

Na contra-alegação a autora responde que a cessão dos seus créditos a terceiros é irrelevante para a determinação do valor da dívida para efeitos da impugnação pauliana.

Vejamos então.

No requerimento em que solicita a notificação da autora e da “HG PT” para juntarem cópias dos contratos de cessão de créditos e informarem os respectivos preços e datas de pagamento, o réu justifica esse pedido com duas razões: (i) ser relevante para a decisão da causa por permitir aferir qual o valor actualmente em dívida; (ii) ser relevante para o bom andamento da causa por facultar aos réus as informações necessárias a instaurarem incidente de habilitação de cessionário.

A 1ª instância, no despacho que indeferiu a solicitadas notificações da autora e da terceira, escreveu que:

“Estabelece o artº 263º, nº1, do CP Civil que: “No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”.

Caso não o adquirente não intervenha no processo, nem por isso a sentença deixará de produzir efeitos relativamente ao mesmo – nº 3 do artigo em causa.

Deste modo, não resulta que as diligências requeridas assumam relevância para a decisão dos presentes autos, pelo que se indefere o requerido.”

Vejamos então.

3.2.1–Da relevância da junção para a determinação do valor actual da dívida.

Ora bem, no que toca à pretendida relevância para a acção pauliana da junção dos contratos e prestação das informações quanto ao preço da cessão dos créditos e datas dos respectivos pagamentos, com vista a determinar qual o valor actual da dívida, é fácil perceber que aquelas informações não interessam para a boa decisão da causa, concretamente, para determinar o valor actual da dívida.

Na verdade, o contrato de cessão de créditos tem por efeito a transmissão do direito à prestação (Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª edição, Almedina, pág. 317 e segs.). Quer dizer a cessão de créditos apenas opera uma modificação subjectiva do titular do crédito, deixando intocado o crédito designadamente quanto ao seu valor. Com a cessão as partes visam transferir para o cessionário o mesmo direito de que era titular o cedente e não constituir um novo direito de crédito. O que é transmitido é o direito do credor à prestação debitória tal como ela existia na esfera do cedente.

Por conseguinte, o pagamento do preço da cessão irreleva para a prestação debitória transmitida: o direito ao crédito permanece como existia.

Daqui se conclui que contrariamente ao que pretende o réu/apelante, não tem qualquer relevância para o thema decidendum e por conseguinte para determinar o “valor actual da dívida” a pretendida junção dos contratos de cessão de créditos e a indicação do preço e datas de pagamento.

3.2.2– A necessidade da junção para instauração de incidente de habilitação de cessionário.

Deveria ter sido ordenada a junção das cópias dos contratos com vista a que os réus instaurassem (eventualmente) o incidente de habilitação de cessionário?

Não merece dúvidas que no caso de cessão do crédito em litígio, o cedente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o cessionário não for admitido a substituí-lo por meio do incidente de habilitação (artº 263º nº 1 do CPC).

Igualmente, não merece contestação que a parte contrária à cessão de créditos, o cedido, tem legitimidade para promover o incidente de habilitação (artº 356º nº 2, 1ª parte, do CPC). Ou seja, à partida, o réu em acção de impugnação pauliana tem legitimidade para deduzir incidente de habilitação do cessionário do crédito que está na base da acção pauliana.

Do mesmo modo, não merece contestação que a instauração do incidente de habilitação do cessionário pelo cedido carece de ser instruído com o título da cessão (artº 356º nº 1, al. a), do CPC). E é certo que o cedido não é parte no contrato de cessão e, por isso, carece de obter o título de cessão para poder promover o incidente.

Se as partes no contrato de cessão de créditos, não juntaram cópia desse contrato com a notificação da cessão de créditos – e, em rigor, não terão de o fazer (sobre a questão veja-se, para outros desenvolvimentos, Assunção Cristas, Transmissão Contratual do Direito de Crédito, colecção teses, Almedina, pág. 97 e segs) – o cedido, em tese, poderá solicitar à parte que lha remeta.

E se as partes no contrato de cessão de créditos, cedente e cessionário, não disponibilizarem ao cedido cópia do título de cessão?

Pois bem, em princípio, a lei faculta ao cedido meios para obter cópia desse título de cessão.

Na verdade, nos termos gerais do artº 429º nº 1 do CPC, pretendendo uma das partes fazer uso de documento em poder da parte contrária, pode o interessado requerer que ela seja notificada para apresentar o documento.

No entanto, essa junção de documento em poder da parte contrária só é deferida se o que se pretende provar tiver interesse para a decisão da questão (artº 429º nº 2 do CPC).

Portanto, o deferimento da junção de documento em poder da parte contrária está dependente da necessidade e da pertinência da junção.

Aliás, este artº 429º do CPC está relacionado com o princípio da cooperação, na vertente do poder-dever do juiz auxiliar qualquer das partes na remoção de obstáculo, estabelecido no artº 6º nº 4 do CPC.

Na verdade, compete ao juiz providenciar pela ultrapassagem de dificuldades de qualquer das partes em obter documentos ou informação que condicione o exercício de uma faculdade, ónus ou dever processual.

Porém, não é qualquer pedido da parte que merece atendimento: impõe-se que a parte que pretenda a cooperação do tribunal justifique, de forma convincente, que não consegue obter esses elementos e, que deles carece efectivamente para alguma finalidade processual. Mais uma vez, a obtenção de cooperação, está dependente da necessidade e da pertinência.

Ora, no caso dos autos, apesar de o réu fazer referência, no requerimento em que solicita a notificação da autora e da terceira para juntarem cópia dos contratos de cessão de créditos, a verdade é que não justifica convincentemente carecer desses elementos. Com efeito, refere, vagamente, pretender os documentos para equacionar da possibilidade de deduzir o competente incidente de habilitação [...]

Ou seja, a esta luz, tem de concluir-se que o pedido de junção de documentos não está justificado pelos princípios da necessidade e pertinência. E assim, não se justifica deferir a pretendida notificação da autora e de terceira para juntarem os documentos.

Por conseguinte e concluindo: não havia fundamento para ordenar a notificação da autora e de terceira para juntarem os contratos de cessão de créditos."

*III. [Comentário] Neste interessante acórdão seleccionou-se para este breve comentário o aspecto relativo ao pedido de junção de documentos em poder da parte contrária e de terceiros.

O disposto nos art. 429.º e 432.º CPC deve ser lido em conjunto com o disposto no art. 573.º CC quanto à obrigação de informação. O critério é, pois, o da dúvida fundada acerca da existência do direito ou do seu conteúdo.

Deveria ter sido este o critério que a RL devia ter utilizado. Se a utilização deste critério -- mais flexível do que aquele que a RL utilizou -- teria conduzido a uma solução diferente daquela a que se chegou no acórdão, isso é coisa que só um conhecimento aprofundado do processo poderia justificar.

MTS