07/07/2020

Jurisprudência 2020 (25)


Litigância de má fé;
multa; fixação

1. O sumário de RG 30/1/2019 (100/17.8T8VRM.G1) é a seguinte:

I- Deve ser sancionada à luz da litigância de má-fé a conduta processual dos autores que basearam a demanda na alegação de determinada versão dos factos cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer por se mostrar de todo incompatível com os factos que resultaram provados e que consubstanciam factos pessoais que não podiam deixar de ter conhecimento, revelando-se ainda essenciais à verificação dos pressupostos ou requisitos constitutivos do direito invocado;

II- A propósito dos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé importa considerar o que estabelece o artigo 27.º, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (n.º 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (n.º 4 do citado preceito legal), importando, assim, ponderar o grau de má-fé revelado, as consequências processuais inerentes e as condições económicas dos litigantes de má-fé;

III- Na falta de elementos atinentes às condições económicas e à situação financeira dos autores/litigantes de má-fé afigura-se razoável e proporcional às circunstâncias do processo ponderar o valor da ação.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso presente, e tal como sublinhou a sentença recorrida, «[a] versão carreada para os autos pelos autores e que pretenderam ver confirmada pelas testemunhas por si arroladas foi totalmente desconstruída pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelos réus, as quais confirmaram, de forma clarividente e segura para o Tribunal que no lugar de ..., freguesia de ... sabia-se que a proprietária da Cortinha ... era a 2.ª ré, B. C., facto que igualmente era do conhecimento dos autores, tanto mais que a tia da autora mulher, a falecida D. …, fabricou aquele terreno durante anos e pagava a renda na Casa ..., em géneros, destinam-se os mesmos à 2.ª ré, B. C.. Foi ainda claramente demonstrado que os autores ocuparam e utilizaram a Cortinha ..., cultivando-o, podando, plantando e semeando milho, batata e produtos hortícolas, que colhiam em proveito próprio não entregando o que quer que fosse quer à 1.ª ré, quer à irmã, já falecida, M. J., conhecida como M. J.. E ficou perfeitamente demonstrado que essa utilização era feita sem qualquer título e sem autorização da ré B. C., a qual apesar de ter tido conhecimento mais tarde, por mero favor e tolerância autorizou que os autores aí mantivessem as ovelhas, sendo que o cultivo do campo foi feito por estes por iniciativa própria e apenas assim permaneceu durante anos, primeiro por desconhecimento da sua proprietária e depois, como se referiu supra, por mero favor ou tolerância». Na verdade, pelos autores vinha inicialmente invocada a sua qualidade de arrendatários do prédio rústico denominado “Cortinha ...”, [...], por via de um contrato de arrendamento celebrado há cerca de 15 anos por M. J., com início a 1 de Janeiro de 2003, mais sustentando que, na altura, a proprietária do terreno, alegou que mais tarde reduziriam o contrato a escrito. Mais alegaram, no essencial, que desde aquela data passaram a fazer a exploração agrícola do referido prédio, colhendo seus proventos, utilidades e produções e também para pasto de algumas ovelhas, mediante o pagamento de uma renda anual de € 50,00, na casa da senhoria. Mais defenderam que a 1.ª ré e a anterior proprietária M. J., sabia e reconhecia os autores como arrendatários do prédio rústico “Cortinha ...” e, consequentemente, que tinham preferência na respetiva compra, concluindo que a 1.ª ré não cumpriu a obrigação de comunicação da venda, do preço e das suas cláusulas essenciais, tendo os autores tomado conhecimento dos elementos essenciais do negócio, designadamente do nome dos compradores, do preço e das condições de pagamento, em 23-01-2017 quando se deslocaram ao Cartório Notarial ....

Ora, compulsando o que resulta dos factos provados quando em confronto com a matéria factual que foi reconduzida aos factos não provados, tal como constam da fundamentação da decisão recorrida - a qual não foi impugnada nesta vertente e, como tal, não está em causa no âmbito do presente recurso -, resulta indiscutível que os autores não lograram comprovar o núcleo essencial dos factos que sustentavam a tese que carrearam para os autos. Ao invés, o que se verifica mediante a análise dos factos que foram considerados provados [...] é que se provou uma versão dos factos que se mostra de todo incompatível com o alegado pelos autores em sede de petição inicial, ou seja, e tal como também se sintetizou na decisão recorrida, que «não lograram os autores, desde logo provar, como lhes incumbia, que eram arrendatários rurais do prédio denominado de “Cortinha ...”, desde 01 de Janeiro de 2003. Nem tampouco lograram provar que a falta de forma do alegado contrato de arrendamento rural (não redução a escrito) era imputável à contraparte.

Provou-se, outrossim, que estes apenas utilizavam o prédio denominado Cortinha ... cultivando e recolhendo os seus proveitos, por mera tolerância e favor da proprietária do mesmo, 1.ª ré».
[...]

Assim, atenta a natureza dos factos em apreciação e que vieram a provar-se, os quais consubstanciam factos pessoais que não podiam deixar de ser do conhecimento dos autores, não pode deixar de se concluir, tal como fez o Tribunal a quo que os autores deduziram, conscientemente, uma pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e apresentaram nos autos uma falsa versão da realidade ocorrida.

Por conseguinte, a conduta processual dos autores permite configurar uma alteração consciente da verdade dos factos, bem como a dedução de pretensão cuja falta de fundamento forçosamente conheciam, o que leva a qualificar tal comportamento à luz do disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), e b), do CPC, litigando, pois, com dolo caracterizador da litigância de má-fé. [...]

Atendendo ao objecto do presente recurso, a única questão que resta apreciar e resolver prende-se com o valor da multa devida pela litigância de má-fé, tal como fixada pelo Tribunal a quo na decisão recorrida.

Os recorrentes, nas respetivas alegações, expressam, além do mais, a sua discordância quanto ao quantitativo fixado para multa, o qual consideram manifestamente excessivo, pretendendo que o valor da multa deve ser fixado pelo mínimo legal previsto no n.º1 do artigo 27.º do RCP, alegando para o efeito que «[n]a fixação do montante da multa por litigância de má-fé tem de ter em consideração a maior ou menor intensidade do dolo com que tenham agido os recorrentes, que é diminuta, entendido este como a consciência da sua falta de razão e da gravidade das consequências prováveis da sua conduta, assim como os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica dos recorrentes, que é débil, a repercussão da condenação no património deste, e o valor baixo da ação € 5.000,01 e valor do prédio em causa € 500,00».

Neste domínio, verifica-se que a decisão recorrida condenou os autores, ora recorrentes, ao pagamento de uma multa equivalente a 8 (oito) unidades de conta, valor que considerou adequado atendendo aos factos que da mesma constam discriminados como provados e não provados, sustentando, além do mais, que os autores deduziram, conscientemente, uma pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e apresentaram nos autos uma falsa versão da realidade ocorrida.

A propósito dos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé importa considerar o que estabelece o artigo 27.º, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (n.º 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (n.º 4 do citado preceito legal).

A propósito do critério que deverá guiar o juiz na fixação do quantum da multa, dentro da moldura que lhe foi previamente fixada, refere Marta Frias Borges (Cfr., Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre),na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Processual Civil, 2014, Coimbra, pg. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt.), «De acordo com o art. 27º, nº 4 do RCP, deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má-fé no desenrolar do processo e na correta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, em consonância com aquilo que era já afirmado por ALBERTO DOS REIS quando, ainda na vigência do CPC39, aludia à necessidade de atender ao grau de má-fé e à situação económica do litigante. De facto, a multa por litigância de má-fé, como qualquer outra pena, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo».

A este propósito, salienta ainda o Ac. TRP de 26-02-2008 (relator: Vieira e Cunha) [P. n.º 0820769, disponível em www.dgsi.pt] «[a] multa devida por litigância de má fé deve ser fixada com base no “prudente arbítrio” do juiz, que deve sopesar a gravidade da infracção e a situação económica do infractor, a maior ou menor gravidade dos riscos de lesão patrimonial causada ao litigante de boa fé, os interesses funcionais do Estado e o valor da acção».

Ora, como vimos, os factos provados nos autos levam a concluir que os autores deduziram, conscientemente, uma pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e apresentaram nos autos uma falsa versão da realidade ocorrida, permitindo configurar que litigaram com dolo caracterizador da litigância de má-fé. Acresce constatar que a litigância de má-fé ocorre desde o momento de propositura da ação, permitindo assim concluir que configuraram dolosamente os factos que levaram a propositura da presente ação, com as consequências inerentes à relativamente complexa tramitação processual.

Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, consideramos que a atuação dos autores configura uma hipótese grave de litigância de má-fé pelo que, diversamente do que defendem os recorrentes, o montante da multa não pode fixar-se pelo mínimo legal - atualmente fixado em 2 UC (cfr. artigo 27.º, n.º 3 do RCP).

Porém, como se viu, importa ponderar que a justa fixação do montante da multa depende também das condições económicas e da situação financeira dos litigantes de má-fé, pelo que, na falta de elementos relevantes para o efeito, importa ponderar apenas o valor da ação, fixado em €5.000,01.

Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, à luz de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, consideramos que a fixação da multa no montante de 5 UC mostra-se adequada e proporcional às circunstâncias do processo e às finalidades da condenação, entendendo-se que o juízo de reprovabilidade em que ela assenta engloba já todos os reflexos da atuação dos autores na regular tramitação do processo."

[MTS]