15/07/2020

Jurisprudência 2020 (31)


Sociedades comerciais; passivo superveniente;
ónus da prova*

1. O sumário RL 12/2/2020 (3/05.9TTALM-B.L1-4) é o seguinte:

I - Os sócios-gerentes da Executada originária assumiram, por acordo judicial e em nome e representação da dita sociedade uma dívida no montante de 15.000,00 € para com o seu trabalhador e aqui Exequente e, não obstante nunca a haverem satisfeito, foram deliberar a dissolução e liquidação imediatas daquele ente coletivo e aí declarar (falsamente) que este último não tinha passivo, passando assim uma esponja por de cima do dito crédito laboral e também que não possuía ativo, não obstante terem inscrito em nome daquela três viaturas automóveis e terem vendido no dia 22/6/2006 e pelo preço de € 190.000,00 o imóvel onde aquele funcionava e liquidado apenas com tal importância dívidas ao Fisco e à Segurança Social no valor global de € 71.825,47, verificando-se assim uma diferença positiva para a aludida quantia de € 190.000,00 de € 118.174,53.

II - A Oponente deveria não somente ter alegado de forma circunstanciada, em termos de modo, tempo e lugar, como depois demonstrado em termos objetivos, fidedignos e fiáveis, conforme lhe exigia o correspondente ónus de alegação e prova que a referida verba de € 118.174,53 havia efetivamente sido consumida na liquidação de dívidas do ente societário e que, nessa medida, não tinha sobrado nada do referido montante, que pudesse ter sido partilhado pelos dois sócios-gerentes.

III - Não foi isso que aconteceu nesta Oposição à Execução, tendo ficado por saber o que aconteceu efetivamente ao valor de € 118.174,53, dúvida essa quanto à realidade desses factos que, nos termos do art.º 414.º do NCPC, se resolve contra quem aproveitaria ou beneficiária com os mesmos, ou seja, a Apelada.

IV - Sendo assim, não é possível concluir, como pretende a Apelada, que a sociedade não tinha qualquer ativo, na data da sua dissolução e liquidação e de que não foi partilhado entre ambos quaisquer bens ou quantias pecuniárias, pois, no mínimo – e dando de barato os três veículos automóveis da empresa extinta e a muito prolongada e significativa impossibilidade da sua apreensão efetiva por parte do solicitador de execução - existia aquela importância sobrante de € 118.174,53, cujo destino ficou por apurar. 

V - A extinção jurídica de tal ente societário e devedor originário do crédito laboral de € 15.000,00 assentou em falsas declarações, quer no respeita à inexistência de ativo, como no que concerne à liquidação oportuna de todo o passivo, declarações essas feitas pelos seus únicos dois sócios e gerentes, o que os faz incorrer, desde logo, na responsabilidade pela liquidação da quantia exequente em causa nos autos, quer por força da aplicação direta artigos 162.º e 163.º, número 1 do CSC, quer em função da aplicação analógica do disposto no artigo 158.º do mesmo diploma legal, para quem não aceite aquela aplicação direta.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"F – A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO ÓNUS DA PROVA 


Neste preciso sentido vai o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/3/2017, Processo n.º 449/08.0TTCSC.1.L1-4, Relatora: Maria João Romba, publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário:


«Tendo, no decurso de execução de sentença relativa a créditos laborais, ocorrido a extinção por dissolução administrativa da sociedade devedora, cabe apenas a cada um dos respetivos ex-sócios -, contra os quais a execução prossegue, sem necessidade de habilitação – provar que não recebeu em partilha bens suficientes para satisfazer a dívida exequenda, uma vez que essa eventualidade é matéria de exceção perentória, tratando-se de factos impeditivos do direito da exequente.»

Impõe-se contudo referir, nesta matéria do ónus da prova, que a posição largamente maioritária da nossa jurisprudência vai em sentido oposto ao defendido nesse Aresto da Secção Social do TRL, de que são exemplo os Arestos a seguir indicados, para além daquele antes referida na Nota de Rodapé número 36 (sendo que o primeiro abaixo identificado é igualmente da Secção Social do TRP):

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/1/2014, Processo n.º 472/06.0TTSTS-C.P1, Relator: João Luís Nunes, publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário:

«I - As ações em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários;

II - Os sócios respondem pelo passivo não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam em partilha;

III - Por isso, a dívida da sociedade não se extingue com a extinção da sociedade, antes se opera uma modificação subjetiva e objetiva na obrigação, traduzida na responsabilização do(s) antigo(s) sócio(s) pela mesma, limitada ao montante que recebeu(ram) em partilha;

IV - Contudo, para que os sócios possam responder é necessário que o credor alegue e prove que aqueles obtiveram bens da sociedade resultantes da partilha do seu património.»

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5/2/2018, Processo n.º 3275/15.7T8MAI-A.P1, Relator: Correia Pinto, publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário:

«I - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha (artigo 163.º, do C.S.C.).

II - O direito do credor sobre o sócio depende do facto deste ter partilhado, perante o que a existência de partilha é um facto constitutivo desse direito e não um facto modificativo, impeditivo ou extintivo do direito em questão.

III - Perante um facto constitutivo do direito, deve o mesmo ser alegado e provado pelo autor nos termos que decorrem das disposições conjugadas dos artigos 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil e 163.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comercial.»

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/10/2018, Processo n.º 582/15.2T8PRT.P1, Relator: Augusto de Carvalho, publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário:

«I - Com o registo do encerramento da liquidação, a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios, sem prejuízo das ações pendentes ou do passivo ou ativo supervenientes.

II - Em consequência da extinção, deixa de existir a pessoa coletiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem.

III - Nos artigos 162.º, 163.º e 164.º do Código das Sociedades Comerciais, a questão do passivo e do ativo supervenientes foi solucionada no sentido de a responsabilidade e a titularidade passarem, em determinados termos, para os sócios por sucessão.

IV - A existência de bens e a sua partilha entre os sócios são elementos constitutivos do direito do credor, cabendo a este o ónus da respetiva alegação e prova.

V - Não pode a execução intentada contra a sociedade prosseguir contra os sócios, quando não foram alegados, ao menos no requerimento inicial executivo, os pressupostos da sua responsabilização, isto é, que aqueles receberam bens ou direitos em partilha do património societário suficientes para o pagamento do crédito peticionado.»

Confrontar, finalmente, em sentido próximo ao dos três Arestos referidos anteriormente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/5/2017, Processo n.º 2899/15.7T8LOU.P1, Relator: Filipe Caroço, publicado em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário: 

«I - Não obstante nas ações pendentes em que a sociedade seja parte a extinção desta determine a sua substituição pela generalidade dos sócios (representados pelo liquidatário) ao abrigo do art.º 162º do CSC, tal substituição não é automática nem ilimitada.

II - Se apenas a sociedade comercial de responsabilidade limitada, liquidada e extinta, foi condenada na ação declarativa no pagamento de determinada quantia pecuniária a favor da exequente, não pode fazer-se seguir a execução de sentença contra o seu ex-sócio (representado pelo liquidatário), ao abrigo do art.º 163.º do CSC, sem que se aleguem (e provem oportunamente) em ação própria ou, pelo menos, em fase incipiente da execução (quando antes não pôde ser), os pressupostos da responsabilidade deste último e da sua sucessão à sociedade, desde logo como requisito de legitimidade passiva, por não figurar no título executivo como devedor, abrindo também o contraditório.

III - Tal alegação na execução passa pela concretização descritiva dos bens e valores da sociedade extinta partilhados em benefício do ex-sócio (potencial executado legitimável), a fim de permitir determinar a medida da sua responsabilidade relativamente ao crédito da exequente; porém, de modo compatível com as caraterísticas coercitivas do processo de execução, sem retardamento anormal ou complicação declarativa.»

A [...] Dissertação de JOANA ALEXANDRA CARVALHO MAIA, denominada «Dissolução e liquidação societária: a (des)proteção dos credores sociais» afirma o seguinte, no seu capítulo 11 intitulado «A problemática do ónus da prova», a páginas 44 a 48 [...]:

«A responsabilidade dos antigos sócios pelo passivo não satisfeito ou acautelado depende de terem recebido, em partilha, bens que não poderiam ter sido distribuídos aos sócios, tendo em conta a existência de passivo por liquidar. Se assim é, nas ações propostas pelos credores nos termos do artigo 163.º do CSC e atendendo à declaração de inexistência de ativo e passivo dependente para a efetivação dos dois procedimentos que acabamos de analisar, deverá provar-se se os sócios partilharam entre si património social que deveria ter respondido pelas dívidas existentes.

Perante isto cumpre saber a quem compete o ónus da prova desse requisito, ou seja, se são os credores que têm de fazer a prova de que os sócios receberam em partilha bens da sociedade que poderiam responder integral ou parcialmente pelo seu crédito ou, pelo contrário, se são os sócios que têm de fazer a prova de que não receberam em partilha qualquer ativo social.

Lamentavelmente, a maioria da jurisprudência defende que aos credores pertence o ónus da prova, sustentando que estamos perante factos constitutivos do direito dos credores e que, como tal, são estes que têm de fazer a prova de que os sócios receberam em partilha ativo da sociedade [[...]] (342.º n.º 1 do CC).

No nosso entendimento e em seguimento da minoria da jurisprudência [[...]] que começa a ganhar força, defendemos que os factos são impeditivos do direito dos credores a alcançarem dos sócios a satisfação dos seus créditos, competindo aos sócios demonstrar que não receberam bens sociais (342.º n.º 2 do CC).

Para entendimento das várias posições, vejamos, primeiro, o que refere o Ac. do STJ de 12-03-2013 (Garcia Calejo), considerando que o ónus da prova está do lado dos credores:

“No caso dos autos não se sabe se existiu partilha dos bens sociais. É certo que se refere na decisão do procedimento administrativo instaurado que “do procedimento resulta a inexistência de ativo e passivo”. Porém, a nosso ver, isto não significa que, na realidade, não tenha existido uma partilha de bens entre os sócios. Apenas se poderá ter como assente o que consta da declaração, mas não a sua exatidão. Nesta conformidade, caberia à A. alegar e provar que, liquidada a sociedade, os Réus procederam à partilha de bens sociais, devendo responder até ao preenchimento dos montantes que receberam. Isto porque se devem considerar estes factos como constitutivos do seu direito (art.º 342.º, n.º 1 do C. Civil).” [[...]]

Discordamos totalmente desta posição, subscrevendo integralmente as palavras de CAROLINA CUNHA quando a mesma refere, no que tange ao artigo 163.º do CSC, que “a utilidade deste regime para a satisfação dos credores é, na hipótese que curamos, marginal: segundo o disposto no art.º 163.º/1 a responsabilidade dos sócios pelo passivo social superveniente tem como limite o montante que receberam na partilha. Ora, justamente, a declaração que fundou o procedimento acelerado de extinção do ente societário atestava igualmente a inexistência de ativo, pelo que é frequente os antigos sócios alegarem que nada foi partilhado e que nada receberam, assim logrando esvaziar totalmente a sua responsabilidade. Note-se, todavia, que não parece curial que os sócios se possam valer apenas de uma declaração feita por eles próprios e desprovida de fiscalização para demonstrarem que nada receberam em partilha - tanto mais que a declaração se veio a revelar falsa no que ao passivo concerne - o que confere um golpe decisivo na sua (já escassa) credibilidade quanto à inexistência de ativo. Em termos processuais, portanto, demandados pelos credores ao abrigo do art.º 163.º para pagamento do passivo superveniente, cabe aos sócios provar, através de outros meios que não a referida declaração, que nada receberem na partilha (cfr aliás o art.º 342.º/2 CC)”. [[...]]

Terá sentido exigir aos credores uma prova que supõe o conhecimento da situação económica da sociedade a que eles, muito dificilmente, terão acesso?

Do mesmo modo como fizemos com a posição maioritária da jurisprudência, passaremos a transcrever uma parte do Ac. do TRL de 15-03-2011 (Graça Araújo) que faz uma argumentação muito inteligente quanto à posição que defendemos e que iniciará a resposta à questão supra formulada:

“O mencionado artigo 163.º define uma responsabilidade substitutiva, com o claro objetivo de assegurar o ressarcimento dos credores sociais. Essa responsabilidade, no caso de sócios de responsabilidade limitada, não vai, porém, ao ponto de lhes exigir que suportem mais do que a sociedade suportaria caso não estivesse extinta. Ao contrário do que sucede, por exemplo, na situação do artigo 158.º do Cód. Soc. Com., (em que a responsabilidade dos liquidatários se estabelece, direta e pessoalmente, em face dos credores sociais - veja-se, em especial, a parte final do nº 2), no caso do artigo 163º o devedor é a sociedade (sendo que só não é esta o sujeito passivo da relação processual por já não ter personalidade jurídica e judiciária), embora substituída pela generalidade dos sócios, que, por isso mesmo, apenas respondem pelas “forças” do que receberam na liquidação e partilha daquela sociedade. Tal significa, julgamos, que a relação jurídica que o credor social traz à lide no caso do artigo 163.º do Cód. Soc. Com. é aquela que se constituiu com a sociedade, posto que nenhuma outra, diversa e autónoma, se constituiu com os respetivos sócios. E daqui decorre que ao credor social apenas cabe a prova dos factos constitutivos desse seu direito sobre a sociedade, nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Cód. Civ. Correspetivamente, aos sócios cabe invocar e provar (artigo 342.º n.º 2 do Cód. Civ.) que os credores estão impedidos de obter, naquele momento (e dizemos naquele momento, porque poderá haver ativo superveniente – artigo 164º do Cód. Soc. Com.), o ressarcimento total ou parcial do seu crédito sobre a sociedade, uma vez que da liquidação da mesma não resultou qualquer saldo ou não resultou saldo suficiente. A posição que ora defendemos (perfilhada no Ac. RL de 9.3.10, in http://www.dgsi.pt Proc. n.º 4777/06.1TVLSB.L1-1) é, em segundo lugar, a única que assegura ao credor insatisfeito uma situação idêntica à que se verificaria caso a sociedade não estivesse extinta. Com efeito, nessa situação, caber-lhe-ia, apenas provar os factos constitutivos do seu direito para obter a condenação da sociedade; e poderia, depois, lançar mão da ação executiva, contando com o “auxílio” do agente da execução na identificação e localização de bens penhoráveis, nomeadamente existentes nas instalações da sociedade. Ora, tendo a sociedade sido dissolvida por deliberação dos sócios, como é o caso, e igualmente por estes liquidado o respetivo património (circunstâncias a que o credor social é alheio), não compreendemos por que razão deve ser o credor insatisfeito a suportar os custos acrescidos dessa situação no que respeita aos ónus que processualmente lhe incumbem (sendo, aliás, certo que já sofre as consequências derivadas da cessação do giro comercial da empresa). Acresce que a posição de que discordamos exige ao credor social uma prova que necessariamente pressupõe um conhecimento sobre a situação económico-financeira da sociedade que ele, naturalmente, não terá, em muito dificultando ou, mesmo, inviabilizando a satisfação de um crédito que ele, efetivamente, tem. Ao invés, estão os sócios na posição ideal para alegar e provar aquilo que, receberam ou não receberam na partilha.” [[...]]

Expostas as várias posições, consideramos que, aos credores, apenas deverá ser exigida a prova da relação creditícia que o liga diretamente à sociedade (facto constitutivo - 342.º n.º 1 do CC), i.e., os credores deverão provar a existência do crédito que têm sobre a sociedade e, após a referida prova, caberá aos sócios demonstrar que não procederam a qualquer partilha de ativo que pudesse parcial ou totalmente satisfazer o crédito do credor em questão. O facto de não ter existido qualquer ativo que pudesse ser partilhado pelos sócios durante a liquidação da sociedade, representa um facto impeditivo (341.º n.º 2 do CC) do direito dos credores em satisfazer os seus créditos.

Se o direito de verem os seus créditos satisfeitos foi violado, exigir aos credores que provem que os sócios receberam bens sociais é como que “infetá-los com cegueira provatória”.

Primeiro, os credores, como já referido, não serão os agentes mais capazes de fazer essa prova por não serem parte integrante da sociedade e desconhecerem, por exemplo, a sua contabilidade (mesmo que solicitada, a maior parte das vezes, e em violação da lei, a contabilidade não está organizada impossibilitando ao credor o acesso à prova); segundo, é incoerente colocar-se os credores numa situação pior do que aquela em que estariam se a sociedade não se tivesse extinguido (os credores intentariam uma ação contra a sociedade e esta responderia pelos seus bens, sendo que são estes mesmo bens que respondem nos termos do 163.º do CSC); por fim, se os credores provarem a existência do crédito (facto constitutivo), esta prova demonstra, mesmo que parcialmente, a falsidade da declaração dos sócios de inexistência de ativo e passivo: se os sócios ludibriaram quanto ao crédito não conseguimos compreender como se poderá exigir aos credores uma segunda prova de um facto que impediu a liquidação desse mesmo crédito.

Voltamos a frisar que, se os credores provam a existência do crédito sobre a sociedade, a declaração de inexistência de ativo e passivo revela-se parcialmente falsa, demonstrando uma probabilidade dos sócios terem recorrido ao processo administrativo de extinção imediata ou ao procedimento “ad hoc de dissolução sem liquidação” para conseguirem um “fresh start” sem apresentarem a sociedade à insolvência que representa um dever consagrado na lei - artigo 18.º do CIRE.

Novamente, os credores ao provarem a existência do crédito, ou seja, a existência de passivo da (ex-)sociedade, ressuscita a ideia de que a sociedade, logo à partida, não poderia extinguir-se através dos processos que supra referimos pela falha de um dos requisitos para o efeito: inexistência de passivo. É certo que nada se pode fazer quanto à personalidade jurídica da sociedade, nem é próprio levantar-se essas questões no âmbito da responsabilização dos sócios pelo passivo superveniente, no entanto, ao reconhecermos que o ónus da prova está do lado destes é meio caminho andado para que a decisão corresponda à verdade dos factos.

Por último, importa referir que, em sede judicial, ao verificar-se que a sociedade não tem ao dispor "os livros, documentos, e demais elementos da escrituração da sociedade", no caso de o ónus da prova estar do lado dos credores (posição dos factos constitutivos), defendemos a inversão do ónus da prova em virtude dos sócios terem tornado, culposamente, impossível a prova aos credores sociais (344.º n.º 2 do CSC) - pela violação da obrigação decorrente do artigo 157.º n.º 4 do CSC. Assim sendo, os sócios deverão fazer prova de que não partilharam ativo da sociedade que pudesse ter respondido pelo passivo respetivo.

Por não haver a fase de liquidação no procedimento administrativo de extinção imediata da sociedade e no processo “ad hoc de dissolução sem liquidação”, pode-se questionar a aplicação do artigo 157.º n.º 4 do CSC.

Neste sentido, consideramos que se deve aplicar analogicamente o artigo 157.º n.º 4 do CSC nos processos de extinção imediata: os sócios, na deliberação exigida pelo artigo 27.º n.º 1 b) do RJPADL, deverão designar um depositário dos livros, documentos e demais elementos da escrituração da sociedade para que no registo de encerramento de liquidação se identifique o respetivo depositário (artigo 2.º n.º 1 a) do Código de Registo Comercial e 10.º n.º 1 s) do Regulamento do Registo Comercial).

Julgamos que, quanto a esta matéria do ónus da prova, ainda há um longo trabalho jurisprudencial a fazer para que se deixe de proteger excessivamente os sócios; estes não respondem pessoalmente pelas dívidas da sociedade, apenas comercialmente (chamamos assim por serem os bens da sociedade extinta a responderem pelo passivo), portanto não vemos argumento que nos leve a desproteger, muitas vezes prejudicando severamente, os credores que são “ostracizados” nos seus créditos por lhes ser exigido uma prova (“diabólica”) que, no decorrer normal das relações comerciais, nunca lhes seria exigida.» [[...]]

Também na dissertação intitulada de «Liquidação societária e a responsabilidade pelo passivo superveniente», da autoria de ANA LUÍSA MIRANDA FERREIRA [...], se sustenta o seguinte, em sede do Capitulo D, com o nome de «Ónus da Prova», a páginas 47 a 50: 

«A responsabilização dos sócios não se encontra impedida pelo facto de declararem – em procedimento de extinção imediata – a inexistência quer de ativo quer de passivo, pois «a verdade material de uma sociedade não se demonstra com uma simples declaração unilateral dos seus sócios, dizendo que não há ativo» [[...]].

Neste ponto, coloca-se a questão de saber a quem incumbe o ónus de prova [[...]] da (in)existência de bens partilhados: se este ónus recai sobre a esfera dos credores, alegando e provando a existência de bens sociais como facto constitutivo do seu direito (cfr. art.º 342.º, n.º 1 CC), ou se são os sócios que, instados a responder pela dívida societária terão de alegar e provar a inexistência de bens partilhados como facto impeditivo do direito dos credores (cfr. art.º 342.º, n.º 2 CC) [[...]].

De acordo com CAROLINA CUNHA [[...], a contraposição entre estas duas teses conduz-nos à evidência de que, a nível jurisprudencial, apesar do caráter dominante [[...]] da tese do facto constitutivo, esta tem vindo a perder terreno para a tese do facto impeditivo [[...]] com apoio nos argumentos invocados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 15 de Março de 2011 [[...]], onde se estabelece que “a relação jurídica que o credor traz à lide, nos termos do art.º 163.º do CSC, é aquela que o liga à sociedade, posto que nenhuma outra, diversa e autónoma, se constituiu com os respetivos sócios” [[...]].

A lei civil determina, com base num critério de normalidade, que aquele que invoca determinado direito terá de provar os factos que, normalmente, o integram. Porém, a prova de factos impeditivos caberá à parte contrária por estarmos perante “factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos” [[...]] (a fraude à lei, a falsidade de declarações, etc.).

Podemos retirar a ideia de que, relativamente à prova dos factos alegados pelo credor no momento da propositura da ação para responsabilizar os sócios pelo passivo insatisfeito, aquele apenas está obrigado a provar o seu direito sobre a sociedade (cfr. art.º 342.º, n.º 1 CC).

Por conseguinte, caberá aos sócios provar, nos termos do art.º 342.º, n.º 2 CC, que da liquidação da sociedade não resultou qualquer saldo ou não resultou saldo suficiente para satisfazer o crédito peticionado, invocando e provando que o credor está impedido de obter, naquele momento [[...]], o ressarcimento total ou parcial do seu crédito sobre a sociedade.

Nas palavras do Tribunal, esta posição é “a única que assegura ao credor insatisfeito uma situação idêntica à que se verificaria caso a sociedade não estivesse extinta” [[...]].

Com isto, “tendo a sociedade sido dissolvida por deliberação dos sócios, como é o caso, e igualmente por estes liquidado o respetivo património (circunstância a que o credor social é alheio)”, não se compreende “por que razão deve ser o credor insatisfeito a suportar os custos acrescidos dessa situação no que respeita aos ónus que processualmente lhe incumbem (sendo, aliás, certo que já sofre as consequências derivadas da cessação do giro comercial da empresa)” [[...]].

É de criticar a exigência ao credor de prova de uma situação económico-financeira da sociedade cujo conhecimento ele não terá o que, por sua vez, dificulta ou impede a satisfação do seu crédito. Isto quando, correlativamente, os sócios se encontram numa “posição ideal para alegar e provar aquilo que receberam ou não receberam na partilha”.

Neste sentido, de exigência excessiva de prova, a Relação de Lisboa [[...]] afirma «para a efetivação desta responsabilidade dos sócios, posterior à extinção da sociedade, cabe ao credor o ónus de provar que, apesar da referida extinção, existe passivo não pago e, por haver responsabilidade limitada, também lhe cabe o ónus de provar a existência de ativo social».

No fundo, o crucial é evitar entraves acrescidos aos credores supervenientes através, por exemplo, do recurso à inversão do ónus da prova [[...]] (cfr. art.º 344.º do CC), cabendo aos sócios provar que, em sede de partilha, não receberam o suficiente para pagar 100% da dívida ou uma parte dela.

Esta inversão do ónus da prova fará sentido quando os sócios emitam falsas declarações quanto à inexistência de ativo e passivo uma vez que a lei civil exige atuação culposa da qual derive a impossibilidade de prova pelo onerado. O Tribunal da Relação do Porto[[...]] defende que «relativamente aos factos - ilícitos e culposos - tem-se por invertido o ónus da prova (…) já que factos de muito difícil, se não impossível, prova para a autora, reconhecendo-se ser a ré quem estaria em condições de provar as suas afirmações». [[...]]

Salvo o devido respeito pela opinião contrária, afigura-se-nos que nem o legislador visava tal resultado, jurídica, económica e socialmente perverso, nem os tribunais - pelo menos quando se deparam com situações comprovadas de falsas declarações como a dos autos, em que o ativo da sociedade existente e «ocultado» não é destinado a liquidar o passivo societário, também existente e ignorado, mas antes «desencaminhado» (no fundo, partilhado), de formas desconhecidas, informais, não declaradas, sub-reptícias, de licitude duvidosa, pelos sócios do ente societário de responsabilidade limitada extinto por mero ato privado dos mesmos – podem, de ânimo leve, exigir aos credores prejudicados com tais condutas e práticas fraudulentas ou levadas a cabo numa situação de abuso de direito, que façam ainda assim e à imagem do que acontece em situações de regular e são comércio jurídico, quando as empresas se encontram a funcionar e a desenvolver normalmente a sua atividade económica, a alegação e prova – já de si difícil, mesmo quando as sociedades comerciais se extinguem de boa-fé, de forma mais ou menos pública e transparente e de acordo com os parâmetros e exigências legais – de qual o património que sobrou e foi partilhado entre aqueles, assim como do seu valor, de maneira a poderem responsabilizar pelas dívidas sociais os ditos sócios prevaricadores.

A posição maioritária da nossa jurisprudência não apenas peca por uma leitura excessivamente formal e literal dos preceitos normativos envolvidos nesta controvérsia relativa à repartição do ónus da prova, como acaba por premiar o «infrator», ao não valorar devidamente as falsas declarações de inexistência de ativo e passivo prestadas pelos sócios e ao isentá-los da prova de que, não obstante a inveracidade de tais declarações, os bens da sociedade que existiam foram destinados a pagar na sua totalidade dívidas daquela ou, quando «divididos» entre eles, possuem um valor pecuniário diminuto ou inferior ao da quantia exequenda, só respondendo pela satisfação desta última até esse limite.

Nesta medida, estamos com a jurisprudência minoritária e com a doutrina antes transcrita que entende que, em casos de fraude ou abuso de direito derivados da dissolução e liquidação imediatas da sociedade suportadas em falsas declarações, ao credor apenas cabe alegar e provar o seu crédito (que, no caso dos autos, derivou de transação entre as partes na ação declarativa laboral e passou pelo crivo do tribunal do trabalho), recaindo sobre os sócios da sociedade extinta, nos moldes antes referidos, a prova dos factos impeditivos ou extintivos de tal direito."

*3 [Comentário] a) O acórdão tem o seguinte voto de vencida:


Não obstante reconheça o melindre da questão e a controvérsia que a envolve, não acompanho a decisão do acórdão na medida em que perfilho, e já expressei noutras decisões, a tese de que incumbia ao exequente, como facto constitutivo do direito que pretende exercer contra a ex-sócia da sociedade extinta, o ónus de alegar e provar que esta recebeu bens na partilha o que, nos termos do art.163.º do C. S. Comerciais, constitui condição para que a mesma responda pelo passivo social – neste sentido, além dos citados no acórdão, vide o Acórdão do STJ de 1 Out. 2019, Proc. n.º 4022/06.0TCLRS.L2.S1.)


b) O direito positivo fornece os seguintes dados:

-- No requerimento executivo, incumbe ao exequente alegar os factos constitutivos da sucessão na titularidade da dívida (art. 54.º, n.º 1, CPC); a falta de alegação destes factos constitui o requerimento executivo como inepto (art. 186.º, n.º 2, al. a), CPC);

-- A partir do momento que o sócio executado deduz oposição à execução, é claro que, independentemente da qualificação do facto relativo ao montante recebido por esse sócio, o ónus da prova do fundamento da oposição pertence a este sócio executado.

Nesta hipótese, vale o lugar paralelo dos bens penhoráveis na execução instaurada contra o herdeiro: se a herança tiver sido aceita pura e simplesmente e se o exequente se opuser ao levantamento da penhora, cabe ao executado alegar e provar que os bens não provieram da herança (art. 744.º, n.º 3, al. a), CPC).

MTS