16/07/2020

Jurisprudência 2020 (32)


Acordo de pagamento;
reclamação de créditos*


1. O sumário de RL 18/2/2020 (224/13.0TCFUN-A.L1-7) é o seguinte:

I– Encontra-se subjacente ao espírito e à ratio do Decreto-lei nº 67/2016, de 3 de Novembro - ao abrigo do qual foi celebrado o acordo de pagamento que abrange os créditos de natureza fiscal - que o credor, perante o cumprimento pontual das ditas prestações e enquanto esse estado de coisas subsistisse, não exerceria os seus direitos contra o devedor, mantendo uma postura absolutamente passiva e expectante.

II– O acto de reclamação de créditos em processo de execução, tendente à satisfação dos mesmos à custa do produto dos bens vendidos, constitui precisamente uma concreta manifestação de vontade tendente à obtenção do ressarcimento da dívida em causa, o que se mostra contrário e contraditório com a posição antes assumida pelo credor quando se dispôs a celebrar tal acordo de pagamento com o devedor e enquanto este fosse escrupulosamente cumprido.

III – Não é pelo facto de os bens imóveis, a que respeita a dívida de IMI, poderem vir a ser vendidos no âmbito do processo de execução instaurado por terceiro que os celebrantes do acordo de pagamento deixam de se encontrarem estritamente vinculados ao seu escrupuloso cumprimento e sem que assista concretamente ao Ministério Público, em qualquer circunstância, o direito a receber em juízo parcelas do montante total da dívida que está a ser paga em prestações.

IV– Ao vincular-se aos termos do acordo, o Estado, enquanto pessoa de bem e sujeito que se subordina aos ditames da boa fé, obrigou-se a respeitá-lo, em todos os seus precisos termos, sem reservas nem restrições que não se encontrassem expressamente vertidas no diploma legal que lhe deu origem.

V– Pelo que não pode ser admitido o crédito reclamado pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, em execução instaurada por terceiro, no caso de ter celebrado acordo de pagamento em prestações, com o contribuinte faltoso, relativamente a uma dívida de IMI, e enquanto esse mesmo acordo de pagamento esteja a ser pontualmente cumprido.

VI – De resto, em termos substanciais, a situação não é, no seu essencial e no plano substantivo, diversa daquela que se colocou aquando da vigência do Decreto-lei nº 124/96, de 10 de Agosto (commumente conhecido como “Plano Mateus”), face à qual a jurisprudência acabou por se firmar – e bem – na sentido de que o Ministério Público não poderia reclamar tais créditos enquanto o plano de pagamentos se fosse devidamente cumprido pelo contribuinte.

VII– Neste caso particular, acresce ainda que o próprio reclamante se dispõe abertamente a reclamar montantes que já lhe foram pagos em função do cumprimento do plano de pagamentos, sob a pretexto de que “é impossível proceder às respectivas imputações”, remetendo para o devedor o ónus de vir posteriormente a identificá-los (e porventura reclamá-los).

VIII– O interesse público e geral em que a Administração Pública faça cumprir, com a diligência máxima, as obrigações tributárias de cada um, num plano de equidade e rigor, não pode nunca servir de pretexto para o desrespeito dos gerais do direito civil que obriga cada sujeito a comportar-se em conformidade e coerência com o cumprimento das obrigações que livre e voluntariamente assumiu, honrando fielmente os seus compromissos, não subvertendo o conteúdo dos acordos a que se vinculou e não exigindo aquilo que, por acção sua, considerou não ser juridicamente exigível.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Analisados os argumentos em equação, e não obstante as dúvidas que a situação naturalmente suscita, afigura-se-nos ser de perfilhar o entendimento sufragado na decisão recorrida.

Fazêmo-lo com base na seguinte ordem de razões essenciais:

1º - Está em causa a celebração de um acordo de pagamento de um dívida de natureza fiscal feito em prestações ao abrigo do Decreto-lei nº 67/2016, de 3 de Novembro, através do qual a Fazenda Nacional, livre e voluntariamente, se dispôs a não exercer contra o contribuinte faltoso os seus direitos fora dos termos do efectivamente contratualizado, esperando o devido cumprimento do plano, num contexto genérico de combate ao endividamente das empresas e famílias, contemporizando com situações fiscais em falta que os contribuintes desejassem regularizar dentro de determinado condicionalismo pré-estabelecido.

Consta a este propósito do preâmbulo do citado diploma em que é enfatizado que:

“(...) é criado um regime especial de redução do endividamento ao Estado que visa apoiar as famílias e criar condições para a viabilização económica das empresas que se encontrem em situação de incumprimento, prevenindo situações evitáveis de insolvência de empresas com a inerente perda de valor para a economia, designadamente com a destruição de postos de trabalho”.

Resulta a contrario do disposto no artigo 10º do Decreto-lei nº 67/2016, de 3 de Novembro, que enquanto o contribuinte não faltar ao cumprimento do plano de pagamentos firmado, os créditos não podem ser exigidos pelo Estado, conforme aliás se nos afigura absolutamente lógico e coerente.

Ou seja, tais créditos são inexigíveis por acordo ajustado pelo os respectivos credor e devedor.

Encontra-se subjacente ao espírito e à ratio deste diploma - ao abrigo do qual foi celebrado o acordo de pagamento que abrange os créditos de natureza fiscal - que o credor, perante o cumprimento pontual das ditas prestações e enquanto esse estado de coisas subsistir, não exerceria os seus direitos contra o devedor, mantendo uma postura absolutamente passiva e expectante.

De outra forma não faria sentido algum, actuando de forma séria, propor um acordo de pagamento para aliviar o sufoco económico do devedor sobreendividado...

De resto, só assim prosseguiria os propósitos gerais enunciados no diploma de “apoiar as famílias”, não lhes criando dificuldades suplementares, desde que esteja plenamente vigente e actuante o acordo que foi apresentado pelo Estado Português, por iniciativa sua, e sujeito à adesão do contribuinte, importando aliás condicionalismos relevantes associados à eventualidade do seu não cumprimento.

2º - O acto de reclamação de créditos em processo de execução, tendente à satisfação dos mesmos à custa do produto dos bens vendidos, constitui clara e inequivocamente uma concreta manifestação de vontade tendente à obtenção do ressarcimento da dívida em causa em termos diversos do acordado, o que se mostra contrário e contraditório com a posição antes assumida pelo credor quando se dispôs a celebrar tal acordo de pagamento com o devedor - e enquanto este fosse escrupulosamente cumprido.

A relação de confiança, lealdade e cooperação mútua que do mesmo emerge impõe isso mesmo: o devedor mantém-se a cumprir o que foi estabelecido; o credor limita-se a receber as prestações fixadas e a guardar pelo cumprimento imaculado das vindouras. 

3º - Não é pelo facto de os bens imóveis, a que respeita a dívida de IMI, poderem vir a ser vendidos no âmbito do processo de execução, instaurado por terceiro, que os celebrantes do acordo de pagamento deixam, por esse motivo, de se encontrarem estritamente vinculados ao seu escrupuloso cumprimento e sem que assista concretamente ao Ministério Público, em qualquer circunstância, o direito a receber em juízo parcelas do montante total da dívida que está a ser paga em prestações.

Note-se que, embora seja do interesse do credor não vir a perder as garantias com a venda do imóvel na instância executiva, também há que relevar – e não esquecer - o interesse do devedor contribuinte a quem assiste o direito de ver o seu débito satisfeito nos exactos termos do acordo firmado livremente e de boa fé, e não de outra forma, isto é, na sua integralidade, de uma só vez, através do exercício do direito de reclamação de créditos no âmbito de um processo executivo, por força da preferência que é conferida ao crédito da Fazendo Nacional.

Ao vincular-se aos termos do acordo, o Estado, enquanto pessoa de bem e sujeito que se subordina aos ditames da boa fé, obrigou-se a respeitá-lo, em todos os seus precisos termos, sem reservas nem restrições que não se encontrassem expressamente vertidas no diploma legal que lhe deu origem.

Neste caso particular, acresce ainda que o próprio reclamante se dispõe abertamente a reclamar montantes que já lhe foram pagos em função do cumprimento do plano de pagamentos, sob a pretexto de que “é impossível proceder às respectivas imputações”, remetendo para o devedor o ónus de vir posteriormente a identificá-los (e porventura reclamá-los).

Teve, nesse sentido, o cuidado de transcrever a sintomática mensagem que recebeu da Autoridade Tributária e que é do seguinte teor:

”As dívidas que estão a ser exigidas nos referidos processos de execução fiscal dizem respeito a IMI e englobam um conjunto de prédios, não sendo possível imputar os pagamentos efectuados no âmbito dos processos de execução fiscal a cada um desses prédios”.

Ou seja, e em termos práticos, o reclamante quer receber parte do que já lhe foi pago, não sendo sequer capaz de, como lhe compete, indicar quais os valores que se encontram ainda em dívida – relativamente ao imóvel penhorado sobre o qual se dispõe a exercer a sua garantia – e quais os que, nos termos do acordado, já lhe foram entregues pelo contribuinte ora cumpridor.

Não se nos afiguram obviamente aceitáveis estas postura e pretensão.

4º - Assim sendo, não só a realização do plano de pagamento em prestações, à luz do Decreto-lei nº 67/2016, de 3 de Novembro, implica a imediata inexigibilidade do crédito por parte da Fazenda Nacional, como obriga o credor, à luz das regras gerais da boa fé (artigo 406º e 762º, nº 2, do Código Civil), a não se propor obter o pagamento de parte do seu crédito à custa do património do devedor, ainda que o mesmo seja objecto de execução movida por terceiro e nesse especial contexto.

De resto, em termos substanciais, a situação não é, no seu essencial e no plano substantivo, diversa daquela que se colocou aquando da vigência do Decreto-lei nº 124/96, de 10 de Agosto (commumente conhecido como “Plano Mateus”), face à qual a jurisprudência acabou por se firmar – e bem – na sentido de que o Ministério Público não poderia reclamar tais créditos enquanto o plano de pagamentos se fosse devidamente cumprido pelo contribuinte, perante a inexigibilidade destes, conforme se demonstrou supra.

5º - A circunstância do artigo 9º, nº 2, do Decreto-lei nº 67/2016, de 3 de Novembro, prever que “as garantias constituídas à data da adesão mantêm-se até ao limite máximo da quantia exequenda...” não significa de forma alguma que o credor, à revelia e agindo em prejuízo do acordo celebrado - desde que este esteja a ser pontualmente cumprido, naturalmente -, possa reclamar em sede executiva parte do seu crédito (com vista ao seu pagamento pelo produto da venda dos bens); apenas quer dizer que, uma vez firmado o plano de pagamento à luz do diploma legal mencionado, a Fazenda Nacional, sem necessidade da exigência da prestação de garantias adicionais (artigo 9º, nº 1), mantém as garantias já constituídas pelo limite máximo antes exigido em processo de execução, procedendo à redução anual do dobro do montante efectivamente pago dentro de determinado condicionalismo.

Trata-se no fundo, de uma forma de persuadir o devedor a cumprir o plano acordado, sem que os bens dados em garantia responderão pela dívida em causa, e de incentivar o seu pontual cumprimento através de prometidas reduções anuais dos limites dessas garantias.
Nada disto tem a ver com a possibilidade de reclamação judicial de um crédito que o credor se comprometeu a não exigir desde que seja devidamente respeitado o acordo do pagamento em prestações.

Nem a disposição legal citada tem em vista a possibilidade de execução contra o contribuinte faltoso instaurada por terceiro, em que os imóveis em causa sejam objecto de penhora.

Dizer-se que “as garantias mantêm-se”, para o caso de o plano pagamentos vir a ser incumprido não significa a mesma coisa que afirmar que, para salvaguarda absoluta das garantias associadas ao imóvel a que respeita o IMI, o credor possa exigir do devedor aquilo que expressamente considerou como inexigível, revogando e eliminando, na prática e unilateralmente, o acordo antes firmado e que se encontrava em curso sem percalços.

É claro que a lei em causa sempre poderia ter previsto diferentemente, conferindo ao credor a possibilidade de reclamar o seu crédito, mesmo perante o escrupuloso cumprimento do acordo de pagamento, caso estivesse eminente a perda da sua garantia por via da sua venda executiva.

Seria algo contraditório e equívoco, mas plenamente possível no plano teórico e abstracto.

Aí o contribuinte faltoso, que se encontrava comprometido com o acordo de pagamento em prestações, não poderia esperar do credor comportamento diverso daquilo que resultaria dessa hipotética disposição legal, tendo de conformar-se com ela.

O certo é que tal situação não foi devidamente ressalvada, havendo assim apenas que respeitar apenas os termos do acordo de pagamento em prestações antes firmado, com todas as suas consequências associadas.

A eventual perda da garantia por via da venda dos imóveis em causa constitui, apenas e só, uma decorrência prática da celebração do acordo de pagamento com o devedor, sendo certo que o património deste continua a constituir garantia comum e geral do crédito deste credor.

6º - Diga-se, igualmente, que não releva o argumentário de que a reclamação de crédito e o eventual ressarcimento de parte da dívida, de natureza fiscal, à custa do produto da venda dos bens imóveis não acarreta qualquer prejuízo para o devedor do IMI, na medida em que o não obriga a suportar um sacrifício económico superior ao inerente ao cumprimento do plano de pagamento em prestações.

A questão não é sequer essa.

Os acordos livremente celebrados serão pontualmente cumpridos.

Enquanto houve lugar à regular execução, pelo devedor, do plano de pagamentos gizado por iniciativa do credor, segundo os exactos termos que o mesmo teve por curiais e satisfatórios, impõe-se acima de tudo o seu escrupuloso respeito por parte de ambos os contraentes, sem a exigência judicial do seu pagamento pelo credor que ao mesmo livremente anuiu (e de que agora se quer desresponsabilizar).

Na situação sub judice, a situação é particularmente gritante na medida em que o Ministério Público se propõe reclamar inclusivamente créditos que já foram pagos no cumprimento do plano de pagamentos acordados, remetendo o contribuinte ora cumpridor - assim claramente prejudicado e mesmo ludibriado - para um futuro e eventual acerto de contas.

7º - Refira-se, por último, que o interesse público e geral em que a Administração Pública faça cumprir, com a diligência máxima, as obrigações tributárias de cada um, num plano de equidade e rigor, não pode nunca servir de pretexto para o frontal desrespeito dos gerais do direito civil que obriga cada sujeito a comportar-se em conformidade e coerência com o cumprimento das obrigações que livre e voluntariamente assumiu, honrando fielmente os seus compromissos, não subvertendo o conteúdo dos acordos a que se vinculou e não exigindo aquilo que, por acção sua, considerou não ser juridicamente exigível.

É isto o respeito pelo princípio da boa fé, vector essencialmente e decisivo no nosso ordenamento jurídico, cabendo às entidades públicas, em primeiro lugar e desde logo, observá-lo de forma exemplar, irrepreensível e imaculada."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem. À pretensão do Estado falta a necessária accionabilidade, o que constitui uma excepção dilatória inominada (art. 576.º, n.º 2, CPC).

[MTS]