20/07/2020

Jurisprudência 2020 (34)


Depoimento de parte;
discriminação de factos


1. O sumário de RP 6/2/2020 (3144/12.2TBPRD-Q.P1) é o seguinte:

I - O princípio da auto-responsabilidade impõe à parte o cumprimento dos ónus processuais.

II - A exigência legal de discriminação dos factos a que o depoimento de parte deve ser prestado exige uma actividade real e efectiva que distinga entre os factos que não interessam à parte ou não são passíveis de confissão e aqueles que são objecto desse depoimento.

III - Não discrimina esses factos a menção dos arts 1 a 96 quando os restantes artigos do articulado são apenas 3 e correspondem ao pedido, transcrição de um aresto e conclusões.

IV - Deve o tribunal convidar a parte a corrigir esse lapso.

V - Caso a parte decida não aceitar esse convite terá de suportar as consequências do incumprimento desse ónus com a rejeição desse meio de prova.

VI - O princípio do inquisitório e da cooperação não significa que à parte basta alegar os factos essenciais, cabendo ao juiz fazer tudo o resto: recolher os factos instrumentais, ouvir testemunhas desaparecidas, recolher toda a prova e fazer todas as diligências etc., à margem da inércia das partes.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"IV. Decidindo

A actividade das partes em processo civil está condicionada a uma série de princípios gerais como:

i. Actuação em boa fé (art. 8 do CPC),
ii. Correcção (art. 9º, do CPC);
iii. Cooperação (art. 7 do CPC),
iv. Economia processual e limitação de actos inúteis (art. 130 do CPC),
v. Simplicidade (art. 131, nº1);
vi. Celeridade ou prazo razoável (art. 2º, nº1, do CPC).
 
Desses princípios, decorre o dever de os interessados conduzirem o processo assumindo os riscos daí advenientes, devendo deduzir os meios adequados para fazer valer os seus direitos na altura própria, sob pena de sofrerem as consequências (cfr. Ac. STJ de 11.07.2013, Proc. 6961/08.4TBALM.B.L1.S1 e Ac. STJ de 21.01.2014 – Proc. 689/08.2TTFAR.E1.S1).

Acresce que o acentuar dos deveres de cooperação do tribunal não implica que as partes deixem de ter um dever de auto-responsabilidade e submissão ao princípio da preclusão.

Ora, resulta do art. 452.º, n.º 2 do CPC, que quando o depoimento de parte seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.

Esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão. O seja, estamos aqui perante algo bem diverso das declarações de parte.

Por isso, como já salientava Alberto dos Reis [in CPC Anotado, vol. IV, pág. 130] “Não obstante a letra e o espírito do art. 18.º do Dec. n.º 12 353, continuou a usar-se no foro, da formula vaga e genérica; requer-se o depoimento de parte contrária sobre todos os factos articulados. Torpedeava-se, passe o termo, o pensamento da lei. Para abolir, de vez, semelhante prática é que o art. 45. do Dec. n.º 21 287 e mantido no art. 572 é evidente que não satisfaz a exigência legal o requerimento em que se diga: pretende-se o depoimento da parte contrária sobre todos os factos (ou sobre todos os artigos) da petição inicial, ou sobre todos os artigos da contestação, da réplica, da tréplica; tal indicação não é discriminada. É necessário, pois, especificar os factos que hão-de ser objecto de depoimento”. (sublinhado nosso). [...]

Nos mesmos termos e, após a reforma de 1995, Lopes do Rego [Comentário ao CPC, pág. 387 e nos mesmos termos Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, II, em anotação ao artigo [4]52], afirma “mantém-se o ónus, que já recaia sobre a parte requerente, de indicar logo discriminadamente os factos sobre que há-de recair. Atenua-se porém o efeito preclusivo (…) cumprindo ao juiz convidar a parte a discriminar mais claramente o objecto do depoimento, ao menos quando a falta cometida não traduza culpa grave (…)”.

Sendo que, por fim, a recente alteração do CPC manteve inalterada essa norma.

Quid iuris[?]

Comecemos pelo argumento literal.

Discriminar, em termos linguísticos [...] significa: estabelecer as diferenças entre vários elementos, identificar, separar, indicar cada um dos elementos.

Depois, sistematicamente, e conforme salientou o recente acórdão desta secção, Ac da RP de 21.11.2019 29903/15.6T8PRT-F.P1A (João Venade) a referência a “discriminada” “induz a ideia de que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica (por exemplo, toda a matéria da petição inicial ou da contestação”.

Ora, no presente caso é evidente que a parte não fez isso.

Como resulta dos factos provados indicou basicamente toda a matéria do seu articulado, sem qualquer rigor, cuidado ou diligência, limitando-se a não incluir os artigos onde efectua duas conclusões e transcreve uma decisão judicial.

Comparem-se os restantes 96 artigos do articulado para se concluir de forma simples e notória que a parte, através do seu mandatário, não efectuou qualquer esforço de discriminação limitando-se a deixar ao tribunal essa tarefa.

O que era exigível à parte era uma identificação simples dos factos passíveis de confissão por depoimento de parte, e não a mera indicação dos últimos 3 artigos com matéria de direito, conclusões ou pedidos [...]. Daí resulta, pois, que a parte nada identificou ou indicou, fazendo materialmente (e isso é que importa) uma referência genérica e indiscriminada para o seu articulado. Deste modo, bem andou o tribunal quando notificou a parte para identificar entre os vários artigos, apenas aqueles que eram suscetíveis de confissão judicial.

O tribunal deu assim integral cumprimento ao seu dever de cooperação, concedendo à parte uma segunda oportunidade para cumprir o seu ónus. [Cfr. Lebre de Freitas e outros in CPC Anotado, 1º edição, vol. 2.º, p. 467; e Ac. da RP de 13-06-2018 in www.dgsi.pt., proc. n.º 143/14.3T8PFR-B.P1]

Com efeito, dizer-se artigos 1 a 96, no presente caso, ou toda a matéria é a mesma coisa que uma decisão judicial fundamentar o direito com a menção do arts 1 e seguintes do CC ou todas as regras de direito aplicáveis. Isso nada diz, nada discrimina, nada identifica e por isso não cumpre o ónus legal.

Concluímos assim que o despacho do tribunal a convidar a parte a corrigir o seu lapso é legal, lícito e merece elogios e não qualquer censura.

2. Das consequências da inação da parte

Não deixa de ser curioso que venha agora a parte invocar a vital importância do meio de prova para a sua pretensão, quando afinal afirma que “pensou ser um lapso do tribunal”.

Qualquer homem médio e prudente, depois de receber o despacho, iria ler os 96 artigos indicados e talvez, por mera cautela e diligência, ver que os artigos 1 e 2 não são necessários, os arts. 3 e seguintes estão provados por certidão, o art 12 também, os 14 e seguintes fazem alusão a escrituras, etc, etc etc. Não se vislumbra, pois, como se pode pensar estarmos perante um lapso do tribunal.

Acresce que, não é a importância dos meios de provas que permite às partes incumprir as regras processuais da sua admissão, mais a mais quando estão patrocinadas por profissionais forenses que são remunerados pela sua actividade e como tal obrigados a um elevado grau de diligência no cumprimento dos seus deveres profissionais e deontológicos. Repare-se, por exemplo, que a junção fora de prazo de um articulado ou alegações de recurso, por mais importante que sejam não implicam a desoneração da parte mas sim a aplicação do princípio da preclusão com as suas nefastas consequências.

In casu, a parte foi notificada para corrigir um requerimento, dando-se cumprimento ao artigo 6.º, n.º 2, parte final, do C. P. C. que impõe esse convite. No prazo concedido nada fez ou requereu. É, pois, evidente que terá de suportar as consequências negativas da sua inércia.

Neste sentido veja-se também o Ac da RP de 24.4.2014, PROCESSO N.º: 220/13.8TTBCL-A.P1 (declarações parte) “Não cominando a lei qualquer sanção no caso da parte requerente não ter feito a discriminação dos factos ao requerer o depoimento de parte, face ao dever de gestão processual e ao princípio da cooperação deve ser convidada a suprir tal omissão, e só em caso de não observar o convite formulado ser indeferido o depoimento de parte”. [...].

Tudo, isto porque, como salienta o Ac da RP de 13.6.2018 (Jorge Seabra), já citado “a consagração do aludido ónus processual e do consequente efeito cominatório preclusivo (após convite endereçado à parte e não correspondido) não se apresenta como excessivo ou desproporcionado e, como tal, não afronta os direitos constitucionais do acesso ao direito, do direito à prova e à tutela jurisdicional efectiva consagrados no art. 20º da Constituição da República.

Porque, conforme se salienta no já antigo, mas ainda actual, Ac do STJ de 1.7.2004 (Noronha Nascimento), SJ200407010034172: “O princípio do inquisitório (art. 265 do C.P.C.) não significa que à parte basta alegar os factos essenciais, cabendo ao juiz fazer tudo o resto: recolher os factos instrumentais, ouvir testemunhas desaparecidas, recolher toda a prova e fazer todas as diligências etc., à margem da inércia das partes”.

Na verdade, o processo civil ainda é o campo privilegiado do funcionamento do princípio da autonomia privada (art. 3º, do CPC), do qual decorre não apenas a liberdade de conformar o seu mundo, mas também a responsabilidade pelas omissões nessa demanda."

[MTS]