27/07/2020

Jurisprudência 2020 (39)


Embargos de executado;
causas de pedir incompatíveis*


I. O sumário de RC 30/3/2020 (289/19.18SRE-A.C1é o seguinte:

1. O regime da cumulação de causas de pedir incompatíveis, geradora da ineptidão da petição inicial, opera apenas no âmbito da ação declarativa, não se aplicando à petição de embargos de executado porque, não obstante assumir a natureza de “contra-ação”, tem um perfil e características próprias, dada a estrutura e finalidade da oposição.

2. A petição dos embargos de executado tem formalmente a estrutura e conteúdo de uma petição da ação declarativa, mas no plano material a oposição consubstancia uma reação à pretensão executiva, sendo substancialmente uma contestação. 

3. Os fundamentos de oposição à execução (art.731º CPC) não estão subordinados a nenhuma hierarquia, nem a lei impede a sua cumulação, porque são todos os que possam ser invocados na defesa (sistema não restritivo), não funcionando para essa defesa o regime da incompatibilidade de causas de pedir, além do mais porque o embargante opõe factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda (oposição de mérito). 

4. Não é inepta a petição de embargos de executado na qual o executado alega a falsidade da assinatura do título (aval aposto numa livrança), negando a autoria, e simultaneamente alega a violação do pacto de preenchimento.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dado o disposto no art. 731 CPC, porque a execução não se baseia em sentença condenatória, além dos fundamentos de oposição especificados no art.729 CPC, na parte em que sejam aplicáveis, pode invocar-se quaisquer outros que seria lícito deduzirem-se como defesa no processo de declaração.

Os subscritores e os avalistas de uma livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o qual tem o direito de accionar todas as pessoas individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram (art.47 e art.77 da LULL.). [...]

Os embargantes alegaram, no essencial, os seguintes fundamentos para a oposição: (i) a falsidade do título, impugnando a genuinidade das assinaturas; (ii) o montante do crédito; (iii) a violação do pacto de preenchimento.

O despacho recorrido indeferiu liminar e parcialmente os embargos com base na incompatibilidade material de causas de pedir, argumentando, em síntese, que a impugnação da genuinidade do título é incompatível com a alegação da violação do pacto de preenchimento.

O despacho recorrido deve ser revogado pelas razões que se passam a expor.

Em primeiro lugar porque sendo uma petição dirigida contra o exequente, está sujeita a despacho liminar, semelhante ao da acção declarativa, mas “vistas as condições peculiares, de mais restrito alcance” (Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág.300), significando que os fundamentos do indeferimento liminar são os positivados no art.732 CC nº1 (anterior art.817), embora não de forma taxativa. Isto para dizer que a rejeição não se alicerça em nenhum dos fundamentos das alíneas a), b) e c) do nº1 do art.732 CPC.

Sobre a cumulação de causas de pedir, apenas o art.186 nº2 c) CPC se reporta ao descrever uma causa de ineptidão da petição, como nulidade de todo o processo (“quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis “). 

Como doutrinava Alberto dos Reis, “duas ou mais prestações são legalmente incompatíveis quando produzem efeitos contraditórios ou sob o aspecto material ou sob o aspecto processual (…). A incompatibilidade substancial que conta para a ordem jurídica é a que resulta do facto de as pretensões produzirem efeitos jurídicos contraditórios “, exemplificando com o pedido simultâneo de anulação e cumprimento de determinado contrato (Comentário, III, pág. 154, 156 ). No mesmo sentido, Antunes Varela, para quem “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis “ (Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 246).

E a incompatibilidade substancial de pedidos só releva para a ineptidão da petição inicial “quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto, irrelevando, para o efeito, o antagonismo que ocorra no plano legal ou do enquadramento jurídico” (cf., por ex., Ac STJ de 6/5/2008 ( proc. nº 08A966 ), Ac STJ de 3/5/2012 (proc. nº 2329/06), em www dgs.pt ).

A contradição que conduz à ineptidão (art.186 nº2 c) CPC) tem sido concebida como “contradição lógica”, uma “flagrante oposição”, ou “negação recíproca”.

Ora bem, o regime da cumulação de causas de pedir incompatíveis geradora da ineptidão opera no âmbito da acção declarativa (o citado acórdão do STJ que serviu de justificação no despacho reporta-se precisamente uma acção declarativa), mas não parece que deva adaptar-se à petição dos embargos de executado porque, não obstante assumir a natureza de “contra-acção”, tem um perfil e características próprias dada a estrutura e finalidade da oposição.

Na verdade, destinando-se a oposição a “um acertamento negativo da situação substantiva de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título“, cujo escopo primordial é o de “obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação por via indirecta da eficácia do título executivo enquanto tal” (Lebre de Freitas , A Acção Executiva, 5ª ed., pág. 189), os fundamentos de oposição à execução (art.731 CPC) não estão subordinados a nenhuma hierarquia, nem a lei impede a sua cumulação, porque “podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração”. Ou seja, ainda que expostos na petição de embargos, à qual se aplica com as “necessárias adaptações” (art.551 nº1 CPC) os requisitos da petição inicial da acção declarativa (art.552 CPC), os fundamentos da oposição são todos os que possam ser invocados na defesa ( sistema não restritivo ), não funcionando para essa defesa o regime da incompatibilidade de causas de pedir, além do mais, porque o embargante opõe factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda (oposição de mérito), funcionando o princípio da concentração.

A este propósito, entende-se que “na oposição à execução o embargante tem o ónus de concentrar na sua petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado nos embargos (isto é, que podem justificar a concreta exceção deduzida). A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados nessa petição “ (Ac STJ de 19/3/2019 ( proc. nº 751/16 ), em www dgsi.pt ).

Na verdade, no plano formal a petição dos embargos de executado tem a estrutura e conteúdo de uma petição da acção declarativa, mas no plano material a oposição consubstancia uma reacção à pretensão executiva, sendo substancialmente uma contestação. Por isso, opera o princípio da concentração da defesa, sendo legitimo cumular os fundamentos de oposição (tanto no sistema restritivo, como não restritivo) e o prazo de 20 dias para os embargos tem natureza processual, semelhante ao contestação.

Neste contexto, abrindo-se com os embargos de executado uma fase declarativa, não é, porém, uma acção declarativa pura, pois ainda que não se alterem regras da distribuição da prova, trata-se de uma acção de cariz especial, peculiar, porque quer se alegue “oposição de mérito”, quer seja “oposição de forma”, a finalidade é sempre de reacção à pretensão executiva, porque funcionalmente conexa, demonstrando o executado que se trata de uma execução injusta. Como também já se afirmou, “o embargado, ao defender-se, ou seja, ao explicar a emergência do título e as suas razões de sustentação, não está a acrescentar qualquer causa de pedir antes está, apenas, como se enunciou, a defender-se” (Ac RL de 5/7/2018 ( proc. nº 09/15), em www dgsi.pt).

Nesta medida, sendo os embargos de executado um meio de defesa, embora formalmente através de petição, em fase declarativa, a verdade é que neles o executado exercita o direito subjectivo processual de contraditar a pretensão executiva, sem que possa opor um pedido autónomo diferente.

Por conseguinte, não tem aplicação a ineptidão da petição de embargos de executado por incompatibilidade de fundamentos de oposição, contrariamente ao decidido. É que eles são alegados, não para sustentar uma pretensão autónoma por parte do embargante, mas para justificar a fata de causa do pedido do exequente.

Acresce que a alegação da violação do pacto de preenchimento e da falta de exigibilidade da obrigação (arts. 39 e segs.) foi feita a título subsidiário (“sem prescindir…)( cf. art.38 da petição ). Daqui resulta que o pedido é um só (o da extinção da execução), mas baseado em vários fundamentos. Quando se cumulam vários fundamentos nada obsta a que a cumulação seja subsidiária, à semelhança da permissão de pedidos subsidiários (art.554 CPC).

Sendo assim, a alegação da falsidade da assinatura (impugnação da genuinidade) dos avalistas não obsta à alegação da violação do pacto de preenchimento para efeitos de embargos de executado, pelo que não havia fundamento legal para o indeferimento liminar parcial".

*III. [Comentário] a) O acórdão decidiu bem na sua conclusão, embora não completamente nos seus fundamentos. Não é pela alegada circunstância de a petição inicial dos embargos de executado ter uma função de contestação da execução que se pode dizer que uma eventual contradição entre várias causas de pedir não implica a sua ineptidão. 

O que se pode dizer -- no caso da petição de embargos ou de qualquer outra petição inicial -- é que não há nenhuma ineptidão da petição, se a parte tiver hierarquizado as várias causas de pedir incompatíveis entre si, qualificando uma delas como subsidiária da outra. Ora, segundo se percebe foi isso que sucedeu no caso concreto, dado que, a título principal, o executado invocou a falsidade da assinatura como causa de pedir principal e, como causas de pedir sucessivamente subsidiárias, a violação do pacto de preenchimento e a inexigibilidade da obrigação exequenda.

b) A solução pode ser mais discutível quando o executado invoque várias causas de pedir incompatíveis entre si e não as hierarquize em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s). Neste caso, parece que são pensáveis dois casos e duas soluções:

-- As causas de pedir incompatíveis entre si são insusceptíveis de ser hierarquizadas em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s); neste raro caso (é possível que exista algum caso de incompatibilidade absoluta entre excepções peremptórias), a petição de embargos é mesmo inepta;

-- As causas de pedir incompatíveis entre si são susceptíveis de ser hierarquizadas em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s); o autor deve ser convidado a suprir a deficiência do seu articulado (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, CPC), sob pena de o tribunal só poder considerar a primeira das causas de pedir alegadas,

c) Esta solução vale para a petição inicial de qualquer acção. A ineptidão por contradição de causas de pedir só pode ocorrer quando estas não sejam susceptíveis de ser hierarquizadas em causa de pedir principal e causa(s) de pedir subsidiária(s).

MTS