16/09/2020

Jurisprudência 2020 (53)


Cabeça-de-casal; remoção;
meio processual*


1. O sumário de RG 5/3/2020 (524/11.4TBAMR-F.G1) é o seguinte:

I- Compete ao cabeça-de-casal a prática de todos actos exigidos pelo exercício dos seus poderes de administração da herança até sua partilha.

II- No exercício dessas funções o cabeça-de-casal pode praticar actos que, pela sua natureza continuada, poderão ser lesivos dos restantes interessados da herança, de molde a tornarem justificado que, uma vez demonstrados, se ponha fim à situação em ordem a acautelar os direitos daqueles.

III- Na situação de o património hereditário integrar estabelecimentos comerciais ou empresas, será necessário que quem as administra esteja à altura do cargo e possua as qualidades necessárias para o exercício e desempenho cabal de tais funções, de molde a praticar uma administração do património hereditário com competência, prudência e zelo, em ordem à salvaguarda dos direitos dos restantes herdeiros, que não devem ser prejudicados de forma grave e irreparável, sendo, por decorrência a actividade do cabeça de casal indissociável de uma boa e corrente gestão dessas empresas.

IV- Assim sendo, nessa situação, necessário se revela que se demonstre que o cabeça-de-casal não possui qualificação ou quaisquer conhecimentos profissionais ou de gestão que lhe permitam assegurar, pessoal e adequadamente, a boa administração das sociedades comerciais cujas participações sociais integram o acervo de bens da herança, em ordem ao preenchimento dos requisitos indispensáveis ao deferimento da providência cautelar de remoção do cabeça-de-casal solicitada ao Tribunal, nos termos estatuídos na alínea d), do nº 1, do art. 2086º do Código Civil.

V- E essa incompetência, enquanto inaptidão para o exercício do cargo, terá de decorrer da matéria de facto alegada e provada nos autos, ainda que em sede cautelar.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Antes entrar propriamente na análise do objecto da presente apelação, em ordem a explicitar as condicionantes com que este tribunal de recurso se debate para o proferimento da “melhor” decisão sobre a questão submetida à sua apreciação, afigura-se-nos pertinente tecer algumas considerações sobre aquela que entendemos ser a forma que, com maior aprofundamento das circunstância do caso, permitiria, indubitavelmente, uma decisão mais consistente e melhor fundamentada da questão em apreço.

Conforme se dispõe no actual artigo 1103 (anterior 1339), do C.P.C., “a substituição, a escusa e a remoção do cabeça de casal constituem incidente do processo de inventário, aos quais se aplicam as regras gerais dos incidentes da instância” – cfr. nº 2, do aludido preceito -, sendo que, “se for impugnada a legitimidade do cabeça de casal ou se for requerida a escusa ou a remoção deste, o inventário prossegue com o cabeça de casal designado, até ser decidido o incidente.

Daqui decorre que a impugnação da legitimidade, a escusa e a remoção da cabeça de casal constituem um incidente do processo de inventário, que se encontra subordinado às regras gerais dos incidentes, conforme expressamente resulta do disposto no artº 1103, nº 3, do C:P.C., estando, assim, estas pretensões sujeitas à obrigatoriedade de apresentação dos meios de prova com o respectivo requerimento, conforme impõe o artigo 293º, nº 1, do C.P.C., onde expressamente se prescreve que “no requerimento em que suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”.

Ora, na presente situação, como resulta evidente, designadamente, da alegação de que no decurso dos últimos anos de vida da de cujus, terá sido a aqui Recorrente, A. R., quem dela cuidou, vivendo em comunhão de vida, bem como, da alegação de uma total inexperiência, por parte do Recorrido, na administração e gestão corrente do estabelecimento comercial, e que este contesta, alegando que além da experiência adquirida noutras áreas, até exerceu, voluntariamente funções na “Farmácia” em causa, além de ter sido gerente e sócio de um “armazém de medicamentos” (distribuição), estamos perante uma factualidade que para adquirir verdadeira relevância não se basta com a mera alegação, carecendo, isso sim, de que se proceda à sua demonstração, sob pena de não poderem ser convenientemente valorados, pois só o poderão ser na estrita medida em que tenham sido admitidos, o que não é o caso.

Na verdade, e exemplificando, fica assim por esclarecer se, de facto, o cabeça de casal nomeado, é uma pessoa totalmente inexperiente na gestão de estabelecimento, ou se, como alega, tem larga experiência nesta área, e, designadamente, no âmbito da actividade farmacêutica e actividade com esta conexa.

Ora, nada disto assim sucederia se, ao invés de ter sido interposta apelação, tivesse sido suscitado o incidente para substituição da cabeça de casal nomeado, com o arrolamento dos indispensáveis e necessários meios de prova visando a demonstração de toda a factualidade alegada.

Mas não foi este o caminho, e com as condicionantes existentes urge tomar posição e decidir a questão suscitada, luz dos à dos factos relevantes e dos citérios legais aplicáveis.

Ora, e em primeiro lugar cumprirá referir que grande parte da fundamentação em que alicerça a sua pretensão de substituição do cabeça de casal nomeado, não se mostra de qualquer relevância para os efeitos pretendidos designadamente:

- O facto de o interessado, ora nomeado cabeça de casal, A. J., não obstante ser o herdeiro mais velho, não beneficiar da dupla qualidade de herdeiro legal e testamentário, do estabelecimento comercial “Farmácia ...”;

- Ter a farmácia um valor manifestamente superior ao montante relativo ao conjunto dos restantes bens que integram a herança;

- E o facto de a farmácia, com o valor relativo de € 526.667,00, ter, após licitação a que houve lugar, sido adjudicada, na proporção de 1/3 para cada um, aos ora Recorrentes, A. R. e D. M., que, por isso, serão titulares de pelo menos 8/9 do estabelecimento comercial em apreço e o recorrido só poderá vir a deter 1/9 desse mesmo estabelecimento.

Resta assim o argumento dos Recorrentes, de que à luz dos critérios de equidade e justiça material do caso concreto, se lhe afigurar contraproducente para a manutenção da boa gestão do património da herança, sobretudo da “Farmácia ..., que seja o interessado A. J. a assumir o cargo de cabeça de casal, pois, dada a sua total inexperiência na administração e gestão corrente do estabelecimento comercial.

Na verdade, sendo irrelevantes, os demais aspectos supra referidos, à luz do regime legal aplicável, como critérios de aferição da legitimidade e legitimação para o desempenho das funções de cabeça de casal, resta apenas este último aspecto, pois, como e bem refere o Recorrido, não há mapa informativo da partilha aberta por óbito do falecido D. M., não há sentença homologatória de tal partilha transitado em julgado, os Recorrentes não pagaram ainda um cêntimo que fosse a título de eventuais tornas, e, por decorrência, não podem ser reconhecidos como possuindo qualquer direito de uma qualquer quota ou percentagem na “Farmácia ...”.

Ora, pese embora se considere que “sendo o património hereditário constituído por estabelecimentos comerciais ou empresas, pode dizer-se que essa actividade é indissociável da boa e corrente gestão dessas empresas” e que “por conseguinte, quem as administra deve estar à altura do cargo, e possuir as qualidades necessárias para o exercício e desempenho cabal de tais funções, e ser capaz de administrar o património hereditário com competência, prudência e zelo, sob pena de prejudicar séria, grave e irreparavelmente os direitos dos restantes herdeiros” (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 14/02/2013, proferido no processo nº 1309/12.6TVLSB-A.L1-8, in www.dgsi.pt.), como incontornável resulta igualmente que, não obstante, se desconhecer se isto assim será, ou seja, se como alega o interessado A. J., terá abundante experiência de gestão no âmbito da actividade farmacêutica e actividades conexas, ou se, pelo contrário, como aduzem os Recorrentes, terá uma total inexperiência na administração e gestão corrente desse estabelecimento comercial, o certo é que nada consta dos autos que permita afirmar e concluir pela sua total inexperiência, incapacidade ou inidoneidade, ou seja, que permita afirmar que se não está perante uma pessoa suficientemente qualificada para efectuar uma boa gestão da farmácia em referência.

Todavia, como se refere no citado Acórdão da Relação de Lisboa, se é certo que “no exercício dessas funções a cabeça-de-casal pratica actos que, pela sua natureza continuada, poderão ser lesivos dos restantes interessados da herança, a exigir, por conseguinte, que uma vez verificadas tais circunstâncias, se ponha termo a essa situação para se acautelar os eventuais direitos daqueles”, uma vez que se demonstre que que o “(…) cabeça-de-casal não possui qualificação ou quaisquer conhecimentos profissionais ou de gestão que lhe permitam assegurar, pessoal e adequadamente, a boa administração das sociedades comerciais cujas participações sociais integram o acervo de bens da herança, aberta por óbito de seu pai, preenchidos se mostram os requisitos indispensáveis ao deferimento da providência cautelar de remoção do cabeça-de-casal solicitada ao Tribunal, nos termos estatuídos na alínea d), do nº 1, do art. 2086º do Código Civil” (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa citado na nota anterior).

E, como conta da fundamentação deste Acórdão, “(…) a herança é uma “universitas juris” representada, enquanto subsiste, pelo cabeça-de-casal, a quem cabe a administração da herança até à sua liquidação e partilha, nos termos que constam do art. 2079º do CC.

E no exercício de tal cargo compete à cabeça-de-casal a prática de todos os actos que se mostrem indispensáveis à administração dos bens, neles se incluindo a movimentação de todos os depósitos bancários constituídos ao tempo da abertura da herança, e existentes nas contas correntes bancárias, a cobrança de quaisquer dívidas activas da herança, a aplicação e distribuição de rendimentos e a gestão de todo o património que a integre – cf. arts. 2089º, 2087º, 2092º e 2093º, todos do CC.

E sendo o património hereditário constituído por estabelecimentos comerciais ou empresas pode dizer-se que essa actividade é indissociável da boa e corrente gestão dessas empresas. A exigir, por conseguinte, que quem as administra esteja à altura do cargo, e possua as qualidades necessárias para o exercício e desempenho cabal de tais funções e que seja capaz de administrar o património hereditário com competência, prudência e zelo.

Sob pena de poder ser removido do cargo de cabeça-de-casal.

Com efeito, a lei comina com a sanção da remoção, sem prejuízo de outras sanções que ao caso couberem, todo o cabeça-de-casal que, nomeadamente, “não administrar o património hereditário com prudência e zelo” – alínea b), do nº 1, do art. 2086º do CC – e “revelar incompetência para o exercício do cargo” – alínea d) da mesma norma.

A este propósito pode ler-se em Antunes Varela e Pires de Lima, que a incompetência pressupõe que a pessoa nomeada revele, no desempenho do cargo, não possuir a--s qualidades necessárias para o preenchimento da função que lhe foi confiada (Cf. Antunes Varela e Pires de Lima, in “Código Civil Anotado”, IV Vol., pág. 145).

Igual incompetência revelará se com a sua conduta ameaçar lesar os interesses dos restantes herdeiros.

E essa incompetência, enquanto inaptidão para o exercício do cargo, terá de decorrer da matéria de facto alegada e provada nos autos, ainda que em sede cautelar”.

Ora assim sendo, e em decorrência de tudo o exposto, nada estando comprovado que seja passível de colocar em causa capacidade ou a idoneidade do cabeça de casal nomeado, ou seja, que permita afirmar que se não está perante uma pessoa suficientemente qualificada para efectuar uma boa gestão da farmácia em referência, improcede a apelação, mantendo-se a decisão recorrida."

*3. [Comentário] O acórdão é interessante por demonstrar as consequências da escolha do errado meio processual. 

Como o acórdão bem refere, o meio adequado teria sido a dedução do incidente de remoção do cabeça-de-casal, nunca, em função dos factos que era necessário provar, a interposição do recurso de apelação.

Em todo o caso, o recorrente não está impedido de vir a lançar mão desse incidente, dado que o acórdão da RG só define que, em função dos factos de que pode conhecer, se entende que não há motivos para remover o cabeça-de-casal.

MTS