18/09/2020

Jurisprudência 2020 (55)


Venda executiva; proponente;
substituição*


I. O sumário de RG 5/3/2020 (6191/10.5TBBRG-B.G1) é o seguinte:

1- Carece de legitimidade substantiva o executado que pretende a substituição do melhor proponente da venda através de leilão eletrónico, sua esposa, por uma sociedade comercial por si [isto é, pelo executado] constituída com o objecto social citado.

2- A referência simultânea de que o silêncio dos intervenientes seria interpretado como não oposição à alteração de proponentes não torna irregular a notificação do agente de execução para que os demais intervenientes processuais se pronunciem sobre essa pretensão.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão a conhecer é da nulidade da decisão da agente de execução de 07.11.2018 e da adjudicação em 23.05.2018 pela mesma a favor da proponente da melhor proposta, na venda por leilão eletrónico. [...]

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[...] O recorrente é executado.

Nos requerimentos que só por si atravessou apesar de mencionar que era sócio único e gerente de sociedade, o recorrente ao pretender que a proponente a quem foi adjudicado o imóvel, a sua esposa, seja substituída por essa pessoa coletiva não suscita conflito a resolver mediante o exercício de um direito próprio.

A sua esposa é que foi a única responsável da proposta de compra e sobre ela é que recaía o direito de arguir qualquer circunstância que influenciasse a sorte da venda, nomeadamente através do alegado erro ou lapso na utilização da respetiva plataforma eletrónica, considerando ainda os alegados poderes em que foi constituída para em nome dessa sociedade participar no leilão.

E se fosse assim tal e qual vislumbrar-se-ia também eventual interesse substantivo da sociedade para intervir por si na sorte da venda.

Consabidamente, a sociedade tem personalidade jurídica e judiciária não confundíveis com a do seu sócio e gerente.

Trata-se de uma pessoa coletiva, alegadamente, constituída para a “promoção e investimentos imobiliários, compra e venda de imóveis, revenda de adquiridos para esse fim, gestão de administração de imóveis…”, pelo que, segundo o interesse que remanesce do seu objeto social obviamente sem visar o asseguramento da manutenção da só agora alegada “casa de morada de família do recorrente, mulher e dois filhos maiores” e, assim, de qualquer expectativa pessoal do recorrente no asseguramento da substituição de proponentes baseado em direito estritamente pessoal por ele encabeçado.

Por isso e para já, pode-se concluir que o recorrente através dos seus requerimentos carecia de legitimidade substantiva, que tem a ver com a posição das partes perante qualquer direito subjetivo que pretendam ver reconhecido e é requisito da procedência das respetivas pretensões, como tal, questão de mérito que inevitavelmente se deve considerar no conhecimento do objeto deste recurso. [...]

De forma inconsequente o que o recorrente pretende é que o efeito da nulidade da decisão de 07.11.2018, repete-se, aquele em que se indefere a alteração de proponentes e que dá sem efeito a adjudicação ao cônjuge do recorrente, tenha um alcance retroativo, inconcebível não só pela ordem lógica das coisas como perante o disposto no artº 195º, nº 2 do CPC que, como não podia deixar de ser, determina unicamente a anulação dos termos subsequentes que dependam do ato anulado.

E mais incompreensível é essa pretensão quando se busca arrimo no disposto no artº 839º, nº 1, alª c), do CPC (1 - Além do caso previsto no artigo anterior, a venda só fica sem efeito: (…) c) Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º (…), norma esta inútil em si para a avaliação da nulidade de qualquer acto por precisar apenas o efeito da nulidade do ato da venda.

Acresce, quanto a essa decisão, no requerimento que se lhe segue, o recorrente ao pugnar pela substituição de proponentes parte seguramente do princípio que a adjudicação determinada pela agente de execução é válida: é na relação jurídica que dela emana que pretende que seja efetuada a alteração.

Contudo, ainda, não vislumbramos como se pode imputar qualquer irregularidade às ditas notificações de 15.06.2018 em que exequente e executados foram notificados pela agente de execução para, nomeadamente, requererem o que tivessem por conveniente face ao teor do primeiro requerimento do recorrente, nomeadamente para informarem se autorizavam a alteração da proponente para a citada sociedade com nova decisão de adjudicação, tendo sido advertidos que o silêncio seria entendido como nada opondo à alteração.

Refere o recorrente que “a senhora AE, no uso dos poderes e competências que o supra citado diploma legal lhe conferiu, aceitou que tal (eventual) alteração de proponentes se operasse desde que, uma vez notificados todos os demais executados e executados/habilitados, não se opusessem à requerida pretensão. Donde, ter efetuado as notificações de 15/06/2018, submetidas na plataforma citius sem que meritíssimo Juiz a quo invalidasse tais actos por manifesta impossibilidade legal. Isto é, e seguindo o raciocínio do douto despacho recorrido, as notificações em causa constituíam atos processuais nulos - cfr. artigo 195º do CPC”.

E associa tal conclusão de nulidade, portanto, à circunstância de ser tese do tribunal a impossibilidade de substituição de proponentes em sede da venda em leilão eletrónico, o que para nós é igualmente pacifico face ao respetivo regime legal, como pelos visto será para o recorrente porquanto não adianta qualquer argumento legal em contrário, antes admitindo (Dirá o aqui recorrente: admitindo que a lei não o prevê e partindo do pressuposto que o aqui recorrente desconhecia tal falta de previsão legal - o que se aceita e seja razoável supor - …).

Pelo que depois faz suportar o seu desiderato na circunstância de “tal aceitação por parte da Senhora AE em notificar os demais executados e executados/habilitados para se pronunciarem (ou não) sobre a pretensão requerida, criou uma legítima expectativa no aqui recorrente e na proponente H. V. (cônjuge do recorrente) que tal alteração se viesse a operar”.

Mas o recorrente era assistido por causídico e de todo modo não lhe é licito invocar o desconhecimento da lei (artº 6º do CC).

Acresce estamos perante uma infundamentada argumentação para se concluir pela designada frustração de expectativa.

O que do texto da notificação decorre é que qualquer decisão da agente de execução estava dependente da pronúncia dos demais intervenientes processuais; e, depois, efetivamente, que o silêncio dos intervenientes seria interpretado como não oposição à alteração de proponentes.

No entanto, ainda que se possa dizer que foi indevidamente aposta esta advertência na notificação, por desnecessária ou ineficaz em face do disposto no artº 218º do CC (como igualmente foi tese do tribunal a quo quando referiu-se à alternativa, se possível eventualmente, à venda por leilão eletrónico, nomeadamente pela falta do pagamento do preço pelo proponente cuja proposta tenha sido aceite, a venda por negociação particular, neste caso impondo-se que seja seguida a formalidade prevista no artº 825º do CPC), o que dessa notificação não resulta necessariamente é que a decisão sobre o requerimento estava antecipadamente tomada, que a alteração de proponentes apenas não surtiria efeito se houvesse alguma oposição, que o silêncio bastaria para que a alteração operasse ou que esta estava assegurada e seria determinada se todos os interessados silenciassem.

Tudo, pois, sem que pudesse prejudicar o discernimento do recorrente na defesa dos seus interesses se legitimamente tutelados, sabendo-se, de qualquer forma, que a declaração de nulidade deve passar ainda pelo crivo da influência da irregularidade “no exame ou na decisão da causa”, conforme prescreve o artº 195º, nº 1 do CPC.

Por tudo isto não se pode concluir, pois, que tanto tais notificações como a decisão de 07.11.2018 estão feridas de nulidade, as primeiras por criarem expectativa legitima do recorrente, a segunda por a frustrar, não fazendo aqui sentido aflorar-se a questão da capacidade financeira da proponente na medida também, como antedito, a venda por negociação particular é apenas invocada no despacho recorrido lateralmente à questão essencial que era a substituição de proponentes na modalidade de venda em leilão eletrónico nos precisos termos requeridos pelo recorrente."

*III. [Comentário] Pelo assunto nele tratado, o acórdão da RG é certamente um bom candidato às curiosidades jurisprudenciais do ano.

Quanto ao problema da aceitação tácita da alteração da proponente constante do despacho da AE, talvez tivesse bastado à RG aderir à clara fundamentação do tribunal a quo:

"[...] se é certo que é possível proceder, de imediato, à venda por negociação particular de qualquer bem a pessoa concreta e por preço definido, a verdade é que tal está dependente do acordo de todas as partes (exequente, executados e credores), nos termos do art. 832.º, als. a) e b), do NCPC. Nesta parte, importa notar que o acordo das partes tem de ser expresso, não bastando, para o efeito, o mero silêncio, uma vez que, como resulta art. 218.º do CC, o silêncio apenas vale como declaração quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção, o que não sucede no caso dos autos.

Assim sendo, conclui-se que o agente de execução não podia, pelo menos sem o acordo expresso de todas as partes (e dos proponentes) – insistindo-se que o silêncio não basta, o que, além, do mais, torna inócua a notificação que tenha sido dirigida às partes sob a cominação de o silêncio ter valor declarativo – decidir a alteração dos proponentes e sustar a notificação para o pagamento do preço pela proponente cuja proposta havia sido aceite.""

MTS