24/09/2020

Jurisprudência 2020 (59)


Mandatário judicial;
falta de poderes*


1. O sumário de RG 19/3/2020 (5588/19.0T8VNF-B.G1) é o seguinte:

I- Sendo as partes pessoas singulares ou sociedades, no processo de insolvência é sempre admitida a sua representação por mandatário que deve então, na expressão do nº 1, do artigo 35, do CIRE, estar dotado de poderes para transigir.

II- Todavia, esta expressão, conquanto seja muitas vezes utilizada em sentido técnico estrito, como simples sinónimo de convencionar ou acordar, deve aqui ser entendida em termos mais amplos, envolvendo necessariamente a possibilidade de confessar ou desistir, pois que, é através do exercício de tais faculdades que será possível obviar à realização da audiência, que constitui a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente.

III- E assim sendo, para haver uma legítima representação do requerente ou devedor bastará que a respectiva procuração confira poderes para confessar ou desistir, que são os poderes suficientes para poder obviar à realização da audiência, que, como se deixou dito, é a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente.

IV- A situação de insolvência a que alude o n.º 1 do art.º 3.º do CIRE depende da verificação da impossibilidade de o devedor cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas.

V- Os factos-índice elencados no n.º 1 do art.º 20, do CIRE, que constituem condição necessária para legitimar a iniciativa processual dos sujeitos aí mencionados, não são, necessariamente, e em todas as situações, suficientes para que se declare a insolvência, revelando-se de igual modo, como pressuposto imprescindível - com excepção da situação prevista na alínea g) -, que o incumprimento, em razão do seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua incapacidade patrimonial generalizada.

VI- Assim, para que possa ser decretada a insolvência têm de resultar demonstrados os factos ou circunstâncias em que o incumprimento ocorreu, em termos de permitir suportar a conclusão de que se está perante uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua “penúria ou incapacidade patrimonial generalizada”, pois que, o devedor apenas será insolvente logo que se torne incapaz de pagar as suas dívidas no momento em que estas se vencem.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como fundamento da sua pretensão recursória começa o Recorrente por alegar, em síntese, que nos presentes autos foram as partes notificadas atempada e devidamente, tendo estado presentes em audiência de julgamento, em conformidade com o que consta ata, na data devidamente agendada.

Contudo o Requerente, pese embora tenha sido representado por Mandatário forense, não se poderá afirmar que tenha estado presente tendo em conta a ausência de conferir ao Mandatário Forense poderes especiais para transigir, em conformidade com procuração forense junto com o Requerimento inicial.

E assim sendo, deveria o julgador a quo, em sede de sentença final ter homologado a desistência do pedido, nos termos legais supra referenciados e ter declarado a extinção da instância, o que, no entanto, não fez, tendo prosseguido com a Audiência de Julgamento e, em consequência, decretado a Insolvência do Requerido.

De harmonia com o disposto no artigo 35, do CIRE, (nº 1) “tendo havido oposição do devedor, ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o requerente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir” sendo que, (nº 2) “não comparecendo o devedor nem um seu representante, têm-se por confessados os factos alegados na petição inicial, se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º”, e, apenas (nº 3) “não se verificando a situação prevista no número anterior, a não comparência do requerente, por si ou através de um representante, vale como desistência do pedido”.

Ora, como referem L.A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “a obrigação de comparência é determinada pelo nº 1. Se as partes são pessoas singulares, são elas mesmas quem deve estar presente. Quando assim não seja, a presença é assegurada pelos respectivos administradores, na acepção do artigo 6º, devendo comparecer aqueles que, segundo a lei ou o estatuto do devedor, possam vinculá-lo. Em qualquer dos casos, porém, admite-se a representação por mandatário que deve então, na expressão do nº 1, estar dotado de poderes para transigir.

Esta expressão, conquanto seja muitas vezes utilizada em sentido técnico estrito, como simples sinónimo de convencionar ou acordar, deve aqui ser entendida em termos mais amplos, envolvendo necessariamente a possibilidade de confessar ou desistir. Realmente, é através do exercício de tais faculdades que será possível obviar à realização da audiência, que, se bem entendemos, será a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente” (Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, reimpressão de 2009, pg. 185). (…)

Ora na situação vertente, pese embora a procuração forense junta com o Requerimento inicial não confira poderes especiais para transigir, o certo é que confere poderes especiais para desistir da instância, e tanto basta para que se possa e deva considerar devidamente representado requerente, pois que, se não tem poderes para transigir ou confessar, tem poderes para desistir do processo, poderes esses suficientes para poder obviar à realização da audiência, que, como se deixou dito, “será a principal motivação da comparência pessoal ou equivalente”.

Improcede, assim, nesta parte a presente apelação."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito (e, em especial, o respeito devido à memória de um Colega entretanto falecido), a doutrina citada no acórdão não deixa de ser duvidosa. Se, como impõe o art. 35.º, n.º 1, CIRE, tiver sido concedido ao advogado poderes para transigir, é discutível que esse mesmo advogado possa simplesmente desistir ou confessar o pedido.

A razão é bem simples: a transacção pressupõe "recíprocas concessões" entre as partes (art. 1248.º, n.º 1, CC), ou seja, pressupõe uma desistência parcial do pedido pelo autor e uma confissão igualmente parcial do pedido pelo réu. Ora, uma coisa é uma desistência parcial do pedido em troca de uma confissão parcial do pedido, ou vice-versa, outra é uma desistência ou confissão do pedido, ainda que parcial, sem qualquer contrapartida da outra parte.

O argumento a maiori ad minus só pode funcionar na hipótese inversa: se for concedido ao mandatário judicial poderes para desistir ou para confessar o pedido, então esse advogado também tem poderes para celebrar uma transacção (que é, dito de forma simples, uma desistência ou uma confissão do pedido com contrapartidas da outra parte).

b) A RG entendeu que a concessão de poderes para desistir da instância é suficiente para satisfazer a exigência da concessão de poderes para transigir constante do art. 35.º, n.º 1, CIRE. Salvo a devida consideração, não se pode acompanhar esta orientação.

Desde logo, há uma diferença fundamental entre a transacção judicial e a desistência da instância. A transacção judicial termina um litígio (art. 1248.º, n.º 1, CC), ou seja, situa-se no plano do mérito da acção e resolve definitivamente o litígio entre as partes; a desistência da instância apenas faz cessar o processo pendente (art. 285.º, n.º 2, CPC), isto é, não se situa no plano do mérito da acção e, por isso, não impede a repropositura da acção. Sendo assim, não se vislumbra como é que a concessão de poderes para terminar o processo sem qualquer decisão quanto ao mérito pode equivaler à concessão de poderes para transigir sobre o mérito da causa.

A RG argumenta que os poderes para desistir da instância são "poderes [...] suficientes para poder obviar à realização da audiência [final]". Também isto não é verdade. Como decorre do disposto no art. 286.º, n.º 1, CPC, a desistência da instância depende da aceitação do réu se for requerida depois da contestação do réu. Disto resulta que, sem a anuência do devedor demandado, o advogado do autor não pode "obviar à realização da audiência".

c) Em conclusão: como pediu o devedor recorrente, deveria ter-se aplicado o disposto no art. 35.º, n.º 3, CIRE e considerado que o autor, pela falta de representante com poderes para transigir, desistiu do pedido. O efeito cominatório imposto por este preceito prevalece sobre a eventual sanabilidade do vício nos termos do art. 48.º CPC.

MTS