29/09/2020

Jurisprudência 2020 (62)


Revisão de sentença  estrangeira;
ordem pública internacional*


1. O sumário de RL 7/4/2020 (405/19.3YRLSB-2) é o seguinte:

É irrelevante, no caso concreto, que se saiba que no processo onde foi proferida a decisão (pelo cônjuge marido), não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (o que se declara tendo em vista o disposto no art. 980/-e do CPC). Já que a mulher, embora se encontrasse presente, se limitou a ouvir o divórcio pronunciado pelo marido, sem se poder opor ao mesmo.

É que o divórcio que resulta de uma declaração unilateral não pressupõe, logicamente, o contraditório ou a igualdade das partes. Daí que seja discutível a sua revisibilidade em abstracto. Mas, admitido que possa ser confirmado, como se viu que no caso pode ser, não se pode voltar ao início e pô-lo em causa por não haver contraditório ou igualdade das partes. Assim, o estudo citado de María Dolores Cervilla Garzón, ponto 42, nota 33, lembra que o facto de não existir motivo para oposição à pretensão de dissolução tão pouco é algo estranho para o ordenamento jurídico espanhol, pois desde a reforma de 2005 é possível o divórcio ou separação por simples vontade unilateral de uma das partes, sem que a outra tenha possibilidade de opor-se à dita pretensão; veja-se acima o que também se disse sobre o direito português, relativamente ao divórcio por separação de facto ou por ruptura definitiva do casamento, e sobre direito francês, relativamente ao divórcio por alteração definitiva da relação conjugal).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Há muito que quer o direito islâmico quer o direito judaico, relativo a um certo tipo de divórcio, têm servido de exemplo de um conjunto de normas que põe em causa princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português (OPI) e que, por isso, não deve ser aplicado.

Note-se que é também este exemplo, que leva a que se tenham em consideração os fundamentos de uma decisão de divórcio, que põe em evidência que não é correcta a posição de que o reconhecimento só pode ser recusado quando a parte decisória da sentença a rever é, em si mesma, contrária à OPI (baseada no teor do artigo 1096/-f do CPC na redacção de 1939/1961, que se referia a ‘decisões’ contrárias), sendo irrelevante que os fundamentos em que assenta sejam ou não contrários à OPI (sem que essa posição tenha em conta que os arts. 1096/-f do CPC na redacção de 1996 e o art. 980/-f do CPC na redacção de 2013, falam em ‘resultados’ incompatíveis).

O que, indo mais longe, também põe em causa a forma como vem sendo entendida a afirmação de que o sistema português de revisão de sentenças estrangeiras é um sistema de reconhecimento individualizado, com controlo fundamentalmente formal (dito de delibação), isto é, quando a tal é dado o sentido de que não seria possível apreciar o mérito da decisão a rever, querendo-se com isso tirar impedimentos à actuação do tribunal, designadamente no sentido de não ser necessário conhecer os fundamentos da decisão ou no sentido de não se poder controlar os fundamentos da decisão.

Ora, como se diz no ac. do STJ de 14/03/2017, proc. 103/13.1YRLSB.S1: “apesar de se afirmar que, em Portugal, o reconhecimento de sentenças (nomeadamente) arbitrais estrangeiras observa o sistema de revisão formal ou delibação, não apreciando o juiz, em regra, o mérito da causa, convém esclarecer que se, em geral, assim é, o nosso sistema também contém inegáveis pontos de aproximação a elementos próprios dos de revisão de mérito.”

Ou como diz Sampaio Caramelo, em O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, 2016, Almedina, pág. 128 e segs: a “salientada proibição da revisão de mérito da sentença arbitral pelo juiz do controlo, tem só a ver com aquilo que consta do Guia do ICCA sobre a aplicação da CNI. Ou seja, que “o tribunal estadual não detém o poder de substituir a decisão do tribunal arbitral a respeito do mérito pela sua própria decisão, ainda que os tribunais tenham cometido erro de facto ou de direito.”

Ou seja, não se trata de uma “proibição de reexame do mérito” “que é, aliás, desmentida sempre que o juiz de controlo seja chamado a apreciar a contrariedade da sentença arbitral com a ordem pública ou a ordem pública internacional” (ainda segundo o mesmo autor, obra e local citados).

Voltando à questão do controlo da decisão ou dos fundamentos, como diz João Gomes de Almeida (O divórcio em direito internacional privado, Almedina, Out2017, pág. 625), se aquela posição [controlo da decisão] fosse certa, “nenhuma sentença estrangeira que decret[ass]e o divórcio […] [seria] susceptível de ser contrária à OPI […] uma vez que o Direito português admite o divórcio.” Ora, a “susceptibilidade da violação da OPI só surge se for perfilhada a posição propugnada de que é possível atender aos fundamentos da sentença estrangeira. O Direito marroquino permite demonstrar isso.” (pág. 627).

Posto isto.

O aspecto mais marcante desses direitos – num de vários modos de dissolução do matrimónio - que serve para o exemplo, é o facto de o marido poder acabar com o casamento simplesmente mediante o repúdio da mulher e sem que a mulher possa fazer o mesmo. Dito nos termos do autor acabado de citar, agora na pág. 626: “O instituto do talak [talaq segundo outras traduções] permite [apenas] ao cônjuge marido dissolver o casamento por sua única e exclusiva vontade, sem que o cônjuge mulher se possa opor.” No direito judaico trata-se do ghet, segundo informa João Gomes de Almeida (na apresentação de 2019 citada abaixo, pág. 79).

Note-se que o art. 44-2, do CEP de 1957-1958-1993, a mulher também tem a faculdade de repudiar o marido (= tamlik), mas só se ela lhe for dada pelo marido (em virtude do direito de opção). É o que também resulta do art. 89 do CF de 2004; ou seja, está dependente da vontade do marido, como explica María Dolores Cervilla Garzón, no ponto 10 do seu estudo, tal como o ac. do TRL de 2007 citado abaixo.

Ora, considerava-se que aquele regime não era aceitável porque não se concebia que um casamento pudesse terminar por vontade de apenas um dos cônjuges, sem qualquer fundamento objectivo; mais tarde, começou-se a entender, que aquele regime também não era aceitável por violação do princípio da igualdade: só o marido é que podia acabar com o casamento, por sua única vontade, não a mulher. É já principalmente desta perspectiva, por exemplo, que João Gomes de Almeida analisa a questão na obra citada, págs. 626 a 629.

Há um terceiro argumento que é utilizado e que é o facto de o repúdio/talaq [pelo menos até 2004 pode-se continuar a usar a expressão correctamente] ser, durante um determinado período, livremente revogável (quando o seja, porque nem todos os repúdios serão revogáveis, como resulta das normas transcritas acima) por vontade unilateral do cônjuge marido, o que atentaria contra os princípios da igualdade e da dignidade humana da mulher. Mas, como resulta de tais normas e do que é lembrado por João Gomes de Almeida e pelo ac. do TRL de 2007, a questão não se pode chegar a pôr porque, durante esse período, o divórcio não é definitivo e por isso não pode ser pedida a sua revisão (art. 980/-b do CPC). Pelo que este argumento não é válido (no mesmo sentido, os pontos 47 e 48 do estudo de María Dolores Cervilla Garzón).

Hoje (e é hoje que interessa, porque é com a concepção da OPI actual que há que confrontar o pedido do reconhecimento), o primeiro argumento é afastado com a constatação de que, por exemplo, o direito espanhol, pertencente à mesma família jurídica de direito romano-germânico em que Portugal está inserido, aceita o divórcio a pedido [num casamento que tenha durado pelo menos três meses: é o que resulta da conjugação do art. 86 [redacção da Ley 15/2005, de 08/07] com as circunstâncias previstas no art. 81/2º, ambos do CC espanhol; Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 736-737 fala deste divórcio). E mesmo no direito português há quem veja – embora o faça mais em sentido crítico do que como descrição do regime - na hipótese de divórcio prevista no art. 1781, alíneas (a) e (d) do CC, um divórcio a pedido (e Guilherme Oliveira, obra e local citados, sugere – faz-se uma síntese grosso modo - que é o que poderá acontecer caso se aplique aquela alínea de uma forma condescendente ou facilitada, como, por exemplo, no caso de se aceitar a alegação de ‘falta de afecto’ como motivo de divórcio aí inserida). Ou seja, a ideia do divórcio a pedido já não é estranha ao nosso ordenamento jurídico e, por isso, já não provoca um sentimento de rejeição. De resto, não havendo, ainda, em Portugal, o divórcio a pedido, já existe, como se vê, desde 2008, o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, embora com fundamentos previstos legalmente (ar. 1781 do CC), entre eles os previstos na alínea (a) em que basta a simples separação de facto por um ano consecutivo e na alínea (d) quanto à ruptura definitiva do casamento. E o mesmo se diga do direito francês, como se verá mais à frente.

O segundo argumento, no entanto, continua válido e, por isso, em abstracto, o divórcio muçulmano decorrente da vontade unilateral do marido não é aceitável segundo a OPI (do Estado português), por violação do princípio da igualdade.

Os autores chamam, no entanto, a atenção para que a questão não deve ser apreciada em abstracto, mas em concreto, e que a ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado só deve levar a que não se aceite o resultado da aplicação do direito estrangeiro que esteja em causa, quando a situação jurídica, que foi por ele regulada, tenha uma conexão muito próxima com o Estado português; não a tendo, o tribunal português não se deve imiscuir na questão. Para além de não o dever fazer quando é a própria mulher que vem pedir o reconhecimento da sentença estrangeira. E ainda, segunda João Gomes de Almeida quando “se apurar que, no caso concreto, se verificava algum dos motivos que são, segundo o direito material português, fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges” (pág. 628).

(sobre tudo isto, para além do autor e obra já muito citados, veja-se, por exemplo:
- Ferrer Correia, Lições de DIP, 1973, Universidade de Coimbra, pág. 569;

- Teixeira de Sousa, O regime jurídico do divórcio, Almedina, 1991, pág. 20;

- Luís Lima Pinheiro, DIP, vol. III, tomo II, Reconhecimento de sentenças estrangeiras, 2019, 3.ª edição, AAFDL, págs. 66 a 71, 188 a 237, especialmente 227 a 230;

- Mariana Silva Dias, O reconhecimento do repúdio islâmico pelo ordenamento jurídico português: a excepção de ordem pública internacional, publicado na revista Julgar, n.º 23, 2014 e consultável online: que, para “o caso em que o repúdio é pronunciado no estrangeiro, previamente à emigração das partes para um Estado ocidental”, se pronuncia “a favor do reconhecimento do repúdio pelo Estado do foro. Com efeito, a dissolução do casamento verificou-se previamente à existência de qualquer ligação das partes com o Estado do foro, de acordo com um procedimento perfeitamente válido no país de origem. Numa situação destas, com uma conexão tão baixa com o Estado ad quem, será difícil que os resultados produzido pelo reconhecimento da sentença sejam manifestamente contrários aos princípios de ordem pública internacional e seria mais prejudicial ainda para as partes se estas fossem obrigadas a iniciar um segundo procedimento de divórcio no Estado do foro.” É esta autora que em nota lembra que “O repúdio apenas tem de ser autenticado por três adouls, que são os notários encarregues de emitir documentos autênticos sobre casamentos e divórcios e que são supervisionados pelo tribunal.” Noutra nota lembra “A esse prazo chama-se Idda e tem a duração de três meses ou três períodos menstruais. Durante esse tempo, a mulher vive afastada do marido e não pode casar-se novamente ou ter relações sexuais”, notas que, entre o mais, serviram para melhorar a tradução que foi feita da acta em causa. Em texto, a autora ainda escreve: “seguidamente, coloca-se o problema de saber se apenas estão sujeitas a revisão as decisões proferidas por um órgão jurisdicional ou se este regime de reconhecimento deve ser aplicado analogicamente às decisões de entidades religiosas que, em ordens jurídicas estrangeiras, delegam poderes de autoridade. Segundo Lima Pinheiro, «por “decisão” entende-se qualquer ato público que, segundo a ordem jurídica do Estado de origem, tenha força de caso julgado». Assim sendo, consideramos que as decisões provenientes de ordenamentos jurídicos que reconhecem força de caso julgado aos actos emitidos pelas autoridades religiosas neles sedeadas, devem ser alvo de revisão e confirmação quando se suscite o seu reconhecimento perante o Estado português.”

- María Dolores Cervilla Garzón, La aplicabilidad de las normas del Código de Familia marroquí (la Mudawana) que regulan el divorcio en España: el filtro constitucional, publicado em Cuadernos de Derecho Transnacional, n.º1 de 2018, editada por por el Área de Derecho Internacional Privado de la Universidad Carlos III de Madrid., https://doi.org/10.20318/cdt.2018.4119; [2014:313];

- ac. do TRL de 18/10/2007, proc. 10602/2005-2, que, entre o muito mais, lembra a posição de Ferrer Correia: “O repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano ofende o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges. Mas se a mulher deu o seu assentimento ao repúdio – ou no próprio acto ou mesmo posteriormente – não se descortinam razões para fazer apelo à ordem pública; isto no caso de o repúdio ter sido realizado no estrangeiro, ao abrigo da lei do domicílio comum das partes, competente nos termos do art. 31º, nº 2 do Código Civil. O mesmo se diga se é a mulher quem pede em Portugal o reconhecimento dos efeitos do repúdio, v.g., porque pretende contrair segundo casamento” (Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, páginas 415 e 416);

- e uma apresentação feita por João Gomes de Almeida, sobre Casos práticos de divórcio transnacional, págs. 59 a 89, especialmente págs. 68 a 80 e 87 a 89 de um ebook do CEJ sobre o Direito Internacional da Família, Março de 2019).

Ora, o caso dos autos é precisamente um daqueles casos em que não existe conexão relevante com o Estado português: o requerente e a requerida eram ambos marroquinos e residentes em Marrocos. O divórcio foi decidido em Marrocos em 1995, cerca de 1 ano e meio depois do casamento e tal aconteceu há mais de 24 anos. O requerente tem a nacionalidade portuguesa só desde 2009 e vive em França, enquanto a ex-mulher continua a viver em Marrocos.

Assim sendo, o reconhecimento, no caso, não deve ser negado, com base na OPI."

[MTS]