21/06/2022

Jurisprudência 2021 (223)


Estabilidade da instância;
momento a quo; citação


1. O sumário de STJ 17/11/2021 (3834/18.6T8VFR.P1.S1) é o seguinte:

I - Até à citação do réu, o autor pode alterar a conformação da ação por si realizada anteriormente na petição inicial que apresentou, na extensão que entender, mediante modificação dos sujeitos ou do objeto da ação, sendo admissível apresentar nova petição, demandar outros réus, modificar o pedido ou alterar a causa de pedir.

II - Tendo o autor apresentado antes da citação dos réus nova petição inicial na qual altera os pedidos formulados de cumulativos para subsidiários ou dá sem efeito dois artigos do articulado inicial, tal é-lhe permitido sem que o tribunal a quo possa opor, como indeferimento, que essas modificações são matéria de incidente que obriguem previamente à citação dos réus e a que estes se pronunciem sobre a matéria da alteração.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Diz-se a recorrente ré nas alegações/conclusões de revista que o autor nas suas alegações de apelação, e só aí, apresentou um pedido distinto daquele que formulou em primeira instância, esforçando-se depois a recorrente por sublinhar que no tribunal a quo “apresentou petição inicial corrigida retirando os incisos alegados nos arts. 19.º e 20.º da sua p.i” “alterou ampliando o pedido constante da al. b) do petitório constante da petição inicial”, enquanto no Tribunal da Relação teria peticionado, no entender da recorrente, a “admissão de nova petição inicial com alteração da causa de pedir e do pedido”.

É este o ponto que a recorrente elege como essencial da sua fundamentação recursiva, importando deixar desde já respondido que não é exato o que diz e que, uma vez desfeito esse equívoco torna-se clara a resposta à questão objeto do recurso.

Da cronologia exposta, verificamos que o autor apresentou petição inicial contendo na al. b) o pedido de declaração da nulidade por simulação e a impugnação pauliana e assim a ineficácia dos negócios jurídicos referidos (…)”

Porque nessa mesma petição o autor havia requerido que o tribunal a quo procedesse oficiosamente ao registo da ação, tendo sido indeferido esse requerimento, o demandante solicitou a reforma deste despacho de indeferimento, que teve como resposta um novo despacho do tribunal a quo indeferindo o pedido de reforma e deixando nota nessa decisão de que  ainda não tinha sido cumprida a citação dos réus “adiantando” igualmente afigurar-se ser substancialmente incompatível a cumulação, a título principal, do pedido de nulidade por simulação e o de impugnação pauliana  o que seria gerador de ineptidão da petição inicial.

É na sequência deste despacho que o autor vem apresentar nova petição inicial ou petição inicial corrigida, (sendo indiferente a designação que se use, como veremos adiante), retirando os arts. 19.º e 20.º desse articulado– e alterando o pedido formulado em b) do qual passou a constar declarar-se a nulidade por simulação, ou, quando não assim, subsidiariamente, a impugnação pauliana e assim a ineficácia, dos negócios jurídicos referidos, juntando formalmente um novo articulado de petição que replica a anterior com exceção da exclusão dos pontos 19 e 20 e da redação do ponto b) do pedido que vem alterada no sentido da subsidiariedade dos pedidos e não da cumulação.

Finalmente, por despacho proferido após ter sido apresentada essa nova petição, o tribunal a quo veio configurar essa apresentação como uma retificação de lapso material e uma ampliação do pedido que se traduziria em incidente, tendo ordenado que depois da citação ainda não realizada dos réus fossem estes, a seguir, notificados para se pronunciarem, tendo este incidente tido conclusão com o despacho de 27-6-2019 que indeferiu a apresentação de petição inicial de 3-12-2018.

Uma primeira evidência feita constar na decisão recorrida, mas que as conclusões de recurso pretendem desconsiderar é a de a nova petição inicial (apresentada em 3-12-2018) contendo a alteração do pedido cumulativo de nulidade por simulação e de impugnação pauliana para pedido subsidiário de nulidade por simulação ou de impugnação pauliana e assim a ineficácia dos negócios jurídicos referidos, ter sido apresentada num momento em que os réus ainda não tinham sido citados. E uma segunda evidência processual é a de, à data da apresentação desta nova petição não ter o tribunal a quo proferido qualquer decisão no sentido de haver julgado inepta a petição inicial (o que só vem a ocorrer em 20-12-2019).

Em verdade, o único significado útil que pode extrair-se do despacho de 26-11-2018 é o do indeferimento do pedido de reforma da decisão que anteriormente havia indeferido o registo oficioso da ação, e nada mais. São destituídos de valor jurídico de decisão os considerandos ou advertências que aí se tenham deixado vertidos no sentido de existir uma situação que seria enquadrável como incompatibilidade dos pedidos deduzidos e geradora de ineptidão, podendo dizer-se que nessa decisão o julgador, não decidindo, deixou o prognóstico do que iria decidir mais tarde. Só que esta quase prognose de decisão futura não declara, não decide, qualquer ineptidão ou irregularidade dessa peça processual valendo apenas como observação excrescente e prenunciadora do que os termos da ação, no estado em que estava nesse momento, faziam prever um desfecho de nulidade de todo o processo por ineptidão.

Advertido por essa observação feita constar nesse despacho (ou por discernimento jurídico autónomo dela), o autor, antes de estarem os réus citados, veio, entretanto, a proceder à alteração do pedido conformando-o de regularidade subsidiária e não cumulativa, subtraindo dos factos os antes inscritos nos arts. 19 e 20 e expurgando a petição inicial dos vícios que, tendo sido sinalizados, se diziam ir determinar, a seu tempo, a nulidade de todo o processo.

Posto isto e resolvido o equívoco de se querer configurar que o autor só nas conclusões de recurso corrigiu a petição inicial apresentada, alterando o pedido e extraindo dois artigos do articulado, este esclarecimento resolve, em simultâneo, a alusão que a recorrente faz a que existiria excesso de pronúncia por a Relação ter conhecido de matéria que lhe estava vedada. Afirma ela que, não obstante em 3.12.2018 o autor ter apresentado um novo articulado inicial, não se pode aceitar este como uma nova petição, mas apenas de uma retificação de erros materiais e uma ampliação/alteração do pedido como o entendeu o tribunal em primeira instância. Isto é, por razões puramente semânticas (o que chamar à realidade), defende a recorrente que o Tribunal da Relação ao aludir à apresentação como nova petição, pronunciando-se sobre ela, estava a exceder a sua medida de pronúncia porque, afinal, só podia tratar da alteração do pedido ou da retificação do articulado inicial consistente na extração de dois dos seus artigos, ou seja, do mesmo, porém, com outro nome. Ora, dito outra vez, a questão que se coloca que se coloca é a de saber se a alteração da petição inicial que a autora realizou em 3-12-2018, apresentando um novo articulado integral (no qual inclui o pedido final de registo oficioso da ação pelo tribunal e que já tinha sido indeferido) é admissível ou não e isso era o objeto da apelação não se tendo excedido, minimamente, o Tribunal da Relação nesse conhecimento. E quanto a essa questão, adiantando a nossa posição, a resposta é afirmativa e confirma a decisão recorrida.

A primeira e única indicação normativa de que nos podemos socorrer é a contida no art. 260º onde se dispõe que “Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.” Sabendo-se que este consagra o princípio da estabilidade da instância dele decorre que é a citação do réu, e só a citação do réu, que torna estáveis os elementos essenciais da causa, elementos que são os sujeitos, a causa de pedir e o pedido - art. 564 al. b) do CPC. Assim, no que se refere à petição inicial, esse princípio da estabilidade da instância enunciado permite que antes de efetuada a citação, ato definidor da imutabilidade dos elementos essenciais da causa, é admissível a apresentação de nova petição, demandar outros réus, modificar o pedido ou alterar a causa de pedir – vd. A. Varela/J. M. Bezerra/ Sampaio e Nora – Manual de Processo Civil, 2ª edição págs. 278.

Como expressamente refere Alberto dos Reis “a instância fica iniciada com o ato da propositura da ação; mas só se fixa com o ato da citação do réu. Enquanto este não for citado, a situação é de instabilidade” - Comentário, 3º, pág. 66 -. E também, em igual direção aponta Lebre de Freitas para quem “(…) A instância é inicialmente conformada pelo autor na petição inicial, nos seus elementos subjectivos (“quanto às pessoas”) e objectivos (pedido fundado numa causa de pedir). Até ao momento da citação, o autor pode ainda alterar a conformação por si efectuada, mediante modificação dos sujeitos ou do objecto da acção, sem prejuízo da não retroactividade dos efeitos da proposição que se reportem apenas à nova petição que apresente. A citação do réu fixa os elementos definidores da instância, que seguidamente só é alterável na medida em que a lei o permita.” - Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2014, pág. 505.

Esta exposição torna decisivo o argumento segundo o qual a decisão recorrida entendeu que deveria ser negado provimento ao recurso e que a eventual existência de causa de ineptidão da petição inicial pode ser corrigida pelo autor antes da citação dos réus sem qualquer obstáculo, o que determina a irremediável improcedência da revista.

Sabendo-se que o conhecimento completo do objeto do recurso, sem padecimento de omissão, se basta com a apreciação das concretas questões ou pretensões que devesse apreciar e que as questões a resolver significam as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal não se confundindo com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia, no caso em decisão a única questão a decidir é a que já se deixou supra decidia e que se resume em saber se é admissível ou não a apresentação da nova petição inicial por parte do autor em 3-12-2018.

Embora supérfluo, de acordo com o afirmado anteriormente, sempre referiremos que os argumentos suscitados pela recorrente a propósito de ser ou não admissível a alteração/ampliação do pedido ou a retificação de lapsos materiais dos articulados, não obstante o seu esforço logicidade são irrelevantes, porquanto, tal indagação apenas poderia colocar-se se a presentação da nova petição inicial com as alterações referidas tivesse ocorrido depois da citação dos réus , isto é depois de estabilizada a instância, e tal não ocorreu.

A decisão recorrida, num exercício de generosidade argumentativa e ex abundanti, depois de decidida a questão objeto do recurso tenha exorbitou e questionou, já em academismo de hipótese a situação que ocorreria no caso de a citação dos réus já ter sido realizada, defendendo que nessa circunstância se deveria admitir a petição alterada ao abrigo do dever de gestão processual do juiz contido no art. 6 nº 2 por referência ao art. 554 nº 2 ambos do CPC. Todavia, mantemos que esse excurso suplementar é de todo acessório uma vez que a verificada ausência de citação dos réus torna desnecessário todo e qualquer argumento auxiliar para aceitar a alteração introduzida na petição inicial pelo autor. Em verdade, o estabelecimento do dever de gestão processual se cria um paradigma de aproveitamento material do processo no sentido de o juiz o conduzir à sua finalidade de justa composição do litígio, apartando o formalismo cominatório que veja em todas as falhas processuais das partes motivos para impossibilitar o avanço do processo, esse dever de gestão processual não impediria, no entanto, o juiz de aguardar o momento oportuno para julgar inepta a petição inicial. O art. 6 nº 1 do CPC, ao referir expressamente que o dever de gestão não exime as partes ao impulso processual que lhes esteja especialmente imposto, autoriza o julgador a entender que, quanto esteja em causa uma correção que pode significar obviar à ineptidão, não lhe cabe acionar mecanismos de remediação. Mas essa não é, como observado na decisão recorrida, a única interpretação que pode fazer-se desse princípio uma vez que desse preceito se extrai igualmente a possibilidade inversa, isto é, a de o tribunal diligenciar no sentido da correção dessa natureza.

O que é inquestionável e não matéria de amplitude interpretativa, que nem sequer a decisão em primeira instância afronta, evitando apenas aludir a esse normativo, é que, no caso, a solução para admitir a alteração, correção, retificação ou apresentação de nova petição, como quer que se queira chamar, está em momento anterior, naquele em que, não tendo sido ainda realizada a citação dos réus, o autor alterou a petição inicial ao abrigo do art. 260 do CPC. Não tem igualmente valor acrescido a sub hipótese académica, que a decisão recorrida se consente, no sentido de indagar se a alteração produzida pelo autor consubstanciou ou não uma alteração da causa de pedir ou se o nº 6 do art. 265º do CPC, permitindo a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir comtemplaria a situação em apreciação. Uma vez mais, não é necessário argumentar nas periferias do objeto do recurso quando no momento em que o autor realizou a alteração da petição inicial tal lhe era inteiramente permitida e sem restrição. Em resumo, a alteração realizada em 3-12-2018 pelo autor à petição inicialmente apresentada, seja como alteração ou retificação de erros materiais seja com que designação se queira chamar-lhe, era legalmente admissível e por isso não há distinção de regime consoante a tipificação que se quisesse atribuir a essa modificação."

[MTS]