24/06/2022

Jurisprudência 2021 (226)


Prova pericial;
desistência

1. O sumário de RP 2/12/2021 (1928/20.7T8PNF-A.P1) é o seguinte:

I - A perícia pode ser requerida por uma ou mais partes, exigindo-se, todavia, sob pena de rejeição, que com o respectivo requerimento seja logo indicado o seu objecto e enunciadas as questões de facto cujo esclarecimento se pretende obter através da referida diligência, que tanto se pode reportar aos factos articulados pelo requerente, como aos alegados pela parte contrária.

II - A desistência da perícia é totalmente livre quando surja em momento processual que permita à contraparte requerer a realização de prova pericial, sem qualquer limitação.

III - Fora desse caso, ela depende da anuência da parte contrária, que para alguns autores tem de ser expressa, outros entendendo, numa leitura mais liberal e actualista do artigo 474.º do Código de Processo Civil, que apenas se exige a notificação da parte contrária para que, querendo o prosseguimento da perícia, assim o declare.

IV - Um réu não ocupando no processo posição de parte contrária em relação a um réu no mesmo processo, embora cada um deles assumindo defesas separadas, não tem de anuir à desistência da perícia manifesta pelo co-réu, nem pode requerer o prosseguimento da diligência em causa.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A perícia pode ser requerida por uma ou mais partes, exigindo-se, todavia, sob pena de rejeição, que com o respectivo requerimento seja logo indicado o seu objecto e enunciadas as questões de facto cujo esclarecimento se pretende obter através da referida diligência, que tanto se pode reportar aos factos articulados pelo requerente, como aos alegados pela parte contrária [Artigo 475.º do Código de Processo Civil].

Nos termos do artigo 476.º a lei processual civil,

“1 - Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição.
2 - Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade”.

Com a contestação que juntou aos autos, o Réu E… requereu a realização de prova pericial, cujo objecto expressamente indicou.

No decurso da audiência prévia foram Autores e a Ré D… ouvidos acerca do requerido meio de prova. Sem manifestação de adesão ao mesmo, não requerendo a sua ampliação, ou objecto distinto, limitaram-se a declarar nada terem a opor à realização da prova pericial requerida pelo Réu E….

Após deferida a sua realização, o requerente da prova pericial veio aos autos declarar o seguinte: “O R. desiste da perícia à letra junta aos autos”.

Mais de um mês volvido sobre o despacho proferido a 11.05.2021, onde se especifica que, face à desistência da perícia, a mesma não se realizará, a Ré D…, invocando lapso por parte da secção [Apesar de notificada do despacho que indica que a perícia não terá lugar por dela ter o requerente desistido], que não providenciou para que fosse realizada a perícia ao contrato promessa, requereu que fosse solicitada a sua realização à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

Apesar dos esclarecimentos prestados pelo co-Réu E… no seu requerimento de 30.06.2021 e do assertivo despacho judicial proferido na mesma data, insiste a Ré D… pela realização da perícia ao contrato promessa com o argumento de que o Réu E… apenas desistiu da perícia à letra.

A vontade real do Réu, ao manifestar-se no sentido que desiste da perícia à letra junta aos autos, sempre haveria de ser determinada de acordo com o sentido que um declaratário normal, medianamente diligente e esclarecido, colocado na posição do real declaratário, pudesse extrair do comportamento do declarante [Artigo 236.º do Código Civil].

Ora, à luz dum declaratário médio e medianamente sagaz, a declaração do réu não comporta outro sentido que não seja a desistência da prova pericial por si requerida, incluindo a parte em que devia incidir sobre o contrato promessa.

E essa certeza é reforçada pelos esclarecimentos prestados pelo requerente da perícia através do seu requerimento de 30.06.2021 onde, depois de referir que “a prova já produzida nos autos é absolutamente suficiente para se concluir pela “fabricação” do contrato promessa”, adianta que “só por lapso o Reqte não desistiu da perícia na sua globalidade no requerimento de 26.04.2021, induzido pelo tema principal do requerimento, a letra”.

Desta forma, se dúvidas pudessem existir quanto ao verdadeiro sentido e alcance da declaração do Réu E… ao desistir da perícia, com o seu requerimento de 30.06.2021, que traduz a sua vontade real, as mesmas deixariam definitivamente de subsistir.

A persistência da recorrente, insistindo em atribuir à declaração do co-Réu uma interpretação que a mesma não consente e que ele próprio enjeita, só pode ser entendida como um meio de alcançar objectivos esconsos, designadamente o de protelar a realização do julgamento, tendo, de resto, requerido o seu adiamento quando pediu o prosseguimento da perícia sobre o contrato promessa mais de um mês decorrido sobre a vontade expressa do co-Réu de desistir da diligência probatória por si requerida, e por cuja realização, em momento oportuno, a mesma não manifestou qualquer interesse.

Segundo o artigo 474.º do Código de Processo Civil, “A parte que requereu a diligência não pode desistir dela sem a anuência da parte contrária”.

O normativo em causa, que reproduz integralmente o artigo 576.º do anterior diploma, e o antecedente artigo 584º, § único, do Código de 1939, tem a sua razão, na explicação de Alberto dos Reis [“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, Coimbra Editora, Reimpressão, 1987, págs. 191 e 192] na “necessidade de evitar que a parte contrária seja vítima de manobra astuciosa do requerente”, pois, a não existir tal previsão legal, poder-se-ia configurar a situação de que “requerido arbitramento por uma das partes, a outra abstinha-se de o requerer, fiada que aproveitaria a diligência promovida pelo seu antagonista para formular quesitos sobre factos que lhe interessaria fazer averiguar; passado o prazo legal fixado no art. 584º, o requerente desistiria do exame ou vistoria e colocaria a parte contrária perante a impossibilidade de se servir deste meio de prova”. Assim, “se o requerente declarar que pretende desistir do exame ou vistoria, tem de notificar-se a parte contrária”, a qual terá que pronunciar-se “se concorda com a desistência, ou se opõe a ela”. No primeiro caso, “o requerimento fica sem efeito” e, no segundo caso, “subsiste”.

Prevenindo a situação em que nenhuma declaração seja feita, acrescenta: “se o notificado nada disser a desistência não tem valor. Para que o silêncio tivesse a significação de anuência, seria necessário que a lei lha atribuísse”.

Em consonância com este entendimento, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª Edição, Almedina, págs. 323 e 324] argumentam que “a partir do momento do ato de proposição a parte contrária pode confiar em que a perícia se vai realizar e prescindir de, ela própria, a requerer; a necessidade da sua anuência, como conditio júris sem a qual a desistência, como ato unilateral, não é eficaz, evita que essa confiança possa ser frustrada”. E precisam que “a anuência da parte contrária tem de ser expressa, não podendo ser dado valor ao silêncio observado perante a notificação que lhe seja feita do requerimento de desistência”, considerando tratar-se “de figura semelhante à da aceitação da desistência da instância após a contestação do réu”.

Ainda em idêntico sentido, defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, Reimpressão, 2019, pág. 538], que “a anuência exigida por esta norma tem de ser expressa, não podendo derivar de mera notificação com a cominação de, nada dizendo a parte, se entender que a mesma aceita a desistência da diligência”.

Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro adoptam posição distinta. Partindo do raciocínio de que a norma em causa “procura tutelar o interesse da contraparte na realização da perícia”, consideram que a posição que advoga a necessidade de uma anuência expressa “assente numa interpretação puramente gramatical do enunciado legal é excessiva”, pelo que deve considerar-se caduca tal doutrina. Defendem, então, invocando o dever de cooperação que incide sobre as partes, nos quadros do artº. 7º, do Cód. de Processo Civil, que “se a contraparte quer a diligência, deve declará-lo, quando para tanto é notificada, sob pena de ela não se realizar (art. 7º, nº 2) (…). A contraparte tem o direito de promover o prosseguimento da perícia, tendo o ónus de manifestar esta vontade, depois de notificada para o efeito – enquadrando-se esta notificação no instituto previsto no art. 547º, se necessário”.

Acrescentam, ainda, interpretando restritivamente o normativo, que a desistência é totalmente livre “quando surja em momento processual que permita à contraparte requerer a realização de prova pericial, sem qualquer limitação”, o que acontece, exemplificativamente, “quando surja dias antes da realização da audiência prévia, pois a contraparte ainda poderá requerer livremente a produção deste meio de prova (art. 598º, nº. 1)”.

Em todo o caso, a norma do artigo 474.º não se aplica, na situação dos autos, à Ré D… que no contexto processual não ocupa posição de contraparte, ou parte contrária, em relação ao Réu E…, ambos partes passiva na demanda, embora com defesas assumidamente autónomas e distintas.

Daí que, quer numa interpretação mais literal do artigo 474.º do Código de Processo Civil, quer numa interpretação menos rígida e mais actualista do referido dispositivo, a anuência da co-Ré D… nunca seria de exigir em relação à desistência da perícia manifestada pelo co-Réu E….

Ela teve conhecimento de tal desistência, e com esse conhecimento foi o contraditório garantido, uma vez que a posição que viesse a manifestar quanto a tal desistência sempre seria juridicamente irrelevante.

Não merece, por isso, reparo a decisão recorrida que, por isso, é de manter, improcedendo os argumentos recursivos da apelante."

MTS