09/05/2024

Jurisprudência 2023 (166)


Transacção judicial; homologação;
efeitos; caso julgado*


1. O sumário de RG 28/9/2023 (753/20.0T8VNF-J.G2) é o seguinte:

I – A força obrigatória da sentença transitada em julgado desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, o que corresponde à denominada autoridade do caso julgado.

II – A questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.

III – A autoridade do caso julgado não prescinde da identidade de partes, o que é consequência dos princípios da proibição da indefesa e do contraditório.

IV – A sentença homologatória da transação não tem um conteúdo especificamente jurisdicional ou decisório sobre o objeto, já que são as partes quem dispõe da situação e escolhem a solução a dar ao litígio.

V – Como tal, quando estejam em causa os efeitos da transação em subsequente ação, é mais correto falar-se numa exceção atípica de transação, a qual desempenha função semelhante à do caso julgado.

VI – Tal exceção apenas pode ser invocada perante quem foi parte na transação, o que é uma consequência do princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406/2 do Código Civil), sem prejuízo das situações excecionais em que o contrato acaba por produzir efeitos, negativos ou positivos, junto de determinados terceiros.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a transação judicial, que constitui a base para o proferimento da sentença homologatória, que é, em rigor, a causa da extinção da instância, nos termos do disposto no art. 277, d) (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online cit., p. 176) [---], põe termo ao litígio pendente entre as partes outorgantes mediante recíprocas concessões – que podem ir para além do direito controvertido (STJ 3.03, 2020, 2056/14.0TBGMR.A.G2.S1., ECLI:PT:STJ:2020:2056.14.0TBGMR.A.G2.S1, RG 6.04.2022, 449/21.5T8VCT.G1) –, subtraindo a relação material controvertida objeto da ação ao ato de julgamento. Como tal, no dizer de Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, III, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1960, p. 499, “a lide não é decidida por sentença; é composta por acordo das partes. A função dessa sentença não é decidir a controvérsia substancial, é unicamente fiscalizar a regularidade e validade do acordo. De maneira que a verdadeira fonte da solução do litígio é o ato de vontade das partes e não a sentença do juiz.” O mesmo autor acrescenta, de forma ilustrativa (Comentário cit., p. 534), que “[o] papel do juiz é semelhante ao do notário quando se certifica da identidade e idoneidade dos outorgantes que perante ele comparecem e se dispõem a celebrar uma escritura pública.”

Dito de outra forma, a sentença homologatória da transação não tem um conteúdo especificamente jurisdicional ou decisório sobre o objeto, já que são as partes quem dispõe da situação e escolhem a solução a dar ao litígio. Neste sentido, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil. Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 35, escreve que “podem autor e réu celebrar transação, isto é, acordar em concessões recíprocas para porem termo ao litígio (…). Também nestes casos se segue uma sentença de mérito, mas agora com natureza meramente homologatória, pois o tribunal limita-se a verificar se as partes no negócio eram capazes e tinham legitimidade para se ocupar do objeto negocial e se este era disponível, só não homologando se se verificar incapacidade de uma das partes ou indisponibilidade, subjetiva ou objetiva, do objeto (…). Havendo homologação, a sentença é proferida em conformidade com a vontade das partes e não mediante aplicação do direito objetivo aos factos provados, tutelando o direito subjetivo ou o interesse juridicamente protegido que, em conformidade, se verifique existir.”

Esta constatação leva Alberto dos Reis (Comentário cit., p. 499) a entender que, nas situações em que, realizada uma transação, uma das partes vem propor contra a outra nova ação cujo objeto versa precisamente sobre a relação jurídica substancial auto-composta, não é correto falar-se em de “exceção de caso julgado.”

De facto, a exceção de caso julgado pressupõe, nos termos com que foi iniciada esta exposição, que a causa tenha sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. O que se verifica é uma exceção atípica de transação, enquadrável na previsão não taxativa do corpo do art. 577. De resto, como nota o citado RE 12.04.2018, os critérios legais tendentes à identificação da repetição da causa para proceder a exceção de caso julgado (art. 581 do CPC) – identidade de sujeito, de pedido e de causa de pedir – são inadequados tendo em conta que as concessões recíprocas podem não se esgotar no direito controvertido e, como tal, modificar o objeto do processo. Neste sentido, podem ver-se STJ 5.03.2001, 01A2924, RE 12.04.2018, 1017/17.1T8FAR.E1, e RG 15.06.2021, 1990/19.5T8VCT.G1. Na doutrina, também Rita Lobo Xavier, “Transação Judicial e Processo Civil”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, III, Lisboa: FDUL, 2010, pp. 817-835, afasta a invocação, em tais situações, da exceção do caso julgado, argumentando que a situação compositiva tem origem na vontade das partes e não pode considerar-se res iudicata, e designa a exceção (dilatória) traduzida na invocação da sentença homologatória como “exceção preclusiva por efeito de transação.” [---]Tal exceção apenas pode, prima facie, ser invocada perante quem foi parte na transação, o que é uma consequência do princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406/2 do Código Civil). Ressalvam-se as situações excecionais em que o contrato acaba por produzir efeitos, negativos ou positivos, junto de determinados terceiros. [---]

Por outro lado, como resulta claramente do n.º 2 do art. 291, a transação, como negócio jurídico que é, tipificado no art. 1248 do Código Civil, pode ser declarada nula ou anulada como qualquer negócio jurídico, ao que não obsta o trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória (art. 291/1 e 2). O interessado, como tal entendido, no caso da declaração de nulidade, em conformidade com o art. 286 do Código Civil, o titular de “qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 263; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 620), ou, no caso de anulabilidade, a pessoa em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287/1 do Código Civil), pode optar entre intentar diretamente o recurso extraordinário de revisão (art. 696, d)) ou começar por propor a ação de declaração de nulidade ou de anulação, embora, neste caso, fique responsável pelo pagamento das respetivas custas (art. 535/1 e 2, d)).

*3. [Comentário] Salva a devida consideração pelo "imortal" Alberto dos Reis, não se compreende o motivo pelo qual se rejeita a aplicação da excepção de caso julgado à sentença homologatória de uma transacção.

A pergunta que se deve fazer é a seguinte: se, durante a pendência da acção, as partes celebrarem uma transacção, isso produz imediatamente efeitos no processo? Supõe-se que a resposta só pode ser: não; os efeitos da transacção só se produzem depois da sua homologação.

Portanto, a transacção necessita da homologação para produzir efeitos dentro e fora do processo. Por outro ângulo: a sentença de homologação produz o efeito de caso julgado, tanto na modalidade de autoridade, como na de excepção de caso julgado.

Aliás, se houvesse uma excepção dilatória de transacção, também teria de haver uma correspondente excepção dilatória de desistência ou de confissão do pedido.

MTS