14/05/2024

Jurisprudência 2023 (169)


Simulação;
prova testemunhal; começo de prova


1. O sumário de RP 25/9/2023 (5189/22.5T8VNG.P1) é o seguinte:

I - A nulidade do negócio simulado pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.

II - Não tem legitimidade substantiva, não é titular do direito a invocar a nulidade por simulação de doação o herdeiro legitimário do doador que não alega que esse negócio foi feito com a intenção de o prejudicar e, ao invés, afirma que tal negócio foi feito com a intenção de prejudicar os credores do doador, esvaziando-lhes a garantia patrimonial dos seus créditos.

III - A doutrina maioritária e a jurisprudência têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º do Código Civil, admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito.

IV - Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é oposta e deve tornar verosímil o facto alegado.

V - A outorga de transação pelo autor doador e pelo réu donatário em ação de impugnação pauliana instaurada por credor sem que na mesma seja invocada a nulidade do ato impugnado não constitui princípio de prova documental de simulação absoluta da doação impugnada nesses autos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.2 Da existência de princípio de prova documental da simulação

No que respeita esta questão recursória, os recorrentes referem nas suas conclusões de recurso o seguinte:

ii O 1º A. juntou um documento na petição (nº 3, não examinado na douta sentença), segundo o qual em acção de impugnação pauliana, ambos os simuladores aceitaram perante o credor a “validade da impugnação”, ou seja, admitiam a invalidade do acto de doação, e por isso punham à sua disposição parte dos bens doados que entre eles acertaram;

v. Um dos sentidos que daqui é lícito extrair é o de que o acto de doação foi viciado, com o fim de enganar terceiros; ainda o facto de o A. ter escolhido um filho para transmitir todos os seus bens é ainda um indício de que nele depositava confiança para uma futura reversão, o que reforça ainda mais a simulação;

vi. Portanto, deve entender-se que tal documento, assinado pelos simuladores e com todos os requisitos probatórios, dispõe da faculdade de constituir um princípio de prova, a completar com as restantes”.

Na resposta ao recurso o recorrido sustenta que o documento nº 3 oferecido pelos autores com a petição inicial não envolve qualquer confissão de que a doação celebrada em 22 de dezembro de 2015 foi simulada.

Cumpre apreciar e decidir.

A decisão recorrida foi proferida logo após o termo dos articulados e de acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 595º do Código de Processo Civil, ou seja, porque a Exma. Colega autora da decisão recorrida entendeu que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total dos pedidos deduzidos [---].

Entendeu-se que relativamente ao autor AA não tinha sido oferecido qualquer documento que constitua princípio de prova e que permita que a simulação negocial arguida possa ser provada sem as peias decorrentes do nº 2 do artigo 394º do Código Civil.

Vejamos.

De acordo com o disposto no nº 1, do artigo 394º do Código Civil, “[é] inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas deles, quer sejam posteriores.”

Sublinhe-se que a proibição de prova por testemunhas de convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento com força probatória plena, que sejam contrárias ou adicionais ao conteúdo desse documento, pressupõe a validade das cláusulas em apreço [
Esta limitação probatória incide sobre as estipulações verbais acessórias que se possam considerar válidas (vejam-se os artigos 221º e 222º, ambos do Código Civil e o Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa 2014, página 891, anotação IV; em sede de trabalhos preparatórios, já o Sr. Professor Vaz Serra fazia esta distinção, como se vê da leitura do que escreveu in Provas (Direito Probatório Material), separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa 1962, páginas 534 e 535, nº 133).].

As limitações probatórias à produção da prova testemunhal são extensivas à prova por presunções (artigo 351º do Código Civil) e, por identidade de razão, à prova por declarações de parte, sempre que sujeitas à livre apreciação do tribunal, ou seja, quando não tenham caráter confessório (artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil) e ainda à prova por confissão quando seja livremente apreciada (vejam-se os artigos 358º, nºs 3 e 4 e 361º, ambos do Código Civil).

Esta proibição de produção de prova testemunhal e, reflexamente, da prova por presunção (artigo 351º do Código Civil), bem como da prova por declarações de parte e por confissão, nos termos antes enunciados, aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores, não sendo aplicável a terceiros (nºs 2 e 3, do artigo 394º do Código Civil).

A doutrina maioritária [---] e a jurisprudência [---] têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil [---], admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito [---].

Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é oposta e deve tornar verosímil o facto alegado.

O documento nº 3 oferecido pelos autores com a petição inicial é cópia de uma ata de audiência final no processo nº 17997/20.7T8PRT do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, Comarca do Porto, realizada no dia 13 de setembro de 2021, pelas 14 horas, em que foi autor EE e réus AA e CC, achando-se presentes os réus, a Sra. Advogada do autor munida de poderes especiais e o Sr. Patrono dos réus, tendo os Senhores Advogados e os réus declarado que transigiam nos seguintes termos:

“1. O primeiro Réu confessa-se devedor ao Autor da quantia de 150.000,00 euros (cento e cinquenta mil euros) acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 22/07/2019 até integral pagamento.

2. Os réus confessam o pedido e em consequência reconhecem a válida impugnação da doação identificada nas alíneas 5, 6 e 7 da petição inicial e em consequência reconhecem ao Autor o direito de executar no património do 2º. Réu os bens imóveis identificados nas referidas alíneas, a saber:

5) Prédio urbano (terreno para construção) sito na Rua ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº. ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...;

6) Prédio urbano (terreno para construção) sito na Rua ..., Lugar ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº. ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...;

7) Prédio rústico “...”, freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ..., ..., e inscrito na matriz sob o artigo ....

3. As custas serão a cargo dos Réus.”

Seguidamente, a Sra. Juíza que presidia à audiência final proferiu a seguinte sentença:

“Na presente acção em que é Autor EE e Réus AA e CC, atenta a qualidade e poderes dos interveniente e a disponibilidade do objecto da lide, considero válida a transacção que antecede, por versar sobre matéria de direitos disponíveis e provir dos sujeitos da relação material controvertida, pelo que, nos termos dos artigos 283.º, n.º 2, 284.º e 290.º, n.º 4, todos do Código de Processo Civil homologo pela presente sentença o antecedente acordo, condenado as partes a cumprir o clausulado nos seus precisos termos.

Em face do acordado quanto a custas, dado que os réus beneficiam de apoio judiciário, abra vista ao Ministério Público (art.º 537º, nº2 do Código de Processo Civil).

Registe notifique.”

O documento nº 3 foi oferecido expressamente [---] para prova do alegado pelos autores no artigo 9 da petição inicial que tem o seguinte conteúdo:

E foi no contexto desta ação pauliana que, o património que ainda não havia sido vendido a terceiros, revertou [sic] para a esfera jurídica do Autor AA, com excepção da fração autónoma designada pela letra “A” – cave, pertencente ao prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...- ..., inscrito na matriz sob o art.º ....

A questão que neste momento importa colocar é a seguinte: com a transação que se acaba de reproduzir é lícito afirmar que os réus nessa ação (o autor AA e o réu nestes autos) confessam que a doação impugnada por via de impugnação pauliana foi simulada?

A nosso ver, a resposta a esta interrogação implica a análise da petição inicial do processo em que se verificou a referida transação já que a impugnação pauliana não implica necessariamente a nulidade do ato impugnado, embora a nulidade do ato não seja obstáculo à impugnação pauliana (veja-se o nº 1 do artigo 615º do Código Civil).

Ora, o réu ofereceu cópia da petição inicial oferecida na referida ação, cópia que não foi impugnada pelos ora recorrentes e da sua leitura resulta inequívoco que não foi nessa ação suscitada a nulidade por simulação da doação impugnada.

Ao contrário do que pressupõem os recorrentes, o reconhecimento da “válida impugnação” pauliana relativamente a alguns dos bens doados não significa que o negócio mediante o qual operou a transmissão para a esfera jurídica do donatário desses bens padeça de uma qualquer invalidade, nomeadamente de nulidade por simulação absoluta.

Pelo contrário, em regra, a impugnação pauliana implica a validade do ato transmissivo e visa apenas desconsiderar essa transmissão relativamente ao credor afetado na sua garantia patrimonial (veja-se o nº 4 do artigo 616º do Código Civil), facultando-lhe a execução dos bens transmitidos na esfera jurídica do transmissário (veja-se o nº 1 do artigo 616º do Código Civil).

Por isso, neste circunstancialismo é evidente que o aludido documento nº 3 oferecido pelos autores não constitui qualquer começo de prova da simulação negocial absoluta invocada pelos autores nestes autos e, por isso, não tinha de ser relevado, como não foi, pelo tribunal recorrido.

Pelo exposto, improcede também esta questão recursória, devendo confirmar-se a decisão recorrida, nos segmentos impugnados, respondendo os recorrentes pelas custas do recurso porque este improcedeu totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)."

[MTS]