Nessa apreciação, entendeu-se que a acção foi instaurada pela «Herança ilíquida e indivisa aberta por morte de AA, representada pela cabeça de casal BB». Por outras palavras, entendeu-se que a autora da acção é herança, representada pela cabeça de casal (por via da sua natureza de entidade orgânica e não pessoa singular, carecida de ser representada por quem possua vontade de acção).
Foi assim excluído, sequer por via de interpretação do texto da petição inicial e da configuração da acção, que o autor da acção sejam os herdeiros do de cujus ou sequer a própria cabeça de casal, no exercício de direitos abrangidos pela capacidade de exercício possuída por aquela ou por esta, nessa qualidade.
A seguir entendeu-se que a herança demandante já não é jacente (por o recebimento das rendas do arrendamento traduzir a aceitação da herança pelos herdeiros do senhorio) e por isso não possui a personalidade judiciária necessária para poder demandar. E, em conformidade com esse entendimento, por falta de personalidade judiciária da autora, decidiu-se absolver a ré da instância, pondo-se fim à lide no tocante à acção. [...]
Embora a recorrente se insurja contra o entendimento do tribunal a quo quanto à identidade do autor da acção e defenda que se deva considerar que o autor não é a herança, mas sim o cabeça de casal, a verdade é que a recorrente não impugna o segmento da decisão que a absolveu da instância, ela somente impugna o segmento da decisão que recusou o incidente da intervenção de terceiros e a reconvenção.
O tribunal a quo absolveu a ré da instância relativamente ao pedido do autor. Nos termos do n.º 1 do artigo 631.º do Código de Processo Civil os recursos só podem ser interpostos pela parte que tenha ficado vencida na decisão, não pela parte vencedora.
Contudo, independentemente de saber se a ré, por não ter na sua contestação invocado a falta de personalidade judiciária do autor e ter defendido a sua absolvição do pedido, não a sua absolvição da instância, tinha legitimidade para recorrer da decisão, certo é que a ré não recorre desse segmento da decisão. O que a ré faz, no recurso, é somente questionar um dos fundamentos em que tal decisão assenta – que o autor é a herança – não para efeitos de obter a revogação da decisão de a absolver da instância em relação ao pedido do autor, mas para efeitos de tornar admissível a dedução do seu próprio pedido reconvencional.
Esta situação determina que a procedência da pretensão da recorrente geraria afinal de contas um verdadeiro paradoxo processual, qual seja, o de o mesmo processo poder ter um autor para efeitos da acção e ter outro autor para efeitos da reconvenção, o que nos parece nunca ter sido admitido ou configurado como possível [---]
Encontrando-se já transitada em julgado a decisão de absolver a ré da instância em relação ao pedido do autor com fundamento em o autor ser a «herança ilíquida e indivisa», já não se encontrar jacente – aspecto em relação ao qual, aliás, não há controvérsia nos autos – e, nessa situação, não dispor de personalidade judiciária, parece inelutável que para efeitos do pedido reconvencional a acção não poderá vir a ter uma configuração subjectiva diferente.
É absolutamente contraditório, cremos, que a ré possa ter sido absolvida da instância com esse fundamento e, não obstante, possa deduzir um pedido reconvencional contra um autor com identidade distinta, quando, a ser essa a identidade do autor na acção, então a decisão de absolvição da instância não podia subsistir, sendo que a mesma, por não ter sido impugnada, já se encontra … transitada em julgado!
A ré não pode no mesmo processo tirar benefícios de posições contraditórias entre si: que o autor é a herança para efeitos de ser absolvido da instância em relação ao pedido deduzido contra si; que o autor são os herdeiros (a cabeça-de-casal, originariamente demandante, e os demais herdeiros, chamados à acção por via incidental) para efeitos de poder aproveitar a acção e deduzir pedido reconvencional contra estes.
Por isso, embora em bom rigor se nos afigurasse possível fazer outra leitura da petição inicial que não a feita pela Mma. Juíza a quo, mais influenciada pela preocupação com o aproveitamento dos recursos e dos meios processuais desencadeados, e decidir, porventura após convite ao esclarecimento e aperfeiçoamento da petição inicial, que, apesar da descrição feita no cabeçalho da petição inicial, a demandante era verdadeiramente a cabeça-de-casal, nessa qualidade, e não a herança indivisa representada por aquela (o que levaria a decidir que a autora possuía personalidade judiciária), entendemos que na situação processual criada com o trânsito em julgado da decisão de absolvição da ré da instância por falta de personalidade judiciária da herança demandante, não é mais possível para efeitos da presente acção configurar subjectivamente a lide de outro modo.
A pergunta que se coloca é se isso pode alterar-se por via do incidente de intervenção de terceiros deduzido pela reconvinte.
A resposta é, acreditamos, negativa.
Com efeito, o incidente da intervenção principal provocada de terceiros não é um incidente que permita à parte chamar à acção quem ela entenda ou deseje. O incidente só serve para o objectivo que lhe está definido na lei processual e mais especificamente nos artigos 316.º e 317.º do Código de Processo Civil.
O artigo 311.º do Código de Processo Civil, que define o âmbito da intervenção principal espontânea e serve de referência à intervenção provocada, estabelece que estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º [litisconsórcio voluntário] 33.º [litisconsórcio necessário] e 34.º [litisconsórcio conjugal: acções que têm de ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges].
Deixou assim de ser admitida a figura da intervenção principal a título de coligação (artigo 36.º) que era admitida no Código de Processo Civil de 1961 (cf. A. Geraldes, P. Pimenta e L. F. Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 362), sendo certo que mesmo então com fundamento na coligação a lei apenas admitia o incidente pela parte activa da lide – artigo 320º, alínea b) do Código de Processo Civil – e não a intervenção principal com fundamento na coligação com os demandados.
Como resulta da própria epígrafe do preceito, “intervenção de litisconsorte”, com excepção da situação prevista no artigo 317.º (que se reporta às situações de existência de co-devedores solidários, e mesmo assim não na totalidade porque situações existem que estão apenas previstas no artigo 321.º do Código de Processo Civil, apenas consentindo a intervenção acessória, não a intervenção principal), o campo de aplicação da intervenção principal está confinado às situações de litisconsórcio: só pode intervir na acção, assumindo a posição de parte principal, um terceiro que por referência ao objecto da lide esteja em relação à parte a que se vai associar numa situação de litisconsórcio, não sendo suficiente para o efeito uma situação de coligação e, muito menos, uma situação que não preencha sequer os pressupostos da coligação. E isto é assim quer no tocante à intervenção espontânea quer no tocante à intervenção provocada, conforme resulta do disposto no artigo 316.º que define os casos em que o terceiro pode ser chamado pelas partes primitivas.
A figura do litisconsórcio refere-se à situação em que a mesma e única relação material controvertida tem uma pluralidade de partes. Já a coligação reporta-se às situações em que a pluralidade de partes corresponde a uma pluralidade de relações materiais controvertidas, unidas entre si por um determinado vínculo quanto à fonte ou causa de pedir, quanto à dependência que se estabelece entre elas ou quanto a uma determinada conexão jurídica entre os respectivos fundamentos.
Em regra, o litisconsórcio é voluntário, ou seja, consente que a acção seja proposta por todos ou contra todos os interessados, mas não obriga a que o seja. Se apenas um dos titulares intervier, o tribunal deve conhecer apenas da quota-parte do seu interesse ou responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade, mas se a lei ou o negócio jurídico consentir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação seja exigida a um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade, devendo nesse caso o tribunal conhecer da totalidade do interesse ou responsabilidade (artigos 27.º do antigo e 32.º do novo Código de Processo Civil).
Nos casos em que o litisconsórcio é necessário, torna-se indispensável a intervenção de todos os titulares para assegurar a legitimidade processual. Isso ocorre, desde logo, quando a lei ou o negócio exigem especialmente a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, mas também quando, pela própria natureza da relação jurídica, a intervenção de todos é necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, isto é, seja capaz de regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (artigos 28.º do antigo e 33.º do novo Código de Processo Civil) – cf. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 165 e seguintes, e Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 1999, p. 58 –.
Por conseguinte, para que no caso a intervenção provocada pela reconvinte fosse admissível era indispensável que se pudesse afirmar que entre o autor da acção e reconvindo e as demais pessoas em relação às quais a ré pretende (ou necessita de) deduzir a reconvenção houvesse uma situação de litisconsórcio.
Ora se o autor e reconvindo fosse um dos herdeiros (ainda que na qualidade de cabeça de casal, o qual não deixa de ser um herdeiro ainda que detenha poderes próprios no tocante à administração da herança) entre ele e os demais herdeiros haveria uma situação de litisconsórcio no que respeita à relação material da responsabilidade pelo incumprimento do contrato de arrendamento de que era titular o de cujus, a permitir ao reconvinte deduzir a reconvenção contra todos os herdeiros, provocando para o efeito a intervenção principal (passiva, em relação à reconvenção) dos herdeiros que não estavam presentes na configuração inicial da acção.
Todavia, como vimos, no processo deve considerar-se processualmente adquirido e inalterável que a autora da acção e, como tal, a parte contra a qual a ré podia deduzir reconvenção é a Herança, não são os herdeiros ou um dos herdeiros (designadamente o que exerce as funções de cabeça de casal).
Ora se entre os herdeiros haveria uma situação de contitularidade da mesma relação material controvertida, qualificável como litisconsórcio, já entre a herança e os herdeiros a relação não é de contitularidade, é de exclusão: ou é a herança que sendo jacente assume processualmente a titularidade exclusiva da relação material, podendo litigar ou ser demandada sozinha, sem intervenção de mais ninguém, ou, não sendo aquela jacente, são os herdeiros que em conjunto assumem essa titularidade, excluindo a intervenção da herança.
*3. [Comentário] O caso apreciado pela RP não é assim tão simples como parece, já que a RP, para decidir como decidiu, devia ter afastado os seguintes "obstáculos":
-- Não é impossível deduzir a reconvenção contra uma parte diferente daquela que propôs a acção; isso pode suceder numa acção de responsabilidade civil por acidente de viação, sempre que, pelas especiais regras de legitimidade que vigoram nessas acções (art. 64.º, n.º 1, DL 291/2007, de 21/8), o réu da reconvenção não possa coincidir com o autor da acção; o "obstáculo" poderia ser afastado com o argumento de que, no caso sub iudice, não há fundamento para que tal fosse admissível;
-- O destino da reconvenção após a absolvição da instância do réu reconvinte é decidido pelo disposto no art. 266.º, n.º 6, CPC; no caso em análise, poder-se-ia argumentar que, como o pedido reconvencional só poderia ser considerado procedente caso o pedido do autor fosse considerado improcedente, o pedido reconvencional é dependente do pedido do autor.
MTS