25/06/2024

Jurisprudência 2023 (199)


Processo de inventário;
âmbito de aplicação*

I. O sumário de RE 23/11/2023 (1355/23.4T8FAR.E1) é o seguinte:

1 – A partilha deve ser feita por meio de inventário quando não haja acordos dos interessados directos na partilha, quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária ou quando algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo.

2 – O recurso ao processo de inventário é inadmissível nas situações de único interessado, pois não há que partilhar o património hereditário, porquanto este será adjudicado, na totalidade, ao único de interessado.

3 – Em caso de redução inoficiosa de liberalidades, a norma que determina o recurso ao processo de inventário tem como pressuposto a obrigatoriedade de, no caso, ter de se seguir o processo de inventário, o que não acontece nos casos de herdeiro único, onde não se discuta a matéria da relacionação de bens hereditários para eventual liquidação da herança.

4 – É a acção declarativa comum, e não o processo de inventário, o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução ou revogação de liberalidades por inoficiosidade.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A partilha deve ser feita por meio de inventário quando não haja acordos dos interessados directos na partilha, quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária ou quando algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo. Nestes dois últimos casos, a lei entende que um dos herdeiros é merecedor de uma tutela especial, que justifica um procedimento mais exigente [Isabel Menéres Campos Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 131.]

O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de realizar-se partilha judicial, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base a eventual liquidação da herança.

O processo de inventário assume assim duas finalidades: (i) pôr termo à comunhão hereditária, com a consequente realização da partilha dos bens da herança ou (ii) a de relacionação de bens hereditários para eventual liquidação da herança.

O Autor é o único herdeiro de seus pais, o que exclui a necessidade de proceder a inventário com a finalidade de proceder à partilha dos bens destas heranças. E, na outra faceta, não está aqui em causa qualquer operação de liquidação da herança, o que afasta a necessidade de relacionação de bens em processo de inventário, sendo que esta é prosseguida com o objectivo de facilitar a limitação da responsabilidade pelas dívidas e encargos da herança, nos termos do regulado na al. b) do artigo 2103º [---] do Código Civil.

Os herdeiros legitimários e, para defesa da sua legítima, têm um meio de reagir contra as disposições de carácter gratuito que o autor da sucessão tenha realizado, entre vivos ou mortis causa, que ofendam a sua legítima: a redução por inoficiosidade [Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 235.]

Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários e esta matéria mostra-se regulada nos artigo 2168º [---] e seguintes do Código Civil, revelando aqui especial interesse a questão das liberalidades feitas em vida [---]. E, no plano adjectivo, o instituto está precipitado no artigo 1118º [---] do Código de Processo Civil.

Pires de Lima e Antunes Varela assinalam que a mancha da inoficiosidade tanto pode atingir, efectivamente, as liberalidades entre vivos (doações) e por morte (legados ou instituições de herdeiros), como as próprias despesas sujeitas a colação (artigos 2110º, nº2[12] e 2104º, nº2 [----]) [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 273.]

As liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida e a mesma não opera automaticamente, exigindo-se assim o impulso processual dos afectados com a liberalidade.

Haverá uma redução, a concretizar nos termos estatuídos nos artigos 2172º e 2173º [---] – in casu, das feitas em vida –, das liberalidades excessivas que o autor da sucessão realizou e que atingem o preenchimento da legítima dos mesmos, podendo tal operação «converter-se em revogação, quando a mancha da inoficiosidade cubra a liberalidade afectada em toda a sua extensão» [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 273.].

Está apenas em causa a pedida declaração de inoficiosidade da doação que foi feita em benefício dos demandados, quer se considere o pedido de redução, quer se valide a pretensão de restituição do imóvel, dado que ambos têm subjacente o mesmo fundamento e idêntica causa de pedir.

Não estando este acórdão a sindicar as decisões das acções comuns precedentes importa referir que na operação de partilha existe um único interessado e, assim, por desnecessidade, não é válida aqui a asserção que «na herança de (…) não é apenas herdeiro o Autor, mas também o cônjuge da falecida (para além de ser meeiro), tendo sempre que ocorrer operações de partilha».

No inventário partilham-se bens, real e objectivamente considerados e ainda que houvesse de ser efectuada a cumulação de inventários, que exigisse a apreciação conjunta do acervo patrimonial a partilhar e sendo este comum aos dois inventários, existiria apenas um único interessado.

Efectivamente, nos termos anteriormente assinalados, o recurso ao processo de inventário é inadmissível nas situações de único interessado. Na realidade, se há apenas um interessado na herança, não há que partilhar o património hereditário, porquanto este será adjudicado, na totalidade, ao único de interessado [Isabel Menéres Campos Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 132.], independentemente do número de pessoas falecidas de quem o sucessor seja herdeiro legitimário.

Assim, como se diz no acto decisório recorrido é a acção declarativa comum, e não o processo de inventário, o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução ou a revogação de liberalidades por inoficiosidade [Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/01/2016, editado em www.dgsi.pt.] [Pronunciando-se sobre idêntico objecto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2006, publicitado em www.dgsi.pt, afirma que «este pedido (…) não se integra na finalidade para que foi estabelecido o processo de inventário, e daí que se tenha de seguir a forma de processo comum».].

Tal como ressalta da jurisprudência emitida pelo Supremo Tribunal de Justiça com a procedência da acção «os bens passam, sem mais, a integrar o património hereditário, assegurando às partes todas as garantias de defesa dos seus direitos, designadamente, a alegada avaliação do valor real dos bens, certo que as normas processuais que permitem aos donatários intervir no processo de inventário, em caso de inoficiosidade, não impõem a utilização do processo de inventário – a norma que determina o recurso ao processo de inventário (…) tem como pressuposto a obrigatoriedade de, no caso, ter de se seguir o processo de inventário» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/94, publicado na Colectânea de Jurisprudência C.J. - STJ - 1994-3-145, citado pelo acórdão do mesmo Tribunal de 24/10/2006 já referenciado na nota de rodapé anterior.].

Em suma, na acção comum existe a necessidade de alegação e prova dos factos constitutivos da causa de pedir, sendo que, no inventário, o pedido de redução por inoficiosidade surge como mero incidente processual, mas, neste caso, é pressuposto do recurso a este procedimento a existência de mais do que um interessado e a necessidade de realizar operações de partilha, o que aqui não se verifica.

E, assim, mesmo que tivesse de ser realizada a título incidental uma partilha hipotética ou virtual, o destinatário final de todos e quaisquer bens ou direitos, existentes à data da abertura da sucessão, seria sempre o Autor. Este é o beneficiário de todo o acervo patrimonial dos de cujus.

É certo que causa perplexidade, desencanto e surpresa a circunstância de o Autor ter sido forçado a recorrer sucessiva e alternadamente a instâncias diversas em ordem a concretizar um legítimo direito de discutir o seu direito de redução da inoficiosidade da doação e que as sucessivas decisões contraditórias têm sido um verdadeiro entrave ao acesso à Justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva. Este é um claro exemplo de uma indesejada situação disfuncional e que briga com a obtenção de decisão em prazo razoável, mas que não pode continuar, sob pena do autor ser privado injustificadamente da tutela da sua pretensão.

No entanto, o despacho de indeferimento liminar sub judice está correctamente emitido e corresponde à solução jurídica acertada e daqui que não resta qualquer alternativa ao Tribunal da Relação de Évora senão confirmá-lo, julgando improcedente o recurso interposto."

3. [Comentário] a) No Relatório do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No presente inventário aberto por óbito de (…) e de (…) proposto por (…) contra (…) e (…), com incidente de inoficiosidade deduzido, o requerente veio interpor recurso da decisão de indeferimento liminar.

*
O requerente pretende a redução, por inoficiosidade, para preenchimento da legítima de herdeiro legitimário, por ofensa da legítima, de liberalidade (doação) efectuada pelos seus pais, (…) e (…), aos seus netos, filhos do aqui Autor.
 
Ou, a restituição do bem doado ao património hereditário, com todas as demais consequências legais dai decorrentes, no montante total de 206.449,35 € (duzentos e seis mil quatrocentos e quarenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos), para que possa ser preenchida a parte destinada ao herdeiro legitimário. [...]

*
O requerente intentou acção declarativa, com processo comum, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Civil de Faro, Juiz 1, sob o Processo n.º 3772/22.8T8FAR, a qual por despacho proferido em 23/11/2022, viu ser-lhe tal pretensão liminarmente indeferida, julgando verificada a excepção dilatória de nulidade, por erro na forma do processo.

*
Face à decisão judicial proferida, após intentar providência cautelar de arresto, o Autor (…) intentou acção especial de inventário (competência exclusiva) onde deduziu o incidente de redução de liberalidade por inoficiosidade, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Civil de Faro, Juiz 1, sob o Processo n.º 3888/22.0T8FAR, a qual por despacho proferido em 16/01/2023, foi indeferido liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, que deveria seguir a forma de processo comum.

*
Intentada de novo acção de processo comum, que correu termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sob o processo 1186/23.1T8FAR, foi indeferida liminarmente a petição inicial apresentada, julgando-se verificada a excepção dilatória de nulidade, por erro na forma do processo.

*
Nos presentes na parte que assume pertinência para a justa composição do litígio, foi proferido despacho com o seguinte conteúdo: «não havendo mais do que um herdeiro legitimário, e interessando apenas a este a redução de liberalidades por inoficiosidade – pois não tem com quem mais partilhar os bens – não há operações de partilha a fazer, pelo que deverá ser indeferido o requerimento inicial para partilha de bens (processo de inventário) e bem assim o respectivo incidente.

Em face de todo o exposto, indefere-se liminarmente o requerimento apresentado».

b) O caso sobre o qual recaiu o acórdão da RE é um daqueles em que o processo não foi "pro-cesso", mas antes "re-cesso". Algum tempo depois, o autor voltou à "casa de partida".

A situação é anómala e constitui o que se pode designar por "conflito negativo de formas do processo". Resta esperar que, quando o Autor voltar a propor a acção sobre a forma de processo comum, o problema da forma do processo não se coloque de novo.

Se tal vier a suceder, a anomalia não é da responsabilidade do Autor e o sistema tem de lhe dar uma solução. Perante a falta de resposta desse sistema e perante a lacuna nele existente, sugere-se a aplicação analógica do disposto no art. 110.º, n.º 2, CPC: a forma de processo é determinada pelo Presidente da Relação a cuja circunscrição pertencem os tribunais em conflito quanto à forma do processo.

MTS