28/06/2024

Jurisprudência 2023 (202)


Facto positivo;
falta de prova; consequências


I. O sumário de RL 7/11/2023 (693/22.8T8PDL.L1-7) é o seguinte:

1. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – v.g., que traduz a existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – v.g., negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário.

2. O autor pode servir-se do mesmo processo para instaurar uma ação de impugnação de justificação notarial e uma ação de reivindicação.

3. Na ação de impugnação de justificação notarial, tendo sido o réu quem na escritura pública respetiva afirmou os factos que levam à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade, incumbe-lhe a prova de tais factos constitutivos do seu direito.

4. Cabe ao autor fazer a prova dos factos constitutivos do direito real de que se arroga na ação de reivindicação instaurada, no mesmo processo, com a ação de impugnação de justificação notarial.

5. É interessado na impugnação da justificação notarial o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afetada pelos efeitos jurídicos que decorrem do facto justificado.

6. Não é indiferente ao arrendatário (nem a quem se arroga essa qualidade) a justificação notarial por meio da qual um terceiro pretende o reconhecimento de um direito que o coloca como contraparte na relação locatícia, especialmente quando esse direito é invocado, pelo justificante ou por um subadquirente, na sustentação de uma pretensão de entrega formulada contra o arrendatário (ainda que sob a forma de uma notificação judicial avulsa).

7. A litigância de má-fé é do conhecimento oficioso do tribunal, quer nas instâncias, quer no Supremo Tribunal de Justiça, podendo este conhecimento incidir sobre uma conduta desenvolvida quando o processo estava pendente perante o tribunal a quo, ainda que este não tenha emitido pronúncia sobre a questão.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A. Relatório [...]

A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar

A única questão de facto a decidir é o acerto do julgamento da “parte final” do “ponto 27 da matéria de facto dada como assente” – adiante ponto 28 –, pretendendo o apelante que seja dado “como assente que a segunda ré tinha conhecimento do negócio ilícito”. [...]

B. Fundamentação

B.A. Factos provados [...]

28 – A ré M, por escritura de 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu LS o direito de propriedade plena sobre o imóvel constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada, pagando o respetivo preço acordado, confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros. [...]

4. Alteração da decisão de facto proferida

Ouvidos os registos áudio da prova produzida, não podemos deixar de alterar a decisão de facto impugnada. Se os depoimentos invocados e transcritos pelo apelante não permitem considerar provada a matéria pretendida pelo mesmo, em toda a sua extensão, também dos meios de prova invocados pelo tribunal a quo não se pode extrair a decisão vertida na sentença.

Resumidamente, o apelante fundamenta a sua impugnação nas regras da experiência e na circunstância de:

a) a testemunha MRR (mediadora imobiliária) conhecer os réus desde data anterior à outorga da escritura de justificação;

b) a testemunha MRR ter descrito “o primeiro réu LS como uma pessoa doente, fragilizado e vulnerável”;

c) terem decorrido quatro meses entre a escritura de justificação e a escritura de compra e venda outorgada pelos réus.

Estas circunstâncias são manifestamente insuficientes para que se possa dar (positivamente) como provado que a ré M teve intervenção – designadamente, como instigadora – na decisão do réu de outorgar a escritura de justificação; não são sequer suficientes para que se possa considerar provado que, antes da outorga do contrato de compra e venda, conhecia a falsidade do que foi declarado nessa escritura. Mas a prova invocada pelo tribunal a quo também é insuficiente para que se possa concluir, com segurança, pela verificação do facto oposto. Na verdade, nenhuma prova concludente e credível foi produzida sobre esta factualidade – recorde-se que apenas se discute a parte final do ponto 28 –, sendo que os únicos depoimentos com ela relacionados – declarações de parte e testemunho de MRR – são, em geral, como bem assinalou o tribunal a quo, pouco firmes, coerentes e credíveis.

A este respeito, deteta-se uma aporia no silogismo apresentado pelo tribunal a quo. Ainda que se tenha por “transparente a razão da aquisição do prédio aqui em causa [pela ré M], para revenda”, e se tenha por seguro que “nada nos autos nos permit[e] concluir ou até indiciariamente sustentar que a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”, nem por isso se poderá dar por positivamente provado que a ré atuou “confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros”. Apenas se poderia dar por não provado exatamente o que o tribunal a quo referiu (embora empregando termos distintos): “a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – afirmação da existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário.

Em suma, pelas razões expostas, altera-se a decisão de facto, nela passando a constar, no ponto em análise:

28 – Em 2 de fevereiro de 2021, a ré M, por escritura pública, declarou adquirir ao réu LS, declarando este vender, além do mais, o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados.

No leque de factos não provados passa a constar:

67 – Aquando da outorga da escritura pública referida no ponto 28 – factos provados –, a ré M confiava que o transmitente era legítimo proprietário e possuidor dos prédios adquiridos, e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros."
 
 
*III. [Comentário] Apenas um comentário a latere.

É precisamente pela mesma lógica utilizada no acórdão que a improcedência de uma acção de apreciação negativa ("não declaração de que não") não pode equivaler à procedência de uma acção de apreciação positiva ("declaração de que sim").

MTS